Ex-estatal fabricante de aviões é acusada de armar uma greve em 1984 para demitir centenas de trabalhadores
Por Marcelo Oliveira, compartilhado de A Pública
“Para um ‘louco’ até que estou bem, mas só eu sei o que eu passei.” Foi dessa forma agridoce que o aposentado Homero Paula da Silva, 63 anos, refletiu sobre sua vida, marcada para sempre por ter sido internado à força, em 1983 e em 1985, pela Embraer, fabricante de aviões, numa clínica psiquiátrica particular de São José dos Campos (SP).
Silva deu à companhia parte de sua juventude. Ele começou a trabalhar na antiga estatal em 1974, aos 13 anos, por meio de um projeto de inserção de adolescentes no mercado de trabalho. Saiu demitido e com fama de louco em 1985, aos 24 anos. Depois disso, ele conta que seu nome ficou na lista suja compartilhada pela empresa e que só conseguiu se estabilizar em 1992, quando se tornou diretor do Sindicato dos Químicos do Vale do Paraíba.
O aposentado nunca havia falado com ninguém, exceto com as pessoas de sua família e dois colegas de trabalho que o visitaram na clínica psiquiátrica naquela época. O assunto foi omitido, inclusive, de seu pedido de anistia política à Comissão de Anistia, que lhe negou indenização. “Foi como se eu tivesse esquecido. Até conhecer a Elaine e ela me convencer que eu precisava abrir isso. Foi algo que me atrapalhou a vida toda”, conta.
Elaine é a pesquisadora Elaine Bertone, pós-doutora em História pela Universidade Federal Fluminense e professora da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Nas entrevistas com os ex-empregados da Embraer, ela usou suas habilidades de psicóloga, sua primeira formação acadêmica. A historiadora coordenou o grupo que pesquisou as violações de direitos humanos cometidas pela empresa na ditadura.
A Agência Pública teve acesso ao Informe Público do relatório de pesquisa encomendado a Bortone e sua equipe pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O informe é um resumo do relatório completo da pesquisa, destinado ao Ministério Público Federal (MPF) e ainda não revelado. O MPF investiga a Embraer e mais 12 empresas brasileiras por cumplicidade com violações de direitos humanos cometidas pela ditadura civil-militar.
Silva conta que não teve problemas em sua primeira passagem pela Embraer, entre 1974 e 1981, em que foi demitido num corte. Porém, na segunda, entre 1982 e 1985, quando já militava na Convergência Socialista (CS), um movimento de esquerda que fez parte do PT entre 1981 e 1992, passou a ser observado.
Na Embraer, ele trabalhava no departamento técnico, que realizava os serviços fotográficos e gráficos da companhia, atendendo a todos os setores. Por circular pela empresa, o jovem aproveitava e distribuía o jornal da CS entre os colegas. “O movimento operário estava maior, eu ainda não era sindicalizado, apenas acreditava que era preciso acabar com aquilo [a ditadura]”, conta.
O gerente do departamento técnico era um capitão da Aeronáutica. Seu supervisor direto e outros colegas passaram a alertar Silva.. “Falavam para eu tomar cuidado e eu fazia tudo de forma discreta e dava conta do meu serviço, para não chamar a atenção.”
Até que em 1983, após a greve geral de julho daquele ano, “um enfermeiro apareceu em minha sala e me levou até a enfermaria da Embraer, onde eu fui sedado. Acordei no hospital”, o que configura um sequestro. Uma equipe da Embraer foi até seu irmão, também funcionário da empresa, e disse a ele que Silva havia agredido um superior e que ou seria internado ou demitido por justa causa. Com medo, o irmão autorizou a internação.
“A gente começa a acreditar que tem algum problema. As pessoas mais próximas ficaram perplexas. Minha mãe se desculpava com os vizinhos, dizendo que nunca tinha percebido que eu tinha problemas mentais”, conta Silva, que ficou 45 dias internado, sendo sedado diariamente.
Com o passar dos dias, os médicos, psicólogos e enfermeiros da clínica perceberam que o funcionário da Embraer não tinha nada. Tanto foi assim que, na alta, nenhuma medicação foi prescrita para ele. “Fiquei bom de repente”, ironiza o aposentado.
Silva voltou ao trabalho e seguiu no mesmo setor e continuou a distribuir o jornal da CS, com mais discrição, afirma. “Até que em 1985, ano de outra greve na Embraer, me falaram para tomar cuidado de novo”, relembra. Não deu tempo, o funcionário foi obrigado a se consultar com o psiquiatra da Embraer. “Ele já tinha um relatório pronto, requerendo minha internação, e me informou que eu teria que ir para o hospital novamente ou seria demitido.” O irmão foi novamente enganado e assinou a autorização para interná-lo.
