Por Edu Carvalho, compartilhado de Projeto Colabora –
Angústia, medo e solidariedade na vida de quem resistiu a quase tudo para seguir as orientações da ciência e permanecer trancado em casa
“Estou isolada em casa desde março, quando o coronavírus havia acabado de chegar em São Paulo. Ele ainda passou pelo Rio antes de aparecer aqui no Espírito Santo’’. A capixaba Maria Amélia Silva de Jesus, de 67 anos, faz parte do grupo de brasileiros que levou a pandemia a sério, respeitou as orientações médicas e está completando seis meses de isolamento social. Não há registro de pesquisas que mostrem exatamente quantas pessoas seguiram o exemplo de Dona Maria Amélia ao redor do país. Nem as motivações específicas que fizeram essa gente se trancar em casa por tanto tempo. Determinação e solidariedade, certamente, estão entre elas. Mas a aposentada e ex-babá do Espirito Santo é mais simples e direta: “Fiquei com medo”. O pior momento, segunda ela, foi quando viu na televisão as imagens das covas coletivas em Manaus: “Fiquei preocupada com os meus parentes que vivem em São Paulo e Belo Horizonte, onde os números de casos e mortes eram absurdos. Pedi a Deus todos os dias para que abençoasse a minha família”.
No dia em que o Brasil completa seis meses desde o registro da primeira morte no país pela covid-19, o #Colabora conta um pouco da história e da angústia de seis cidadãos, de diferentes regiões, todos com mais de 60 anos, que abriram mão das suas rotinas e se isolaram para evitar os efeitos e as dores da mais terrível pandemia dos últimos cem anos. Maria Amélia, Delma, João Silva, Isabel, Mercê e Maria José são exemplos de vidas transformadas pelo coronavírus.
“Tem que obedecer a palavra e os médicos’’, Maria Amélia – 67 anos
Com a maturidade de quem se orgulha de já ser bisavó, Maria Amélia constata que, juntamente com o noticiário vem o sentimento de normalização: “A gente vai se acostumando com as coisas, né? Mas não pode, não é brincadeira’’. Talvez um dos motivos que a faça ficar em alerta é a lembrança da perda de pessoas queridas. Em apenas uma semana ela viu um casal de amigos partir. “Fazia 30 anos que os conhecia. Teve o óbito do homem e, uma semana depois, foi a vez dela’’. O sentimento de impotência por não poder velar os amigos chega. “É muito triste. Não podemos ir no enterro, tem que respeitar, né? Essa peste que veio ao mundo para acabar com pessoas de bem, pessoas inocentes, crianças, jovens’’.
A rotina de Maria Amélia na pandemia é muito simples. Além dos afazeres domésticos, ela retira um tempo de seu dia para rezar, fazendo da sua casa um templo. “Orei muito pelo Brasil e pelo mundo, pedindo a Deus que confortasse as pessoas que perderam as famílias, aqueles que ainda estão internados’’. Nas preces, não exclui ninguém. “Rezo pelos médicos, pelas pessoas que trabalham no hospital, pelos orfanatos, presídios, asilos’’, explica. “Tem que pedir por todo mundo, Deus intercede por todos’’.
Evangélica, Maria encontra refúgio nas palavras da Bíblia, que já anunciava, em passagens do Apocalipse, último livro, a fúria divina sobre a terra. “Vou dizer pra você: é só o começo. A Bíblia tá marcando peste, fome e guerra. A peste tá aí, né? A fome tá aí também. Gente desempregada, que ‘tá’ passando necessidade, mas ninguém ouve’’, ressalta Maria. “Fica em casa, ‘ninguém pode sair’, ‘usa a máscara’, ‘usa álcool gel’. Acham que sabem de tudo…E nisso tudo quem sofre são os médicos, as médicas, os enfermeiros, quem cuida dos pacientes’’.
Com a fé de quem viu muitas coisas mudarem ao longo do tempo, profetiza: “A doença tá indo embora, mas ela não vai embora esse ano. Vai ficar aí, só não vai ficar como está. Talvez o ano que vem, mas só quem sabe é Deus. Esse é o primeiro aviso de Jesus para as pessoas ficarem alertas, não ficar brincando com ele’’, diz. “Tem que obedecer a palavra e os médicos’’.
“Será que não terei trabalho? Meus animais vão passar necessidade? Será que vou pirar ficando sozinha o tempo todo?’’, foram algumas das interrogações abertas pela jornalista Delma Maiochi em Poços de Caldas, Minas Gerais, quando a pandemia foi decretada. Ela confessa que teve dificuldade em março para entender o que estava por vir. “Só quando vi o número de infectados subindo, entendi que seria algo mais complexo e perigoso’’, explica.
