Bolsonaristas atacam educação democrática em nome de um falso moralismo. Ao Vermelho, professoras da USP alertam para impactos dessa investida no desenvolvimento humano
Por Priscila Lobregatte, compartilhado do Portal Vermelho
Publicado 15/04/2024 16:44 | Editado 16/04/2024 10:39
Protesto durante governo Bolsonaro. Foto: @vinimlo / Estudantes Ninja, via Brasil de Fato
Assim como em outros países onde a extrema-direita se fortaleceu nos últimos anos, estando ou não no poder central, no Brasil o bolsonarismo segue ativo, mesmo tendo perdido a presidência da República. Em sua cruzada anti-democrática e autoritária, a guerra cultural é elemento central e dentro dela, está a batalha pela educação, pela formação de “corações e mentes” em conformidade com a visão de mundo reacionária desse segmento.
Não faltam elementos a mostrar o empenho da extrema direita em conquistar de vez este flanco. Em seu arcabouço de investidas estão as “escolas sem partido”, as escolas cívico-militares, o combate à chamada “ideologia de gênero”, a censura a livros e atividades educacionais, o denuncismo contra professores que supostamente estariam “doutrinando” os alunos, o ensino em casa e até mesmo o novo ensino médio, visto muitas vezes como uma reforma voltada a modernizar conteúdos e métodos, mas que, no final, instrumentaliza a educação e reduz a margem para o estímulo ao pensamento crítico.
“Se olharmos para a história, não faltam exemplos de tomada da educação como área privilegiada para consolidar visões de mundo de diferentes grupos sociais. Não seria diferente com esse conjunto de atores que identificamos como a ‘extrema direita bolsonarista’. Uso aspas porque os grupos que se reuniram sob esse título já andavam por aí propondo projetos e medidas reacionárias na educação, como a participação da polícia militar na gestão de escolas públicas ou o ensino domiciliar”, explica, ao Portal Vermelho, a professora Márcia Pereira Cunha, pesquisadora associada do Laboratório Sophiapol (Université Paris-Nanterre) e do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.
Márcia aponta que “com as escolas cívico-militares, tratava-se de controlar e com a educação domiciliar, de proteger ‘os de bem’. Então, grupos conservadores encontraram no bolsonarismo uma plataforma a partir da qual amplificaram seus discursos e, na educação – nas escolas e universidades –, o espaço em que podem encenar, ao mesmo tempo, o que apresentam como a recuperação de um passado idealizado e a construção de um futuro próspero, ambos em oposição a um presente descrito como moralmente degradado”.
Mobilização contínua
Mesmo que afastados do controle do Ministério da Educação, esses grupos continuam atuando nos parlamentos, governos locais e na sociedade civil como um todo.
Entre os exemplos mais recentes estão a mobilização secreta que fizeram para influenciar a Conferência Nacional da Educação (Conae), no começo do ano, denunciada pelo The Intercept Brasil; a eleição do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) para a presidência da Comissão de Educação da Câmara e as tentativas de censura ao livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório.
A obra foi barrada em escolas do Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná, governados, respectivamente, por Eduardo Riedel (PSDB), Ronaldo Caiado (União Brasil) e Ratinho Júnior (PSD), todos alinhados, em maior ou menor grau, ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Além dessas, houve uma tentativa de barrar o livro por parte de uma diretora de escola do Rio Grande do Sul, estado onde o bolsonarismo também é forte. A publicação venceu o prêmio Jabuti de 2021 e faz parte do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), do MEC — mas, para a diretora, o vocabulário usado seria de “baixo nível” e o livro não deveria figurar na lista.
As censuras ganharam repercussão nacional e trouxeram de volta à arena pública o debate sobre a gravidade da proibição de obras literárias por setores da extrema direita.
“Dois aspectos chamam atenção nesta história. Primeiro: o tema central do livro O avesso da pele é a denúncia da presença do racismo na sociedade e nas relações sociais, destacando que esse racismo ressoa nas organizações escolares e é estruturante na polícia. Pode-se até aventar que este possa ser o motivo real do incômodo causado pela obra, e não o uso de vocabulário de ‘baixo calão’”, diz, ao Vermelho, Sandra Reimão, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP.
Outro ponto salientado pela professora é que “as pessoas que agiram para que o livro fosse recolhido o fizeram explicitamente, com estardalhaço, ‘colocando a voz no trombone’, em nome da ‘moral e dos bons costumes da família brasileira’”.
Para ela, esse “‘bater o tambor’” contra o que eles chamam de ‘dissolução de costumes’ é uma estratégia para estimular aqueles que pensam da mesma forma e mostrar que ‘eles estão atentos’ – o que é muito significativo em um país que vive um momento tão polarizado como o nosso”.
