Empresas modernas gostam de ter servos, diz sociólogo do trabalho

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Por Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena, compartilhado de Tutaméia – 

“A pandemia acelerou a servidão do trabalho. Os capitais fizeram laboratórios de experimentação, ampliando a uberização para várias categorias. Com o home office, se perde o espaço da casa como o de descanso. Você trouxe o horror do trabalho do espaço fora de casa para dentro de casa. Não tem jornada de trabalho. O tempo de vida no trabalho se mistura com o tempo de vida na casa. Borrou tudo. Não tem mais limite. É uma forma de escravidão digital”.

É a análise que faz o sociólogo Ricardo Antunes ao TUTAMÉIA. Ele alerta que a situação atual “abrirá uma brecha para as empresas daqui a pouco dizerem: ‘Você está indo muito bem como home office; só que você ainda é CLT. Só que agora o mundo é moderno, e a CLT é arcaica’. O que eles estão propondo não é arcaico; é escravidão. O capitalismo de plataforma se assemelha à protoforma do capitalismo, a forma primeva, primeira. E o que era essa forma primitiva? Nas colônias, era escravidão ilimitada e brutal do trabalho escravo negro e indígena. Em Manchester [na Inglaterra, berço da revolução industrial], as jornadas eram de até 18 horas para crianças, mulheres, homens”.

Antunes lembra que o museu da revolução industrial naquela cidade [onde funcionou a primeira máquina a vapor na indústria têxtil, em 1789] expõe a evolução das máquinas e mostra, ao lado delas, um aposento onde dormiam as pessoas. No espaço, há caixas de 1,20 m de comprimento com 50 cm de largura. Eram onde dormiam as crianças.




Professor da Unicamp, ele é o organizador do recém lançado “Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0” (Boitempo). Autor de “O Privilégio da Servidão”, “O Continente do Labor”, entre outros, Antunes fala sobre as mudanças no mercado de trabalho, o crescimento do precariado, os retrocessos para as mulheres trabalhadoras, o universo dos aplicativos, os desafios para os sindicatos e as novas formas de luta (acompanhe pelo vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Antunes comenta o fato de a pandemia atingir mais os trabalhadores informais. Mais expostos ao vírus, são os que mais morrem, apontam as pesquisas. Diz o sociólogo:

“A pandemia tem um corpo de classe. Ela, é aparentemente abrangente, mas as classes altas conseguem se preservar, ficando no isolamento social, home office. A pandemia devastou a classe trabalhadora. Mas não foi a pandemia que causou esse flagelo. Antes da pandemia, na virada para este ano, 40% dos trabalhadores já estavam na informalidade. Que sociedade pode sobreviver com 40 % dos trabalhadores na informalidade? Afirmei em 1995, no meu livro “Adeus ao Trabalho?”, que a precarização tenderia a ser a regra. Hoje temos informal, intermitente, desocupado, subdesempregado, desempregado. É uma tragédia. Daqui a dois anos, se não houver mudança profunda, vamos ter 60% na informalidade. Seremos todos e todas, praticamente em todas a profissões, uberizados, prestadores de serviços e sem direitos”.

Na sua visão, “a engenharia das empresas e dos capitais gerou um Frankenstein genial. É alta tecnologia, um mundo de máquinas espetacular, com uma força mundial sobrante de trabalho imensa em todas a profissões. Não são só os pobres que estão sobrando. Tem uber engenheiro químico, veterinário. E essa massa de trabalho sobrante está num contexto de crise profunda do capitalismo, com degradação do trabalho e degradação ambiental. Chegamos a uma situação em que as empresas tidas modernas, como Amazon, Uber, Air B&B, gostaram da ideia de ter servos. É uma nova fase da escravidão digital. Só que elas chamam de prestadores de serviço e empreendedores”.

Antunes considera “piada” dizer que o trabalho vai acabar.

“Os capitais sabem como ninguém que sem trabalho não há riqueza. A tragédia do capital — um gênio já nos ensinou no passado—é que se o capitalismo eliminar completamente a classe trabalhadora, acaba o capitalismo. Não sai um centavo de lucro e de mais valia. O trabalho humano é vital. Só que os capitais aprenderam com toda essa engenhosidade que a maquinaria não cria valor, ela potencializa o valor. Quanto mais ela potencializa o valor, mais ela elimina o trabalho vivo. A classe trabalhadora que ficar no mercado de trabalho, que vai ser cada vez menor, vai comer o pão que o diabo amassou”.

Segue o sociólogo:

“Se trinca esse momento de hegemonia neoliberal poderosa, o sistema em que estamos vivendo vai fazer água por todos os lados. O mundo do trabalho não pode acabar porque não existe nenhuma possibilidade de ter uma atividade sem um coágulo de vida humana, e dois terços da classe trabalhadora estão no sul do mundo. Se o emprego desaparecer para todos, nós entraríamos na era do Bacurau global. Vamos ter três opções: a revolta via Bacurau, a revolta via Coringa e a revolta via Parasita. Nos três filmes há o mal estar da civilização, como definiu Freud. Estamos vivendo uma sociedade em que o mal estar é generalizado. O mal estar pode gerar tudo. Gerou tanto a Revolução Russa como o fascismo e o nazismo na Alemanha e na Itália”, declara.

Para Antunes, é preciso reinventar o movimento sindical. “Os sindicatos têm que retomar o debate em torno do que são as questões vitais. No passado, eles influenciaram os movimentos sociais. Hoje, os sindicatos deveriam olhar a experiência dos movimentos sociais. Porque os movimentos sociais, como o MST e o MTST, tocam em questões vitais”.

Ele cita manifestações, como o Breque dos Apps e outras iniciativas pelo mundo, como amostras de novas formas de luta. “É uma mudança muito profunda de ciclo e ninguém muda de um dia para o outro. Estamos na fossa do inferno de Dante e haveremos de sair dela. O mal estar é generalizado e isso vai dar alguma confusão. A classe trabalhadora pode demorar, mas ela sabe encontrar as suas alternativas”.

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