Emicida: “Pior coisa é você perguntar as horas, e a pessoa esconder a bolsa”

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Portal Geledés, reproduzindo Júlia Dias Carneiro e Renata Mendonça, no UOL – 

Leandro Roque de Oliveira era chamado de “macaco” pelos colegas de escola. Não raro, o seu cabelo crespo era alvo de chacota. Dava raiva, mas ele não sabia como responder –então, dava socos. Até se cansar de brigar e abandonar a escola na terceira série. Os anos passaram, e Leandro virou Emicida. E, agora, tem na ponta do lápis a resposta para os comentários que ouvia na escola –e que ainda são frequentes. O “matador de MCs” –origem do apelido Emicida– usa o rap para “matar” aos poucos o racismo que ele mesmo ainda sente na pele “toda vez que vai pegar um táxi”.

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“Em geral, as pessoas não conseguem entender o que é. A pior coisa do mundo é alguém ter medo de você, e você não representa ameaça nenhuma para essa pessoa. Você chegar para perguntar que horas são, e a pessoa esconder a bolsa”, disse o rapper em entrevista à BBC Brasil. “Para mim, o racismo é o tema mais urgente hoje no Brasil”, opinou.




Nascido em um bairro pobre da zona norte de São Paulo, o rapper conta que cresceu “zombando da morte” em um ambiente onde ser abordado –e até agredido– pela polícia era coisa corriqueira. “Era tão normal, que a gente falava disso e ria depois”, diz. “Salvo pelo hip-hop e pela leitura”, segundo ele próprio, o rapper não quis se distanciar da realidade que canta em sua música e hoje mantém a sua gravadora independente –Laboratório Fantasma– em Santana, perto da “quebrada” onde nasceu.

Agora que acumula milhões de visualizações em clipes no YouTube e faz shows até na Europa, Emicida se sente na obrigação de falar sobre racismo. “Todo mundo está acostumado, na realidade brasileira, a ver os pretos numa prisão perpétua atrás de uma vassoura”, afirma.

No novo álbum, “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa“, Emicida é veemente nas críticas ao racismo, especialmente na música “Boa Esperança”, que teve um polêmico clipe mostrando uma rebelião de empregados domésticos contra patrões em uma mansão. O disco também mergulha na cultura africana, que Emicida foi conhecer de perto na viagem ao continente e que lhe serviu de inspiração.

No papo com a BBC Brasil, o rapper falou sobre racismo, política, redução da maioridade penal e a chacina que deixou 18 mortos na periferia de São Paulo no mês passado, entre outros temas.

Pergunta – Você cresceu na periferia em um ambiente violento. Como isso influenciou a sua vida e o seu trabalho?
Emicida – Eu nasci num bairro chamado Jardim Fontalis (zona norte paulistana), bem pobrinho. Meu pai morreu quando eu tinha 6 anos, minha mãe se viu obrigada a criar a gente sozinha, eu mais três irmãos. Hoje é um bairro que tem bastante gente, asfalto recente se for ver, lojas, casas, mas quando cresci não tinha nada. Cresci ali, como eu falo na música, zombando da morte, andando no meio do fio da navalha. Só que acho que o que salvou a minha vida foram duas coisas, o hip hop e a leitura, as histórias em quadrinhos. A leitura começou a abrir um outro universo para mim. Aquilo começou a ocupar meu tempo de uma maneira tão grande, que eu comecei a me afastar dos “bagulho ruim” que tinha em volta.

Você já disse que era comum para você ver violência ao seu redor e que era comum ver corpos com sangue nas ruas. Como foi viver isso na infância?
Acho que quando você nasce num bairro violento, a pior coisa que aquele ambiente faz para você é destruir a sua humanidade. E isso é uma coisa que é incomensurável, não tem como você quantificar o quanto de compaixão aquela pessoa perdeu por estar em um ambiente muito agressivo. A gente está falando de uma vida num barraco onde, do lado, o cara batia na mulher dele e você ouvia tudo aquilo com 4 anos de idade. De repente você desce a escada e tem uma poça de sangue no corredor e você fica, tipo, mano…

Só que hoje, olhando daqui, desse ambiente com a barriga cheia, com a internet rápida, com a cama quentinha, você fala mano, isso é muito bizarro, uma criança não devia estar ali. Só que naquela época, tudo isso era muito normal. Esse negócio de sair para ir para escola e ter um corpo morto e você pular aquele corpo e seguir como um dia comum era normal. Se você vir isso nos Jardins (bairro nobre de São Paulo), a pessoa tem que fazer terapia. Com nós, é normal. Infelizmente, é tão corriqueiro, que você acaba não dando a importância que aquilo tem, não dá mais o desespero que aquilo dá. Você assiste a essa situação com uma calmaria que é assustadora. E assusta porque aí a vida vale menos. Isso é um alimento muito grande para a violência urbana, porque aí a molecada cresce como? A vida de ninguém tem valor.

