Por ITDP Brasil, compartilhado de Projeto Colabora –
Cidades investem em ciclovias e ciclofaixas temporárias para acelerar a recuperação das atividades econômicas e sociais
Pouco mais de três meses depois de ser declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como uma pandemia e pouco mais de seis meses desde o primeiro caso de covid-19, ainda é difícil prever com exatidão quais as transformações resultantes do espalhamento planetário do SARS-CoV2 e de sua eventual permanência, seja pela falta de remédio ou vacina, pela dúvida quanto ao período de imunidade após a doença ou por eventuais mutações do vírus. Sabemos, no entanto, que os impactos na economia, na saúde, na geopolítica, na forma de organização das cidades e, também, nas instâncias mais cotidianas de nossas vidas já são significativos e devem provocar mudanças permanentes no mundo como conhecemos. E essa pode ser uma grande oportunidade de mudança, afinal esta pode ter sido a primeira pandemia do século XXI, mas não a última. Por isso é importante que as mudanças busquem criar ambientes mais sustentáveis e seguros sem deixar de lado a essência gregária da espécie humana e a longa trajetória de vida em sociedade.
Até o momento, a única forma de reduzir a disseminação do vírus é adotar medidas de isolamento social. No entanto, mesmo em cenários de quarentenas intermitentes previstas para os próximos meses ou anos até a chegada de uma eventual vacina, é certo que a mobilidade urbana continuará a existir e que as pessoas continuarão realizando deslocamentos. As políticas para este futuro devem priorizar formas mais seguras para o transporte, reduzindo as possibilidades de transmissão do vírus e diminuindo a pegada humana sobre os diversos biomas e sobre o planeta. Diversas cidades têm apostado na bicicleta como modo fundamental neste futuro, seja implantando ciclovias temporárias, acelerando a construção de infraestrutura definitiva ou adotando políticas de incentivo. Uma plataforma colaborativa, em inglês, reúne um amplo catálogo de iniciativas pelo mundo.
O uso de bicicletas, bem como a mobilidade a pé, tem uma vantagem importante sobre os demais modos: acontece ao ar livre. Estudos recentes apontam que as taxas de transmissão em ambientes abertos são significativamente inferiores àquelas encontradas em ambientes fechados. Uma pesquisa japonesa encontrou taxas de transmissão de 12,5% em ambientes externos, contra 75% de contaminação em pessoas que conviveram em ambientes fechados. Além disso, já existe alguma certeza nos meios científicos sobre o aumento do risco de contágio ser proporcional ao tempo de permanência em um determinado ambiente junto com outras pessoas, e isso também favorece a bicicleta, que não sofre os efeitos do congestionamento.
No entanto, uma variável é fundamental para que o potencial da bicicleta nos deslocamentos urbanos esteja aliado à prevenção do contágio: garantir espaço para os ciclistas. Ciclovias estreitas, subdimensionadas ou mesmo tempos semafóricos que impliquem em longa espera podem expor os usuários à permanência desnecessária em um só local, aumentando o risco de transmissão. A cidade de Berlim começou a implantar ciclofaixas temporárias em abril. Um dos projetos-piloto aconteceu no distrito de Friedrichshain-Kreuzber e resultou em um guia sobre como implementar ações semelhantes em 10 dias. Considerando a necessidade de distanciamento entre os ciclistas, a largura recomendada de uma faixa unidirecional para bicicletas é de 3m.
Em cidades que já passaram ou que estão saindo do primeiro pico da pandemia, a bicicleta tem ganhado espaço. O plano Strade Aperte, de Milão, prevê 35km de ciclovias até o final deste ano, sendo que 22km estarão prontos até o final do verão no hemisfério norte (setembro), além de Zonas 30 e Ruas Abertas em diversos bairros da cidade. As medidas têm como objetivo aumentar a segurança e o conforto de pedestres e ciclistas, proporcionando um espaço seguro para os deslocamentos, para o lazer e para a atividade física.
O Reino Unido anunciou no início de maio um pacote de 2 bilhões de Libras para o fomento à bicicleta nos próximos 5 anos. O objetivo é dobrar o uso do veículo até 2025. O governo federal também publicou uma série de diretrizes para a implantação de ciclovias temporárias, expansão de calçadas e outras medidas de redistribuição do espaço público que sirvam para acomodar um número maior de pedestres e ciclistas. Além disso, a norma isenta a implantação de ciclofaixas temporárias por autoridades locais de processos administrativos e consultas públicas exigidas regularmente para as intervenções no sistema viário: basta implantá-las.
