Por Coletivo Intervozes/Carta Capital –
Os protestos contra o Governo ganham destaque no último domingo, enquanto movimentos populares são completamente invisibilizados pelos jornais.
Muito já se falou sobre o quanto a mídia nacional assume posturas distintas em relação às diversas manifestações que ocorrem no país desde junho de 2013. Mas é interessante perceber como nos jornais locais esse fenômeno se repete. No Recife, no último domingo, enquanto foi organizada uma manifestação claramente anti-Dilma no bairro Boa Viagem, no Cais José Estelita havia a mobilização Ocupe Campo-Cidade, que pela primeira vez uniu os diversos grupos que compõem o Movimento Ocupe Estelita, o Levante Popular da Juventude e grupos que fazem a luta no campo, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), representantes do povo Xukuru e agricultores agroecológicos.
Nos jornais do fim de semana, as mobilizações anti-Dilma ganharam dezenas de chamadas, assim como na programação nacional das principais redes de televisão. Já o Ocupe Campo-Cidade, teve apenas algumas reportagens publicadas em sites de organizações sociais, como o Centro Sabiá (onde atuo profissionalmente), e de portais como o Leia Já e Diário de Pernambuco.
Na segunda-feira, os três principais jornais pernambucanos admitiram o fracasso de público das manifestações pelo Brasil e no Recife, mas suas manchetes reafiramam que a pressão é cada vez maior contra a presidenta Dilma Roussef. Todos praticamente ignoraram o protesto relacionado ao próprio estado e que, nos últimos meses, conseguiu trazer à tona a discussão sobre o modelo de cidade que vem sendo produzido.
No Jornal do Commercio, único que teve uma pequena chamada de capa para o protesto organizado pelos movimentos sociais, uma foto grande de público vestindo amarelo estava acompanhada pelo título “Protesto menor. Governo silencia”. A exposição contrasta com a nota de apenas uma coluna com o nome “Estelita”. Em uma página preta e branca, na parte inferior e menos valorizada do periódico, o JC publicou a única matéria da imprensa escrita sobre o Ocupe Campo-Cidade. Com maior destaque e cores, vieram as reportagens sobre o ato anti-PT em Boa Viagem e no resto do país.
Na caderno Poder do Diário de Pernambuco, a capa e duas páginas coloridas trazem a cobertura dos protestos nacionais e do que aconteceu no Recife, o Ocupe Campo-Cidade só aparece no site e em uma nota com foto na parte inferior esquerda do caderno Local. A Folha de Pernambuco destou exclusivamente o ato “anti-PT”, embora tenha pontuado a diminuição do número de participantes, na comparação com o ato do dia 15 de março. De propriedade do usineiro Eduardo Monteiro, o jornal não mencionou o Ocupe Campo-Cidade nem mesmo no seu site.
A valorização de um em detrimento do outro também se dá na contagem dos participantes. Curiosamente, o texto Jornal do Commercio JC sobre o Ocupe Campo-Cidade fala na presença de 3.000 pessoas, mas a única imagem que foi publicada é fechada e tem três pessoas comprando produtos agroecológicos de um vendedor com a bandeira do (tão criticado) Movimento Sem Terra tomando quase metade do espaço.
O Ocupe Campo-Cidade vinha sendo planejado desde janeiro e tinha como principal objetivo mostrar as similaridades entre os problemas enfrentados nos meios rural e urbano. Entre elas, as irregularidade no leilão que possibilitou o início do projeto Novo Recife, projeto idealizado para ser realizado na área do Cais José Estelita, que foi ocupada por 50 dias pelo movimento e teve uma violenta desocupação realizada em dia de jogo do Brasil na Copa do Mundo pela Polícia Militar. A lógica em nada difere da grilagem de terras denunciada por diversos movimentos ligados ao campo. Bem como não difere o uso da violência do Estado contra os movimentos sociais.
Não é possível aceitarmos a continuidade da imposição do silêncio e de lógicas opressoras. “O exercício do bom senso, com o qual só temos o que ganhar, se faz no ‘corpo’ da curiosidade. Nesse sentido, quanto mais pomos em prática de forma metódica a nossa capacidade de indagar, de comparar, de duvidar, de aferir, tanto mais eficazmente curiosos nos podemos tornar e mais crítico se pode fazer o nosso bom senso” dizia Paulo Freire.