Você é um crítico veemente sobre o racismo no Brasil. Como foi para você crescer como negro, pobre, em uma comunidade? Que tipo de problema você enfrentou?
Você parte do princípio de que a sua vida não vale nada. Sua vida não vale nada para você, e muito menos para polícia. Eu cresci numa pá de abordagem violenta. Tudo isso era muito normal, você ser abordado pela polícia, ser desrespeitado, agredido, era tão normal que a gente falava disso e a gente ria depois. Para você ver o quão doentia era –era não, é– a nossa realidade. Porque hoje é a mesma coisa, é pior até porque hoje é mais normal, e você não pode nem reclamar disso. Porque no Brasil, quando você vai apontar um problema, você é taxado de vitimista. “Ai, está se fazendo de vítima.” Eu não estou me fazendo de vítima, eu fui vítima de agressão policial. Tem o lema do país de que “bandido bom é bandido morto”, mas isso aí só serve para pobre. Por isso, eu bato na tecla do racismo.

Não tem como você não olhar para todo esse problema e não ver que tem um recorte étnico por trás disso. Não dá para você olhar para a maneira como a escravidão foi abolida no Brasil e acreditar que a partir dali a gente vai estar criando um país pacífico. Criou-se uma ideia de cordialidade, que na verdade não é cordial p* nenhuma. Porque você tem um país que mata 55 mil pessoas num ano. Tem país que está em guerra que mata menos. E aí você vem falar para mim que o brasileiro é um povo cordial? O brasileiro acredita que é um povo cordial para fugir dos assuntos urgentes que ele tem no dia a dia. Mas o brasileiro é um povo agressivo. Essa violência tem base no racismo, no machismo, na homofobia, na própria diferença econômica das pessoas.

No seu novo clipe, Boa Esperança, você retratou uma revolta de empregados domésticos contra seus patrões. Como se desenvolveu a ideia?
O rico não lava o próprio banheiro nunca. É uma metáfora foda. O Brasil vai ser primeiro mundo quando as pessoas tiverem consciência de que lavar o próprio banheiro não faz delas menos humanas. Boa Esperança é sobre isso. Sobre esse buraco, essa ligação que a gente ainda tem com o serviço doméstico e a escravidão. Para mim, é um tema urgente.

Você tem um país que não se assume racista, mas você vai na faculdade de medicina e não tem um preto. E aí as pessoas vão para uma roda de samba no fim de semana numa favela onde tem vários pretos e eles se orgulham da diversidade desse país. Mas elas não cobram essa mesma diversidade durante a semana na universidade de medicina, no escritório, nos cargos mais altos do emprego deles. Todo mundo está acostumado na realidade brasileira a ver os pretos numa prisão perpétua atrás de uma vassoura. Isso começa a mudar – há muito tempo, claro, tem muita gente lutando para que isso mude antes de mim, mas infelizmente não é mais comum do que a gente gostaria que fosse.

O clipe é bastante agressivo, e você recebeu algumas críticas de que poderia incitar a violência. Você teve algum medo disso?
Não. Em momento nenhum. Vou te passar algumas situações. Eu sou uma pessoa que circula pela cidade. Eu venho lá do Fontalis, passo pelo Cachoeira, Vila Zilda, de repente, vou fazer uma coisa lá nos Jardins, filmar, fotografar, ou até mesmo fazer um rolê com meus amigos. E é impressionante como quando eu saio da beirada da cidade, eu vejo mais pessoas pretas e quando eu chego no Jardins tem, tipo, eu. Só. Entendeu? Isso é agressivo. Quando eu estou gravando na periferia de São Paulo e eu vejo a diversidade do Brasil e, de repente, quando eu vou para um lugar onde o dinheiro está presente e aí todas as peles mais escuras desaparecem, isso é agressivo, isso me agride, isso me deixa triste.  Quando eu sento numa reunião com uma empresa, com uma marca, que eu chego lá, e os únicos pretos sou e o meu irmão Fióti, que trabalha comigo, isso é agressivo, isso é violento.