O intuito da direita, pondera a professora, “é promover um discurso de intolerância e ódio em uma franca cultura de vigilância e censura. A disseminação ruidosa de um discurso louvador da intolerância recoberto pela aparente ‘proteção a nossas crianças e jovens’ ressoa na sociedade como um todo e põe em risco a cidadania cultural de todos”.
Essas últimas investidas acabaram amargando algumas derrotas. Após a repercussão negativa, Paraná e Goiás resolveram devolver o livro às escolas. Além disso, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) decidiu adotar o livro como leitura obrigatória em seu vestibular. Como reflexo do debate suscitado, a venda da obra cresceu 6.000% até meados de março, conforme a BookInfo, uma startup do setor livreiro. E pelas redes, era comum ver pessoas e grupos de estudantes tirando foto com o livro em apoio ao autor.
No caso da Conferência Nacional de Educação (Conae), os debates ocorreram sem maiores percalços, apesar das investidas, sobretudo de lideranças das bancadas evangélicas e do agronegócio.
Vale destacar, ainda, que Nikolas Ferreira, logo após assumir a presidência da Comissão de Educação, não conseguiu aprovar proposta de moção de repúdio a um professor de Santa Catarina que teria atacado Jair Bolsonaro (PL) em sala de aula. Ainda que pequeno e localizado, o revés traz o valor simbólico da resistência.
Outras mudanças recentes também se mostram relevantes como forma de frear o ímpeto da extrema direita, ainda que com limites por ela impostos, sobretudo no seio da sociedade. O programa de escolas cívico-militares, projeto que vem desde os anos 1990 com avanços e recuos e ganhou impulso sob Bolsonaro, foi revogado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de maneira que as escolas com esse tipo de método foram reintegradas à rede regular de ensino. No entanto, estados como Rio Grande do Sul e São Paulo, por exemplo, resolveram bancar a iniciativa e dar prosseguimento ao programa por conta própria.
No caso do ensino domiciliar, tramita no Senado projeto de lei de 2022 do deputado Lincoln Portela (PL-MG). Em maio daquele ano, pesquisa Datafolha apontou que 80% dos brasileiros discordam que as crianças sejam retiradas da escola para serem educadas em casa. Ainda assim, esta segue sendo uma das bandeiras favoritas da extrema direita.
Resistência e luta
Cabe ressaltar que, mesmo importantes, os percalços mais recentes não vão arrefecer o ânimo doutrinário e messiânico da extrema direita. Nem devem baixar a guarda dos que defendem uma educação plural, diversa e democrática. Afinal, a luta é árdua e ainda longe de ser vitoriosa, mas essencial para que a educação evolua sem amarras morais, religiosas e militaristas.
Para a professora Márcia Cunha, os prejuízos que podem resultar das investidas da extrema direita são tantos que fica até difícil enumerar. “Talvez a formulação mais geral seja a negação do direito a um desenvolvimento pleno. Nesse sentido, a reforma do ensino médio nos termos e condições em que está sendo implementada, não é menos grave, embora seja menos estridente”, argumenta.
A proposta foi enviada pelo governo ao Congresso em outubro do ano passado. Em dezembro, o relator Mendonça Filho (União-PE) apresentou alterações a pontos propostos pelo Ministério da Educação, entre os quais a carga horária prevista para matérias obrigatórias, o que desagradou os governistas. Em março, a Câmara aprovou o projeto após acordo entre governo e parlamentares. Agora, ele tramita no Senado.
Para além das questões envolvendo o novo ensino médio, a professora destaca outros prejuízos causados pelos ataques da extrema direita à educação. “De maneira mais imediata, o discurso da dita ‘doutrinação de esquerda’ envenena a relação entre professor e aluno, a ‘ideologia de gênero’ autoriza todas formas de discriminação e violência de gênero, a polícia militar na escola criminaliza formas de ser, estar e experimentar o mundo”, afirma.
Márcia alerta que, além dos espaços e canais em que se mostraram atuantes nos anos anteriores, esses grupos “têm se mostrado muito ativos tanto nas casas legislativas — com a apresentação de propostas como versões disfarçadas do Escola sem Partido em alguns estados —, quanto na ocupação de espaços da sociedade civil, como os Conselhos Tutelares em São Paulo que, embora não sejam da educação, são importantes para a proteção do mesmo público infanto-juvenil”.
Ao mesmo tempo, salienta que “é preciso não perder de vista as bases em que se apoiam esses atores e grupos mais ruidosos, tanto os que sob a justificativa de modernizar o ensino, o empobrecem, quanto organizações internacionais que incidem sobre conteúdos e a organização escolar. Em alguma medida, essas formas diversas se aproximam e colaboram com a produção de uma concepção normatizadora de educação”.
Mesmo nesse cenário, e considerando as condições adversas em que muitos trabalham, “professores lutam para, diariamente, fazerem das escolas um lugar de ampliação de horizontes e possibilidades; de instigação, curiosidade, questionamento. Tudo isso é colocado sob suspeita por essas propostas baseadas no controle e na punição”, conclui.