Por Aydano André Motta , publicado em Projeto Colabora –
Em defesa do jeito carioca de viver, Raphael Vidal transforma eventos em atos políticos
O domingo 30 de abril amanheceu cinzento e fúnebre, com o anúncio da morte de Belchior, ocorrida na madrugada – e aquilo não podia ficar assim. Fãs cariocas, inconsoláveis, resolveram que teria de ser feito um “belchioraço”, em homenagem ao autor de “A palo seco”, “Como nossos pais”, “Galos, noites e quintais”, entre outras joias da MPB. Mas onde?
Logo, alguém apresentou a solução: “Vamos ligar para o Vidal!” Naquela mesma noite, a Casa Porto abriu em edição extraordinária para perto de 40 apaixonados entoarem em coros viscerais as canções do ídolo. Com cerveja gelada, caipirinha e comidinhas cariocas para acompanhar, a reverência entrou pela madrugada de segunda.
Mais uma aventura do festeiro que transforma seus eventos em atitude, movimento, tomada de posição. E hoje está assumidamente na luta contra o bispo licenciado da Igreja Universal Marcelo Crivella, o prefeito do Rio, e tudo que ele representa. “Desde que ele assumiu, o retrocesso avançou”, constata, explicando que a simples presença dele à frente do Executivo carioca avaliza opressões. “Sou contra o simbólico do que ele representa. É um desastre para tudo que a gente entende como cidade”, ataca.
Pelo sexto ano, a região portuária abriga um evento em defesa deste Rio de Janeiro que as forças em torno de Crivella tentam sufocar, na visão de Vidal (e de muita gente boa). O FIM – Fim de Semana do Livro no Porto – acontece neste fim de semana, consolidando sua vocação de “festival do pensamento carioca”, na definição imbatível do escritor Alberto Mussa. “Para mim, é político”, assume Vidal. “Em vez de manifestação, faço uma festa”, ratifica, explicando que “a conta nunca fecha”, mas ele segue em frente – cariocamente.
Normal, para quem nasceu na classe média suburbana, acostumado, desde cedo, aos solavancos da vida. Nascido em Madureira, Vidal cresceu em Vista Alegre, mas saiu de casa aos 13 anos, por conta de desavenças familiares. “Era um nerd, não gostava de festa, botequim”, recorda, como se falasse de outra pessoa. A reviravolta se deu quando ele foi morar com uma tia, e, conduzido pelos primos, descobriu a rua e a umbanda. Filho de Oxóssi, o orixá caçador, logo entendeu que construiria a vida de maneira independente, e nada convencional.
Aos 14 anos, fundou o “Jornal Local”, publicação de bairro, que falava da região de Irajá, na qual fazia, simplesmente tudo – conteúdo, diagramação, a área comercial… Durou até os 17, quando ele entrou na Filosofia da UFRJ, mudou-se para Tijuca e fez santo, já no candomblé. Além de se casar pela primeira vez. Para se sustentar, vendia contos em forma de carta, no Paço Imperial.
Cultivava, então, o sonho de ser editor – tanto que lançou, em 2000, a revista literária “Bagatelas”, com artigos de escritores dos países de língua portuguesa. Para dar peso ao projeto, inventou um assessor de imprensa, Jorge Souza, para cuidar da divulgação. Era ele mesmo. Publicou artigos de astros como o cubano Pedro Juan Gutierrez e ajudou a lançar talentos brasileiros como Marcelino Freire e Marçal Aquino.