Na segunda internação, Silva conta que já não tomava medicamentos. Foram 45 dias internado, quando conheceu um engenheiro da empresa que também estava lá, mas não sentiu confiança de perguntar o que estava acontecendo. “Ficou a dúvida se era um colega, internado à força como eu, ou uma pessoa posta ali para me vigiar.” Ao voltar para a Embraer, Silva foi demitido.
Silva conta que, com o nome na lista suja, não conseguia emprego em São José dos Campos e foi tentar a sorte em Itajubá (MG), onde nascera, mas, após diferentes trabalhos, voltou para a cidade sede da Embraer e conseguiu emprego numa indústria química e migrou para o sindicalismo. Com os testemunhos do irmão e de dois colegas de trabalho que o visitaram no hospital, ele ingressou este ano com novo requerimento de anistia política.
Greve armada para desmobilizar
A pesquisa coordenada por Elaine Bortone aponta que a greve de 1984 na Embraer pode ter sido montada pela direção da empresa para dificultar a mobilização de trabalhadores na companhia. “A assembleia dos metalúrgicos decidiu não fazer greve. Quando voltam do sindicato para trabalhar, havia uma greve de ocupação dentro da fábrica”, afirma.
José Luiz Gonçalves, 71, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos de 1983 a 1990, confirma a tese. “Na campanha salarial de 1984, os trabalhadores decidiram aceitar a proposta da empresa que prometia que sairia a comissão de fábrica, mas assim como na ditadura várias pessoas não aceitavam a abertura política, parte da direção da empresa não aceitava a comissão.”
“Quando os trabalhadores retornam, a fábrica estava parada. Se os trabalhadores, em assembleia, decidiram não fazer greve, quem foi que decidiu?”, questiona Gonçalves. “A infiltração insuflou a greve e a comissão de fábrica nunca saiu”, afirma. A pesquisa de Bortone, realizada em processos trabalhistas que os demitidos ajuizaram contra a Embraer, aponta que 30 deles foram forçados a assinar um documento pedindo para deixar a comissão de fábrica. “As cartas eram todas padronizadas e estavam todas datilografadas”, conta.
Em virtude da greve de 1984, a Embraer foi cercada por militares da Polícia da Aeronáutica, que haviam chegado à noite na pista da companhia, e por PMs. Ao todo, 155 trabalhadores da Embraer foram afastados, entre eles o projetista João Casimirov, 77, que estava na companhia desde 1981, apesar de seu passado de militante da ALN e do PCdoB, o que havia lhe custado uma dura temporada, sob tortura, entre o DOI-Codi e o Dops em 1974.
Após a repressão à greve, Casimirov e outros demitidos foram interrogados por horas em um escritório da Embraer. O depoimento dele havia começado pela manhã e durou até 18h. Casimirov reconheceu o estilo das perguntas. “Parecia o DOI-Codi, só não me bateram.” No depoimento, ele teve certeza de que vinha sendo monitorado. “Eles sabiam, por exemplo, que eu havia estado numa churrascada do PCdoB, com a presença do João Amazonas.”
Casimirov conta também que desconfiava da presença de agentes do Serviço Nacional de Informação (SNI) na fábrica. “Uma vez um cara que não sabia usar a prancheta foi chamado à atenção pelo meu chefe. E o cara disse para ele que, se meu chefe lhe falasse novamente daquele jeito, que ele que o demitiria.” Segundo o projetista, trabalhar na Embraer era viver sob pressão: “Para visitar outro setor, tinha que ter autorização da chefia”. Trabalhadores contaram para Elaine que para ir ao banheiro precisavam de autorização. O projetista tinha razão sobre o SNI. Documentos comprovam que a companhia tinha uma agência a serviço da espionagem, a Assessoria de Segurança e Informação da Embraer.
Gonçalves lembra que ligou para Ozires Silva, homem forte da Embraer durante e depois da ditadura militar, sobre a repressão à greve de 1984 e ele lavou as mãos: “Eu não tenho mais poder sobre a Embraer. A Embraer está sob poder da Aeronáutica”, teria dito o executivo.
Apesar de nunca ter sido funcionário da Embraer, Gonçalves sentiu na pele a violência da companhia na campanha salarial de 1985, já em pleno governo José Sarney. Após a greve de 1984, a segurança da empresa decidiu proibir toda e qualquer panfletagem na companhia, mas o sindicalista conseguiu furar o bloqueio e entrou no pátio da empresa quando os ônibus entraram trazendo trabalhadores.
“A segurança percebeu minha presença e veio para cima com cassetetes. Os trabalhadores cercaram os seguranças, que recuaram, e eu fui socorrido”, conta o ex-dirigente, que ficou três dias hospitalizado com traumatismo craniano.
Para seu colega José de Oliveira, 65, que trabalhou na Embraer, entre 1980 e 1983, o trauma não foi apenas físico, mas psicológico. Membro da CS, fundador do PT e da CUT em São José dos Campos, ele era um dos diretores do sindicato na gestão de Gonçalves e foi preso em 1985 durante uma nova tentativa de compor uma comissão de fábrica. Foi a sua 16ª e última prisão política desde 1979 e a mais violenta de todas.
