Emicida solta o verbo contra Michel Temer, o racismo, problemas sociais e, claro, fala de música

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Por Heloisa Tolipan – 

Antes de se apresentar no Circo Voador, neste sábado, Emicida conversou com exclusividade com o site sobre temas como Michel Temer, racismo, a importância de sua mãe e a turnê internacional que começa ainda em junho. ” Entendi rápido o jogo, tive minha fase dos dilemas, mas trabalho na velocidade da fome, saca?”

858509_487532431304434_1494051697_oEmicida é mais do que um rapaz da periferia de São Paulo que ganhou o mundo. Emicida é essencial. E aqui não estamos falando só do seu inegável valor musical que vai muito além do universo do hip hop de onde ele surgiu. Estamos falando também das questões que ele levanta, do seu discurso afiado e contemporâneo e da vontade de colocar o foco da discussão onde realmente interessa. Emicida é o futuro, é a palavra certa na hora exata, é a voz que, quase sempre, falta aos artistas brasileiros, quase sempre, receosos de se comprometer com questões mais duras, mas urgentes. Prova disso foi a conversa que o site HT teve com ele, às vésperas de seu show no Circo Voador, no Rio, neste sábado, e do lançamento de seu novo clipe, “Madagascar”.




Conseguir espaço na agenda do cara para conversar é coisa rara, já que ele também está às voltas com uma turnê internacional e com sua gravadora, em parceria com o irmão, Evandro Fióti, a Laboratório Fantasma, que começou em 2009 como um coletivo batizado de Na Humilde Crew para vender de mão em mão camisetas produzidas artesanalmente e chega a 2016 como uma gravadora, editora e produtora que se tornou referência nacional e internacional no mercado musical independente e no merchandising. No papo, ele não fugiu de nenhuma questão, levantou outras, e falou sobre racismo, política, cultura e, claro, música. Com vocês e com a palavra, Emicida:

HT: Em recente entrevista ao site HT, Criolo desabafou sobre o preconceito que os pais dele, nordestinos e negros, ainda sofrem e afirmou que “Nossa sociedade equivocada nos testa todos os dias”. De que forma você diria que a sociedade te testa?

E: A pobreza é um limitador que te empurra pra beirada do abismo. Testa sua capacidade de lidar com o mundo que te cerca de uma forma civilizada. Eu nem falo só de pobreza e miséria financeiras, a gente é cercado por muita pobreza de espirito também. Coisas que te fazem perder a fé, o que você chama de testes talvez sejam esses cemitérios de esperanças onde aprendemos a viver ou, como costumo dizer, esperar a morte, pois há uma diferença muito grande nas duas coisas. Tudo parece te impulsionar para a desistência, como se algo gritasse: ‘Desista também de você, porque o mundo já desistiu faz tempo’. Falamos disso na ‘Levanta e Anda’ : ‘Quem costuma vir de onde eu sou às vezes não tem motivos pra seguir’. Seguimos de teimosia, às vezes, só pra mostrar como a visão do asfalto sobre a favela é equivocada. A pior das expectativas sobre você, vinda de um desconhecido, é algo horrendo e assustadoramente comum em nossa vida. Quando se tem a pele escura então, nem se fala. E tudo isso é vergonhosamente atual.

HT: Em sua música “Mãe”(para ver o clipe, só dar play aqui em cima), você conta um pouco da sua infância e da sua mãe. Em determinado trecho você questiona de onde ela tirava força. Você conseguiu essa resposta?