Rapidamente, viu o quão necessário seria se isolar. Não satisfeita com o protocolos da cidade, decretou um “lockdown’’ na própria casa. “As visitas cessaram, fiquei sem sair mesmo. Fiz compras de supermercado online e alguns outros pedidos também’’.
A higienização constante de meses atrás permanece como o pensado a partir do dia 16 de março. “Quando chegam as compras, lavo tudo com álcool ou detergente. Compro tudo o que posso pela internet’’. Mas houve uma flexibilização nesse período, conta. “Me arrisquei para ir ao banco só uma vez e também em uma consulta oftalmológica, devidamente paramentada’’. Uma das preocupações que mais afloraram foi sobre como a família ficaria. “Trabalhei tanto nestes meses, até muito mais que antes, que não deu muito tempo de pensar depois’’.
A pandemia tirou da comunicadora às ruas, o corpo-a-corpo com entrevistados durante as pautas. Tudo passou a acontecer por e-mail, Whatsapp e Messenger. Mas a rotina de casa fez com que Delma, mãe de gatos, ficasse mais tempo em casa, aproveitando a companhia dos felinos. “Meus bichos me salvaram, fazendo companhia e não me deixando pirar’’
Delma parece não ter expectativas positivas em relação a prováveis mudanças no pós-pandemia. “Sinto que o ser humano não tem noção de coletividade. A pandemia mostrou, na minha opinião, que a individualidade é uma característica muito forte nas pessoas. E o descaso com a vida própria e a dos outros, também’’.
“Não gosto muito de pensar nessas aglomerações, me dá agonia lembrar que o vírus anda solto e as pessoas são inconsequentes. Mas, o que fazer?’’, deixa no ar. Sendo parte do grupo de risco e mesmo levando à risca todas as orientações, a jornalista registra que o perigo é constante. “Esse vírus reage de forma diferente nas pessoas, sabe-se lá como seria comigo. É uma doença que não conhecemos, é muito preocupante’’.
Sobre o futuro? Espera viver. “Gosto de pensar que o futuro vai ser bom. Uma vacina vai chegar e vamos superar tudo isso. É triste demais pensar nas mortes e contaminações, mas espero que possamos conviver novamente com as pessoas, curtir as belezas deste mundo’’.
Delma chegou aos 60 anos no meio da pandemia, impossibilitando todas as comemorações e encontros. “Ah, foi chato né? Sem festa, sem o falatório da família de italianos’’, diz. Mas sem sombra de dúvida, o que mais sentiu falta foi dos abraços (“Isso foi o mais dolorido’’). “Teve drive-thru de bolo’’, ela ri. “Alguns familiares e amigos vieram de carro, mascarados, jogaram beijos’’, relembra. Um aniversário atípico, mas não inesquecível. “Guardamos os beijos e abraços para quando tudo isso passar’’.
“Ficaremos todos fragilizados”, João Silva – 69 anos
O funcionário público João Silva, de 69 anos, em Belém do Pará, viu suas expectativas de que o isolamento duraria pouco irem por água abaixo. “Achei que seriam no máximo quatro meses e acabaria”, conta. Pai de quatro filhos, dois estão com ele nesse período (testaram negativo para a covid-19), além da esposa. O momento mais próximo e diário com Lene, sua companheira, não trouxe questões muito significativas, ficando apenas na seara da ocupação de espaço na cozinha da casa.
João é portador de Parkinson, e os cuidados em casa tiveram de triplicar por fazer parte do grupo de risco. “Fazemos desinfecção na porta de acesso à rua, dos objetos, alimentos, embalagens e dos calçados”, completando que faz uso de máscaras e luvas em casa quando necessário. Suas saídas, nesses seis meses, só se deram para ir à farmácia e ao banco. Foi neste momento que ele se deparou com a rotina de quem tem pouco ligado para as precauções. “Senti apreensão e fiquei um pouco desanimado”, conta, jogando luz sobre o futuro, mas com ceticismo. “Espero que a vacina seja descoberta, mas ficaremos todos fragilizados”.
“Isso será muito grave’’ – Isabel Kristin, 64 anos
Foi a primeira frase que Isabel Kristin, administradora de negócios e projetos em arte e design em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, pensou. Ao longo de seis meses, só fez cinco saídas: para o médico, farmácia, oficina mecânica, mercado e para a entrega de um produto. “Eu estava atenta sobre a gravidade”, diz ela, que viu parte do seu trabalho ficar paralisada durante a pandemia. Individualmente, não teve tantas complicações ao passar para o digital, cenário onde já atuava, mas assume que o “x’’ da questão passou a se limitar, no entanto, ao nível do conhecimento de uso e equipamentos por seus clientes.