A “Bagatelas” pavimentou a conexão entre a literatura e a festa, com a roda de conversa, criada por ele, na Livraia Imperial, no Paço. “Logo na primeira, com o Sérgio Sant’Anna, percebi: era aquilo que gostava de fazer”, relembra Vidal. Marcelo Lachter, o dono da livraria, entendeu a “pegada” do funcionário e o deslocou para um empreendimento: a divisão de Camisetologia (é isso mesmo, você não leu errado) da Imperial. “Aquilo me estimulou a ser maluco”, resume, entre garfadas de um divino frango ensopado com aipim, no Botequim do Joia, pé-sujo num canto onde o Porto Maravilha, o projeto de reurbanização criado na administração Eduardo Paes, não chegou. “Estou fazendo dieta…”
Outra amiga, Luise Campos, foi responsável por mais um pilar na história do festeiro – o Morro da Conceição, elevação parada no tempo, entre o Centro e o Porto carioca. Vidal mudou-se para a casa que ela deixou, no 51 da Rua Jogo da Bola. “Um lugar com senso de comunidade enorme”, descreve, falando do seu canto no mundo. Ele passou a fazer, aos domingos, um almoço de portas abertas, para quem não tinha família perto.
Paralelamente, trabalhou na editora científica Vieira & Lent e na Palas – “Menos no Dia de São Jorge, no dia 20 de setembro, meu aniversário, e em 2 de dezembro, Dia Nacional do Samba”, esclarece –, realizando o sonho adolescente de entrar para o mercado literário. A vocação festeira seguiu, turbinada pelo cotidiano brejeiro do Morro da Conceição. Vidal passou a ser responsável pela festa junina do minibairro, até que, em 2012, teve a ideia de realizar o festival de livros que misturasse botequim, bate-papo e samba – numa palavra, festa. Surgia o FIM.
Não podia, claro, ser simples. A Companhia de Desenvolvimento do Porto deu apoio institucional e algumas editoras se associaram – mas faltava o de sempre: dinheiro. Ele, então, resolveu ligar para o 1746, o número de reclamações da prefeitura carioca, e pedir patrocínio. “A telefonista não entendeu nada, mas me passou para a coordenação de livros e bibliotecas”, relata. “De lá, cheguei ao (Emílio) Kalil, então secretário de Cultura, e arrumei R$ 35 mil”. Contratou 50 moradores do Morro da Conceição como assistentes de produção e o evento aconteceu, num sobrado (era a semente da busca por um lugar para as festas, que daria na Casa Porto).
No dia seguinte do primeiro FIM, Vidal recebeu – e aceitou – convite para ser produtor cultural do recém-construído Museu de Arte do Rio (MAR) na Praça Mauá. Cercado de obrigações burocráticas, ficou infeliz como poucas vezes, até que, numa tarde, tomando chope num botequim próximo, encontrou um amigo a caminho de entregar o segundo andar de um espaçoso sobrado no lindo Largo de São Francisco da Prainha. Vidal resolveu assumir o lugar – voltou ao MAR e pediu demissão. Com o dinheiro, abriu a Casa Porto, em outubro de 2013. Espaço para debates, shows e eventos culturais funciona de segunda a sexta; nos fins de semana, é alugada para festas privadas.
Além disso, ele realiza no Beco das Sardinhas, desde 2016, a festa junina “Pois era Noite de São João”. Além das barraquinhas e da música típica, o “furdunço” oferece palestras sobre cultura popular, com craques como Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Fica, claro, lotado! Em 2017, ainda realizou festa em homenagem a São Cristóvão, na igreja no bairro homônimo. Outro sucesso.
A conta jamais fecha, mas Vidal – chamado por 11 entre 10 amigos de “maluco fundamental” – vai em frente. Lamenta a falta de consciência dos frequentadores, que acabam comprando em camelôs nas cercanias dos eventos, prejudicando a receita. “É algo predatório”, reclama. “As pessoas precisam entender que a festa é de graça, não gratuita. Temos despesas a pagar”, alerta.
Nada que desanime o pai de três meninos – Jorge, 8 anos, Francisco, 6, e João, 2 – que, aos 35, caminha para o segundo casamento, com a professora Thais Bastos. Por enquanto, mora com a mãe, 60 anos, Glória, e a avó, Eidy, na casa do Morro da Conceição. Vem de lá a energia que sustenta a luta por um Rio de Janeiro que vive pela rua, não domesticado, alegre, musical, sensual, criativo, abusado. Os predicados que vencem todos os (muitos) pesares para sustentar a cidade apaixonante.
Se o bispo encarar, vai perder.