Oliveira foi levado para uma delegacia de São José dos Campos e, de lá, transferido para o Dops, em São Paulo, onde ficou incomunicável e foi torturado. “Era desumano. Eu fiquei preso numa espécie de corredor com mais nove pessoas. Água pingando, uma lâmpada fraca, a comida fedia e eu recusava. Os agentes me levavam e tentavam me forçar a delatar meus companheiros. Eles me batiam nas costas com um objeto envolto em jornal para evitar marcas. Toda vez que lembro, me emociono e sofro de novo”, conta.
Após 14 dias eu não aguentava mais e estava decidido a acabar com a minha vida e estava confeccionando uma corda para me enforcar. Eu iria me matar naquela noite, mas o Greenhalgh [Luiz Eduardo, advogado e político) e a doutora Michael Mary Nolan [freira, advogada e militante norte-americana de direitos humanos] chegaram com o habeas corpus e fui solto.
Assim como Silva, Casimirov e Oliveira sentiram os efeitos da lista suja em suas carreiras. “Fui demitido em 83 da Embraer e fiquei sem trabalhar direito até 85. A lei exigia vínculo formal com a categoria para participar do sindicato. Só consegui porque um amigo montou uma oficina e me registrou como metalúrgico”, relembra Oliveira. “Eu tenho mais de 40 registros em carteira. Só em 92 acabou a ditadura para mim”, afirma Casimirov.
A Embraer está na maior parte dos meus sonhos. Em um deles, que sempre se repete, eu vou ser ou estou sendo demitido. Sonho também que estou sendo vigiado, fugindo ou preso”, conta o ex-projetista.
A ditadura acabou formalmente em 1985 com a eleição do colégio eleitoral da qual saiu vencedor Tancredo Neves, tendo o ex-PDS José Sarney como vice. Contudo, a repressão na Embraer prosseguiu. “Mesmo após a privatização [em 1994] seguimos vendo fatos que mostram a influência militar na empresa. Em 1996 eu era assessor de uma vereadora e fui com ela a uma reunião na Embraer para tentar evitar um grande corte na empresa. Ao falar meu CPF na portaria, fui impedido de entrar”, conta Oliveira.
A Embraer, Empresa Brasileira de Aeronáutica, foi criada em agosto de 1969 por decreto-lei, um ato do ditador Costa e Silva, que a vinculou ao Ministério da Aeronáutica. Ela já nasceu uma sociedade anônima, mas era uma estatal, controlada pela União, que não poderia ter menos de 51% das ações. Ou seja, era uma associação entre o poder público, militar, e o poder empresarial que estimulou e bancou o golpe.
“Por mais que a história oficial aponte que a ideia de criação da Embraer surgiu entre alunos do ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica] e técnicos do CTA [Centro Técnico de Aeronáutica], durante o desenvolvimento do avião civil Bandeirante, em 1965, nossa pesquisa aponta, contudo, uma estreita relação com o GPMI [Grupo Permanente de Mobilização Industrial], criado em 1962”, afirma Elaine Bortone.
O GPMI estava “intrinsecamente vinculado às atividades do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais [Ipes”, afirma a pesquisadora. O Ipes foi criado 1961 por empresários e militares golpistas, que desde a renúncia de Jânio Quadros, em agosto daquele ano, faziam movimentos públicos e reservados contra João Goulart.
Os membros do GPMI acreditavam que, sob Jango, o Brasil enfrentava uma “ameaça comunista”, e o grupo defendia a criação de um complexo militar-industrial brasileiro e tinha um plano de contingência traçado que previa a reversão da produção industrial brasileira para a guerra, se necessário, caso houvesse resistência quando Jango fosse derrubado. O golpe não era uma questão de “se”, mas de “quando”.
Outro Lado
A investigação sobre a Embraer, a Belgo-Mineira e a Mannesmann é financiada com recursos de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre o MPF e a Companhia Energética de São Paulo (Cesp) em virtude de a companhia ter descumprido regras para implementar o Parque Estadual Rio do Peixe, uma das compensações ambientais exigidas pela construção da hidrelétrica Sérgio Motta, no rio Paraná. As outras dez empresas, cujos relatórios já foram divulgados nesta série, foram investigadas com recursos do TAC da Volkswagen, a primeira empresa investigada pelo MPF por violar direitos humanos na ditadura.
A reportagem da Pública solicitou uma entrevista com a procuradora da República Ana Carolina Haliuc, responsável pelo inquérito civil sobre a Embraer no MPF, mas a procuradora alegou que qualquer posicionamento neste momento poderia prejudicar a instrução do feito. Procurada, a Embraer não respondeu ao email enviado pela reportagem até a publicação.
Edição: Thiago Domenici