E: A obrigação de ser forte todo o tempo é uma merda. Olha essa história do Rio de Janeiro, da menina estuprada por 30 caras. Você tira forças de onde para seguir em frente? Essa obrigação é algo inerente ao oprimido. Se você baixar a guarda, você perde sua vida, literalmente. Essa linha da música em especial fala sobre uns textos que eu estava lendo, textos feministas, feministas negras. Eu vou fazendo colagens de informações e cruzando dados que me parecem ter alguma ligação, criando teorias. É meio como aquele filme ‘Uma mente brilhante’. Algumas dessas informações falavam sobre a quantidade de mulheres negras ativistas que haviam se suicidado, e eu fiquei dentro dessa reflexão que já faço há algum tempo, pensando que essa obrigação de resistir destrói muito da beleza que existe em nós. Passamos a nos orgulhar da nossa capacidade de aguentar as pancadas da vida e seguir em frente, mas às vezes tudo o que você quer é um ombro pra chorar, segurar a mão de alguém. Ser vulnerável é isso, não ter a opção de ser vulnerável é muitas vezes desesperador. A questão é que não há muitas opções para nós, além de ser forte. A alternativa é virar estatística. Minha mãe lia muito, escrevia e desenhava também, de alguma maneira acho que herdei tudo isso dela. É assim que ela se comunica até hoje.

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HT: Na letra da música você diz que aos oito anos você pensava em suicídio. Por quê? Como foi esse período?

E: Eu perdi meu pai cedo, com 6 anos. Começou um negócio de todo mundo me dizer que eu era o homem da casa e que então tinha que cuidar de todos. Meu irmão ainda era pequeno, então eu saí pro mundão cedo fazendo mil coisas, várias merdas também. Mas lembro de uma vez que vi minha mãe chorando sozinha, porque não conseguia comprar comida, aquilo foi tão foda que, no dia seguinte, levantei cedo e fui procurar um trampo, fiquei o dia todo carregando sacola pra velhinhas no mercado e ganhei uns R$2,50. Perdi a hora e voltei pra casa depois de a minha mãe chegar. Ela já ia me bater por eu estar na rua, e eu disse o que tinha ido fazer. Ela ficou com os olhos cheios de água e só me colocou para dentro de casa. Atravessávamos muitos infernos nessa fase. Minha mãe morria de medo de algum cara invadir a casa pra fazer algo ruim com minhas irmãs. Vários caras sabiam que não tinha um homem adulto no nosso barraco e tentavam arrombar na madrugada. Aí ela ensinou a gente a levantar da cama ao ouvir qualquer barulho e colocar todo o óleo de cozinha pra esquentar. Se o cara conseguisse abrir a porta, era pra virar o óleo fervendo nele. Eu tinha 7 anos e estava aprendendo a matar um tarado. Até hoje eu tenho sono levinho.

Emicida na gravação do clipe "Madagascar" (Foto: Ney Coelho)

HT: No universo do rap, você conseguiu se destacar ganhando o mainstream sem perder sua identidade e sem se vender. Como equacionar a necessidade de ganhar dinheiro com uma possível censura do mercado que pode acontecer em algum momento? Aliás, o que seria se vender para você?

E: Acho que isso são meus valores enquanto pessoa. Eu amadureci cedo, tive que me virar, tem uma música chamada ‘E agora?’ na segunda mix tape onde eu digo que não criei o capitalismo, mas nasci no meio desse abismo comum. Entendi rápido o jogo, tive minha fase dos dilemas, mas trabalho na velocidade da fome, saca? Quando você percebe a fome já está aí. Eu aprecio a liberdade e a forma que achei de me manter livre foi criar uma estrutura empresarial que dependesse dessa liberdade também, aí nasce a Laboratório Fantasma. E outra, ninguém respeitava o que a gente faz enquanto arte não, o que parece uma opção hoje era o único caminho que a gente tinha, era isso ou ficar implorando uma oportunidade pra quem nunca valorizou o hip hop brasileiro. Aí preferi arriscar. Naquele livro ‘Zicartola’, se não me engano, o Elton Medeiros fala um barato foda sobre isso: independente do que a gente acredite, a gente vai ter que ser competente dentro do capitalismo até pra tentar derrubar ele. Se vender é você aceitar dinheiro pra fazer algo que você não concorda, não acredita de jeito nenhum, nunca fui pra rua por algo que eu não ache que precise ser feito.