“Boa Esperança” eu não acho nem um pouco violento. É um clipe denso. E por que ele deixa todo mundo de cabelo em pé? Porque todo mundo vê aquilo todo dia, sacou? Todo mundo sabe o quanto aquilo é real, só que ninguém toca no assunto. Porque a gente foi educado assim – “não, não fala desse negócio de racismo”. Você vai chegar lá e todas as empregadas vão ser pretas, todos os garçons vão ser pretos, mas… é como sempre foi, entendeu? Aí quando chega alguém, principalmente um preto, e sugere que isso tá errado, ahhh menina! Aí é arrogância, aí é “agora eles querem tudo”, aí tem a resposta que vem direto: “agora tudo é racismo”. Só que sempre foi. Mas agora as pessoas não querem mais morrer caladas, entendeu?

Você foi à África antes de gravar esse disco buscando recuperar parte da conexão do Brasil com o continente africano. Quais influências trouxe de lá? O quão vivo você acha que ainda é o passado da escravidão no Brasil?
Acho a realidade brasileira tem uma pá de lampejo da escravidão. Seja na relação da polícia com a sociedade e com a parte pobre da sociedade; seja na questão que a gente levanta no Boa Esperança, que é o trabalho doméstico; seja na relação patrão-funcionário, em que você tem um sistema de opressão no qual a pessoa acredita que, porque ela está te pagando, ela tem direito a muito mais coisa do que é a sua função naquele lugar. Você tem vários tipos de assédio dentro do ambiente de trabalho, e eu acho que isso é decorrência de uma sociedade que não se desconectou completamente do “deixar de ser dono do outro”. Por isso, acredito que as heranças da escravidão são completamente vivas, são muito fortes até hoje, no dia a dia do Brasil.

A gente foi para África com a intenção de restabelecer uma conexão que foi rompida há séculos, de uma maneira brusca, e a gente não teve como se conectar. Então, o branco que descende de espanhol fala “ah, meus parente são da Espanha”, e eu não posso dizer para você se meus parentes são de Moçambique, de Angola, da África do Sul… porque eles vieram trazidos à força, e os livros de registro sobre isso foram queimados, foram destruídos numa atitude de rancor de pessoas que discordavam da abolição da escravatura.

Você chegou a ver alguma evolução no problema do racismo no Brasil desde a sua infância até aqui?
Senti mudança, eu vou ser injusto se eu disser que não. Existem muitas pessoas, o próprio movimento negro organizado, MNU, sabe? Gente como o pessoal da Bahia, do Quilombo Xis. Esses caras lutam e lutaram há muito tempo e com muita força e com muita inteligência para que eu possa levantar a minha cabeça. Aqui em São Paulo, o hip hop fez a gente sentir orgulho da nossa cor, do nosso cabelo crespo, buscar conhecer mais sobre os nossos antepassados. Porque a cura para o racismo é o conhecimento, sabe? É isso. O que vai fazer com que as pessoas passem a se respeitar e a reconhecer a grandeza do outro é saber a origem daquelas pessoas.

Eu me sinto feliz, otimista de ver a molecada soltando o cabelo, as meninas se sentindo bonitas, querendo ser a Beyoncé agora. É uma parada que me orgulha muito. Eu cresci em um ambiente que era completamente diferente, onde a gente era xingado na rua e não sabia como revidar. Você trancava aquilo, voltava para casa triste e não podia reclamar, porque quem reclama é o fraquinho, e você não queria ser o fraquinho.

Na escola, eu tinha que dar soco todo dia. Aí chegou uma época na 3ª série, eu parei de estudar, parei de ir para escola porque falei: não vou ficar indo para escola para brigar todo dia porque os caras vão fazer piada do meu cabelo, vão me chamar de macaco. E eu não sabia responder. Porque eu não tinha conhecimento nenhum sobre mim, entendeu? Todos os ambientes em que eu vivia, inclusive a favela, eram racistas. E lá tava cheio de preto, mas nós não sabíamos como nos defender desse tipo de agressão. A gente se sentia errado. Dentro desse universo aí, a gente tem uma série de conquistas.

Você relatou recentemente um episódio em que estava tentando pegar um táxi e foi vítima de racismo. Isso ainda é frequente na sua vida?
Sofro porque eu não tenho carro até hoje, eu ando de bicicleta. E aí toda vez que isso acontece, tem alguém que fala: você já devia ter um carro.