Na capital da Inglaterra, o programa Streetspace for London, que teve início em 6 de maio, adotou três estratégias para acomodar um crescimento esperado de 10 vezes no número de quilômetros pedalados pelos habitantes: construir ciclovias rapidamente, utilizando materiais temporários, em traçados capazes de reduzir a lotação do transporte público; redução do tráfego motorizado em áreas residenciais para facilitar a caminhada e o uso de bicicletas; e a transformação das centralidades para fomentar a economia local e reduzir as distâncias percorridas. Tanto o governo federal quanto a prefeitura de Londres estimam que, para manter os requisitos de distanciamento social necessários, o transporte público será capaz de transportar entre 10% e 15% dos passageiros do que transportava antes da COVID-19.
A França também olha para a bicicleta como uma aliada estratégica para evitar a lotação do transporte coletivo e reduzir as possibilidades de transmissão do coronavírus. Indiretamente, a estratégia busca frear o aumento no uso de automóveis, que poderiam servir de alternativa para uma parcela dos passageiros de ônibus, metrôs e trens. O Ministério da Transição Ecológica e Solidária anunciou no final de abril um pacote de 20 milhões de Euros para estimular o uso de bicicletas, compreendendo verba para a implantação de infraestrutura, descontos de até 60% em impostos de estabelecimentos que implantem bicicletários e uma ajuda de 50 Euros para qualquer cidadão que deseje consertar a sua bicicleta no período de saída da quarentena. O aumento no uso de bicicletas na França já é uma realidade: mesmo com a pandemia e o medo de sair de casa, foram feitas 11% mais viagens em bicicleta na segunda quinzena de maio em comparação com o mesmo período de 2019.
Em Paris foram implantados desde maio 50 quilômetros de ciclovias temporárias, priorizando os trajetos das linhas de metrô mais congestionadas. Além disso, em um trecho bastante simbólico, a Rue de Rivoli, que liga a praça da Bastilha à Concórdia, foi bloqueada para automóveis e aberta exclusivamente para pedestres, ciclistas e ônibus. Por conta da pandemia, o “Plan Vélo” da capital francesa será acelerado e agora prevê 650 novos quilômetros de faixas para bicicletas até 2024, removendo 72% das vagas de estacionamento de carros em via pública.
Nas Américas, diversas cidades também vêm adotado medidas para a retomada das atividades após o primeiro pico da pandemia. A Cidade do México começou a implantar 54 quilômetros de ciclovias temporárias na Avenida Insurgentes (37 quilômetros em cada sentido), acompanhando o traçado do BRT que corta a cidade de Norte a Sul.
Bogotá foi a primeira cidade do continente a implantar ciclovias temporárias, ainda em março. Hoje são 80 quilômetros de faixas para bicicletas, geralmente acompanhando o trajeto do Transmilenio, o BRT da capital colombiana. A cidade possui ainda 550 quilômetros de infraestrutura definitiva e, no final de maio, reduziu o limite de velocidade motorizada para 50km/h em toda a cidade. Lima (Peru), Guadalajara (México) e Quito (Equador) são outros exemplos de cidades que adotaram as ciclovias temporárias.
A cidade de Oakland (EUA) tem apostado na estratégia das ruas abertas, restringindo o tráfego motorizado de passagem em cerca de 32 quilômetros de vias da cidade no programa Slow Streets. Com isso, a cidade pretende oferecer espaço de atividade física para seus habitantes, aliviando os efeitos colaterais do confinamento para a saúde e o bem estar.
No Brasil, mesmo sem ter chegado ao primeiro pico da pandemia de COVID-19 e com número de mortes em crescimento, muitas cidades começaram a suspender suas quarentenas e a reabrir atividades não-essenciais. Poucas cidades, no entanto, apresentaram até agora algum plano ou proposta que contemple a mobilidade por bicicleta no contexto da retomada das atividades. Até onde foi possível apurar, apenas Curitiba implantou uma estrutura cicloviária temporária, com funcionamento restrito aos sábados.
As cidades de Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Fortaleza, Porto Alegre, Niterói e Recife estudam rotas de ciclovias temporárias. Em Belo Horizonte, a BHTrans deve concluir até o final de junho a implantação de uma ciclovia temporária com cerca de 26 quilômetros ligando o bairro do Barreiro ao final da Avenida dos Andradas. A ciclovia irá conectar diversos trechos da malha existente, fortalecendo o caráter de rede cicloviária na cidade. A estrutura estará aberta durante todos os dias, sem prazo final para desativação.