Deparando-se com o desrespeito às normas da Organização Mundial da Saúde, que preconiza o uso de máscaras, além de higiene das mãos e pouco contato, Isabel demonstra seu pesar. “Sinceramente, choro e me sinto muito triste. É como se o nosso (pessoas que ainda estão em isolamento) sacrifício fosse algo banal’’, lamenta.
Mesmo seguindo as orientações e precauções, não exclui a possibilidade de ser infectada “por alguma situação que não possa prever’’. Até o momento, nenhum de seus vizinhos e conhecidos testou positivo para o coronavírus. Nos últimos seis meses foi fundamental manter a serenidade. Isabel não teve um, mas alguns medos. “De não conseguir ver família (Isabel tem familiares no Rio de Janeiro e Minas Gerais) e também de não saber discernir prioridades em possíveis momentos difíceis’’. Isabel acredita que um dos complicadores se dá por outra pandemia: a propagação de informações falsas.
Dentro de casa, Isabel triplicou sua jornada de trabalho doméstico junto do marido, que também passou um período trabalhando de casa. “Teve muita higienização de itens de mercado que passaram a ser entregues em casa, todos do armazém do bairro, interrupção de ida a médicos para revisão de saúde, exames e prática de exercícios’’, conta. Cuidados que, agora, vão ser redobrados, pois o marido voltará ao trabalho externo.
“Temos uma bela oportunidade do resgate de valores, correção de rotas dos nossos rumos e a chance de exercemos a humildade que emana das parcerias e das ações colaborativas’’, diz. Para ela, as pessoas na última década estão vivendo de maneira mais “ansiosa e afobada’’. “Parar para refletir pode ser a cura’’, recomenda.
“Aprendi a ser mais tolerante’’ – Mercê, 63 anos
Maria Carvalho Lima ou, simplesmente, Mercê, mais curtinho para amigos e conhecidos, é analista ocupacional e mora na Zona Sul de São Paulo. Há seis meses, leva uma vida regrada por conta da pandemia, onde viu seu trabalho ficar ainda mais intenso, pois atende remotamente. E nem só de tristezas vive o momento: “Foi muito legal, até porque eu aprendi a usar ferramentas como Zoom, Hangouts Meet e Teams’’. Todas essas são plataformas para videoconferências que aumentaram suas demandas de uso no período de pandemia.
Trabalhando em frente ao computador diariamente e vendo familiares e amigos apenas por posts ou ligações, admite certa solidão. Perguntada sobre o que mais sentiu falta, não titubeou: “das reuniões com os amigos e a família’’.
Receosa, não esconde que, apesar de confinada com o marido, teme o contágio do novo coronavírus. “Tenho medo, mas estou cuidando de todas as formas’’, diz, completando que alguns familiares (sobrinhos e cunhadas) foram infectados.
Quando despontou a notícia de pandemia, acreditava que “tudo ia passar logo’’, mas as certezas mudaram de rumo. Isolada com o marido de 65 anos, diz que esse momento foi o de maior tempo junto do companheiro. Se a relação mudou? “Mudou, porque eu aprendi a ser mais tolerante’’, conta.
Pela TV e redes sociais, se informa sobre o que acontece fora de seu universo particular. Resume seus sentimentos em um única frase: “Sinto revolta com as pessoas que não estão levando a doença a sério’’.
O otimismo de março parece ter resquícios. Mercê acredita que num futuro, o mundo pode ser melhor. “Tudo isso vai passar somente com a vacina’’, diz ela, depositando na mão da medicina e da ciência todas as suas esperanças.
“Achei que não ia passar rápido porque tinha muita gente morrendo no mundo’’, Maria José – 76 anos
“Pensei que ia ser infectada’’, relata a aposentada Maria José Domingos. Moradora da comunidade Caranguejo Tabaiares, localizada na Ilha do Retiro, Zona Oeste do Recife, ela tem levado os últimos seis meses seguindo o isolamento com afinco. “Desde que começou, não vou a lugar nenhum. Tudo o que preciso fazer meu netos e minhas filhas fazem’’. Ao todo, Maria teve seis filhas, mas uma faleceu em janeiro desse ano.
Ela conta que teve notícia de vizinhos e amigos infectados pelo vírus em Tabaiares. Um dos casos foi quase dentro de casa, quando o genro pegou. “Tive medo pela vida dele, da minha filha e do meu neto’’, relembra, dizendo que ficaram isolados por 16 dias ininterruptos. Tendo visto de perto o sofrimento de quem ama, Maria dispara: “Tenho medo dessa doença demorar mais e mais’’. No entanto, não deixa de projetar no amanhã um país possível. E para todos. “Eu penso em ter um Brasil digno, que ache a cura, que encontre a vacina’’. Se ela acredita que virá assim, de graça? “Não. Só se tivermos cuidado uns com os outros’’.