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HT: Já que você falou da Laboratório Fantasma… Qual a importância dela para o mercado hoje? 

E: É bom ter se tornado referência no mercado, ter priorizado esse tipo de gerência apaixonada pela arte. A gente é carente disso no mercado brasileiro, nossa indústria cultural se preocupa pouco com diversidade e isso é um tiro de bazuca no pé de um país como o Brasil. Tanta coisa bacana e o mercado soca mais do mesmo sempre. Depois ainda reclama que as vendas vão mal. Acho que nossa importância reside na força da sugestão, na ideia de que as coisas podem ser diferentes e coexistir, e todos ganham com a pluralidade. Estou no escritório quase todos os dias, como qualquer outro colaborador, resolvo umas coisas da minha sala, dou uns pitacos no trabalho dos outros e me certifico de que todos ali estão apaixonados pelo que estamos fazendo. Essa é a essência da Laboratório Fantasma. Sobre aonde queremos chegar eu não saberia te responder, porque essa resposta seria limitadora. Nossa conquista está no percurso e não só na linha de chegada.

HT: Por falar em futuro, você segue já, já, para uma turnê na Europa.  Como o público estrangeiro recebe a sua música e a sua mensagem?

E: A princípio vamos passar por Portugal, Espanha, Inglaterra, Bélgica e Alemanha. Talvez apareçam mais coisas até nossa ida. Vou te contar uma parada louca, por incrível que pareça, acho que temos conseguido quebrar essa barreira da linguagem, do idioma. A música tem uma força de conexão incrível e a música brasileira é muito respeitada. Somos herdeiros de grandes nomes que passaram e deixaram ótimas impressões por lá. Tentamos com nossos shows fazer justiça a esse legado e dar continuidade a ele. A Alemanha, por exemplo, eu entendo quase nada de alemão, mas os shows ali são sempre muito fodas! É a primeira vez que lançamos o disco oficialmente lá fora também, quero sacar a diferença que isso faz nas apresentações ao vivo, mas, no final, são novos países, novas realidades e novas cabeças. É como recomeçar sua carreira sem as amarras da expectativa alheia.

HT: Na Virada Cultural você disse que não reconhece o governo Temer. De que forma você tem acompanhado o processo de impeachment e a sucessão de denúncias que atingem a toda a classe política brasileira?

E: Eu não tenho o hábito de acompanhar a política pela grande imprensa, a grande imprensa no Brasil faz parte do problema, não da solução. Eu leio um pouco sobre história, e quem estava roubando antes continua roubando hoje. Infelizmente não é nada que o brasileiro não saiba. Você precisa ser burro, mau caráter ou muito inocente pra esperar a salvação vinda de um cara que acabou de trair sua companheira de chapa.

HT: São muitos e recorrentes os casos de racismo que escutamos e presenciamos no Brasil a todo tempo. Você, aos 31 anos, acha que estamos evoluindo ou damos dois passos pra frente e um pra trás? Qual o problema do brasileiro que o torna ainda tão racista – mesmo que não admita isso?

E: É aquele ditado: o maior truque do diabo foi convencer o mundo de que ele não existia. O Brasil segue assim, porque não fala disso. Estoura um cano na sua casa e evita falar disso, evita tomar qualquer atitude para resolver. Aquilo vai alagando, alagando… quando você vê, já está prestes a ficar submerso. É a mesma coisa que acontece com um problema social: a cada vez que silenciamos, ele aumenta, e hoje estamos vendo tudo isso transbordar.

HT: Racismo, crise política, crise economica, estupro coletivo, machismo, violência crescente… O Brasil tem solução? 

E: Tem solução, mas é a longo, longuíssimo prazo, e precisa de diálogo. Sem empatia e diálogo não se resolve problema nenhum.

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