Um dos pernambucanos mais conhecidos de todos os tempos, o pedagogo não é nome de nenhuma importante praça, avenida, ponte ou monumento no Recife. Conhecido internacionalmente pelas suas pesquisas e pelo trabalho de alfabetização de adultos, ele acabou virando referência negativa de um grupo de manifestantes que foi às ruas no início das manifestações anti-Dilma.
Mas a comunicação em geral tem dois lados e certamente a faixa levada pelo grupo e que dizia “Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire” serviu mais para alertar para a necessidade de se voltar ao trabalho do criador do Programa Nacional de Alfabetização (criado no governo João Goulart e extinto pela Ditadura Militar) do que como crítica ao autor falecido em 1997. E também mostra a despolitização de algumas das lideranças da onda generalizada de protestos anti-Governo.
Reagindo a essa tendência, é preciso afirmar a crítica e trazer à tona as indagações. Há de se questionar a escolha de fazer uma cobertura abrangente, com foco nas demandas da população, espaço para comentários de diversas fontes, reserva inclusive de horários e espaços normalmente destinados ao entretenimento para alguns, enquanto a outros é destinada a sobra. Quando é.
É preciso fazer uma leitura crítica desse fenômeno. Será que, a partir de agora, os protestos dos movimentos do campo não precisam ter seus cartazes mostrados no horário nobre? Finalmente os desapropriados pelas obras da Copa do Mundo e das Olimpíadas terão suas histórias dramáticas contadas sem cortes nas principais emissoras do país? Aparentemente, nenhuma mudança significativa aconteceu nos veículos de mídia nacional e nem nos de Pernambuco. Mas as perguntas são necessárias para quem assistiu de casa ou participou nas ruas dos protestos do último domingo no Recife, para que comecemos a virar uma página importante da alfabetização política no Brasil.
Um crítico da cobertura da TV Globo pode corretamente identificar que a emissora, assim como outros grandes veículos, usou técnicas publicitárias para fazer que os protestos anti-Dilma conseguissem realmente mobilizar grande quantidade de pessoas em todo o país. As chamadas durante toda a semana e desde cedo pela manhã faziam com que os cidadãos já amanhecessem sabendo o que esperava o domingo na Avenida Boa Viagem, na Paulista, em Copacabana e em tantas outras cidades.
Os maiores veículos locais do país reverberaram esse aquecimento. No último domingo, a TV Globo, pela segunda vez, iniciou a cobertura dos protestos logo após o Globo Rural, repetindo o que já havia acontecido no 15 de março.
Quantos protestos no Brasil não mereciam o destaque que receberam essas duas mobilizações? O cuidado de se investigar o que querem os manifestantes, que em certo momento até confundiu quem estava assistindo pela TV, só me fez lembrar das dezenas de vezes que vi nas ruas questões extremamente relevantes serem silenciadas pela mídia.
Os manifestantes majoritariamente de esquerda que estiveram no Ocupe Campo-Cidade certamente tiveram suas lições de alfabetização para a era digital. Agora, um outro grupo identificado provavelmente com ideias mais conservadoras chega às ruas e muitos deles certamente com desejo efetivamente de melhorar o país. Das lições que trago de junho de 2013, diria que Paulo Freire e a alfabetização de adultos já não é suficiente, precisamos falar também em política e educação para a mídia e a era digital.
Para voltar pedagogicamente ao educador, lembro que para ele “seria uma atitude muito ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que permitisse às classes dominadas perceberem as injustiças sociais de forma crítica”. Para que a comunicação contribua no processo de transformação social, como esperava Freire, não basta sonhar que alguns destaques de cobertura do protesto anti-Dilma servissem também para o Ocupe Campo-Cidade ou pautas similares dos movimentos do campo e rural, que pregam a reforma agrária (MST), a agroecologia ou uma nova relação do poder público com as terras urbanas, como o Movimento Ocupe Estelita. É preciso que seja vista como direito. Direito exercido por todos e todas nós.
*É integrante do Intervozes e mestrando em Comunicação pela UFPE