Em Porto Alegre, a EPTC estuda percursos que totalizam cerca de 25 quilômetros de ciclovias temporárias. No Recife, sociedade civil, prefeitura e governo do Estado discutem a priorização de trechos do Plano Diretor Cicloviário Integrado e implantação de rotas temporárias no contexto da pandemia. A Prefeitura de Niterói também planeja acelerar a implantação de alguns trechos de infraestrutura previstos no Plano de Mobilidade Urbana e adicionar rotas temporárias para ciclistas.Em Fortaleza, a administração está priorizando as ciclofaixas de rápida execução previstas no Plano Diretor Cicloviário. Atualmente a cidade conta com 298,6 quilômetros de malha cicloviária. Entre maio e junho, foram implantados 10,7 quilômetros e outros 17,6 tem obras em andamento.
No Rio de Janeiro, a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET-Rio) e o Centro Integrado de Mobilidade Urbana do Rio de Janeiro (CIMU), que reúne representantes de órgãos públicos, sociedade civil e operadores de transporte, tem discutido ações de mobilidade para o processo de relaxamento da quarentena. O grupo tem estudado a implantação de rotas cicloviárias experimentais em diversas regiões da cidade. No centro da cidade, o projeto de um Distrito Neutro (região onde as atividades não produzam excedente de carbono), que já estava em desenvolvimento pelo Escritório de Planejamento da Casa Civil em 2019, tem potencial de se tornar uma região coberta por uma extensa malha cicloviária a partir da pandemia. O perímetro do Distrito Neutro abrange a área do projeto Ciclo Rotas Centro, desenhado em 2012 pelo ITDP Brasil, pela Associação Transporte Ativo e pelo Studio-X Rio. A proposta em discussão pela Prefeitura aprimora e expande a malha cicloviária prevista no Ciclo Rotas Centro, criando importantes conexões na região central da cidade.
Bicicleta e transporte público no caminho da resiliência
No que diz respeito às políticas de mobilidade e sua interseção com a saúde pública, conseguimos compreender até agora que o transporte público não poderá ser um local com alto índice de contaminação e que, para isso, não bastam a utilização de máscaras ou higienização: será necessário transportar menos passageiros por veículo, já que a principal forma de transmissão é através de partículas respiratórias que transitam entre uma pessoa e outra.
A bicicleta pode ser uma grande ferramenta para a diminuição da lotação do transporte público e as ciclovias temporárias têm esta finalidade, sendo implantadas nos eixos principais para oferecer uma alternativa aos passageiros. As cidades brasileiras enfrentam uma dificuldade adicional: a ausência de subsídios e até mesmo de controle público sobre boa parte dos serviços de ônibus, trens e metrôs.
Se continuar a ser encarado prioritariamente como um negócio privado, o transporte público está fadado a custar muito caro para os passageiros, se tornar irrelevante pela baixa eficiência ou se transformar no principal local de contaminação. A manutenção deste caminho terá como pena o aumento significativo do uso de carros particulares e motos, aumentando a poluição, as mortes no trânsito e a ineficiência econômica da mobilidade urbana. Neste caso, o colapso pode ser sistêmico.
As discussões sobre a mobilidade no mundo pós-coronavírus ainda estão no começo, mas a pandemia se apresenta como um laboratório de desenvolvimento sustentável e resiliência. Neste artigo, o pesquisador Manu Fernández nota que a experiência da quarentena apresentou uma perspectiva magnífica sobre o desequilíbrio na distribuição do espaço urbano: apesar de quase não haver carros circulando, a maior parte das cidades não adotou nenhuma ação estratégica para redistribuir este espaço ocioso e facilitar o deslocamento de pessoas a pé ou em bicicleta. O espaço continua disponível e é bem provável que as cidades que consigam aproveitar esta oportunidade para, entre outras ações, impulsionar o uso de bicicletas terão recuperações mais rápidas e duradouras de suas atividades econômicas e sociais.
Fundado em 1985, o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP, da sigla em inglês para Institute for Transportation and Development Policy) é uma entidade sem fins lucrativos que promove o transporte sustentável e equitativo no mundo, concentrando esforços para reduzir as emissões de carbono, poluição atmosférica, ocorrências de trânsito e a desigualdade social. Presente no país desde 2009, o ITDP Brasil possui atuação nacional, inspirada pelos oito princípios do Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável que estimula uma ocupação compacta e com uso misto do solo, com distâncias curtas para trajetos a pé e próxima a estações de transporte de alta capacidade. São eles: caminhar, usar bicicletas, conectar, usar transporte público, promover mudanças, adensar, misturar e compactar.