Mas a saída é ter um carro?
Então, mas é isso que eu falo, pô, e aí? Você vai respeitar meu carro? Tem que respeitar a minha pessoa. Todo mundo fala também: “Você tinha que ter o Uber, você não usa o aplicativo?” Quer dizer, a gente não vai falar do racismo, a gente vai falar de como eu posso pegar um táxi, entendeu? Pô, eu tenho aplicativo de táxi, eu estou falando que eu estou andando na rua e o cara tem uma expectativa em mim de que eu vou assaltar ele, de que eu vou matar ele e eu só quero pegar um táxi, entendeu?

E isso acontece frequentemente?
Aconteceria com mais frequência se eu pegasse mais táxi, entendeu? Mas é muito frequente. Se você está de quebradinha aqui é uma coisa, mas se você vai para os bairros mais chiques, é muito frequente, muito comum.

Como você reage?
Já tive ódio, às vezes eu fico bravo. Às vezes discuto, mas depende do dia. Quando estou mais bem-humorado, eu discuto. Hoje me dá uma tristeza. Mas é uma coisa que, mano, em geral as pessoas não conseguem entender o que é, porque a pior coisa do mundo é alguém ter medo de você, e você não representa ameaça nenhuma para esta pessoa. A pessoa olhar para você e ver um monstro, e você está querendo pedir uma informação, sabe? Você chegar para perguntar que horas são, e a pessoa esconder a bolsa, sacou? É isso.

E isso acontece todo dia com nós, comigo. Aí eu falo, comigo, que sou famoso, imagina com os caras que não estão com a cara na TV todo dia, entendeu? Aí os caras falam: “pô, mas você só fala disso, só fica batendo nessa tecla. ” Mas se eu não falar, ninguém fala, entendeu? Eu, que pelo menos cheguei até aqui, acho que tenho a obrigação de falar: mano, a gente tem que olhar um pouco para isso, tem um monte de gente morrendo por causa disso. Aí a vida vale menos, a vida dos pretos vale menos ainda. Por que que a polícia mata tanto na favela? Por que 77% das vítimas dos homicídios são pretos, sacou? Não dá para não fazer uma associação com racismo.

A política virou muito Fla-Flu no Brasil, criando um ódio muito grande por pessoas que pensam diferente. O que você acha disso?
A gente volta naquele tema da cordialidade do brasileiro. A gente não é educado para discordar, e todos os que levantam o dedo para fazer uma simples pergunta, tipo, por que que isso não é desse jeito? Aí você é o agitador, você é o subversivo. Na política, cada um tem seus interesses. E o povo assimilou isso da maneira mais errada. Porque aí misturou com a Copa do Mundo e trouxe esse clima aí do debate, do tipo “ou tá com nóis ou tá contra nóis”.

Tipo, nunca foi tão fácil tomar uma posição, principalmente num lugar como o Brasil. Não é tão simples assim. Aqui é muito mais complexo para você tomar uma posição política. Não é tipo: “ah, eles são a esquerda, eles são a direita”. Tem várias camadas, várias nuances. Dentro disso aí, a coisa mais burra que você pode fazer é falar: “ah, eu sou a verdade absoluta. Sigam-me”. E a gente é educado dentro dessa cultura, dessa lógica. É ignorância, e isso para mim é um grande retrocesso. No Brasil, por um lado eu vejo a autoestima das pessoas caminhando no sentido do futuro, do século 21, mas por outro eu vejo a posição política e humana de várias lá em 1800 ainda.

Sobre a chacina em Osasco: o número de mortos em chacinas neste ano em São Paulo já supera o de chacinas no ano passado em todo no Estado. O que isso representa para você?
Uma guerra. Olhando diretamente a gente está falando de uma guerra. Uma guerra declarada a uma região, a um grupo social étnico da região de um país. Mas eu acho que a forma como isso reverbera também fala muito sobre a posição que o Brasil assume dentro disso. Esse negócio de ninguém tocar nesse assunto significa que quem fez isso não está sendo criminalizado. O que pode ser visto como um grande incentivo para que isso continue. Esse é o grande problema. A discussão que não aconteceu. O problema do Brasil é o que não foi perguntado. É no silêncio que a gente morre. É na escuridão que a gente morre. E é nisso que a gente está agora.

Você tem feito campanha contra a redução da maioridade penal e rebatido a proposta – agora aprovada na Câmara dos Deputados. Por que você entrou na campanha?
Porque não tem escola no meu bairro. Tem uma escola caindo aos pedaços e uma creche caindo aos pedaços. O dia em que tiver estrutura lá para os moleques serem outra coisa, aí eu vou achar da hora. Aí eu vou achar que vocês podem perguntar, propor a coisa que for, aí eu posso debater pensando nisso. Hoje, propor redução da maioridade penal é covardia.

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