A encruzilhada de uma América do Sul sem caudilhos

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A ojeriza generalizada contra a política é a grande contradição do nosso tempo. Não deixa de ser ideológico um mundo sem políticos. Na prática, isso significa Estado fraco, sem capacidade de contrariar os grandes grupos econômicos – que já têm muito poder, e se ainda não ditam todas as regras (ditam a maioria) é porque ainda existe a política como barreira.

São esses grupos, muito mais poderosos que qualquer partido, os que mais se beneficiam ocultamente com as campanhas de desprestígio da política, as quais convencem muitos de que acabando com a política estarão lutando por um conceito de sociedade mais livre – mas livre de quê? E quem estaria incluído nessa sociedade?




A campanha de desprestígio contra a política começou a ganhar corpo, pelo menos na América Latina, em meados dos Anos 90, mesma época em que parte da imprensa começou a falar do Consenso de Washington como se fosse o novo e inquestionável ordenador da ordem mundial pós-queda do Muro de Berlim. Mas ambos, a campanha e o consenso, encontraram obstáculos nos novos caudilhos latinoamericanos que surgiram na década seguinte.

Uma transformação iniciada no eixo atlântico-caribenho, que marcou a guinada à esquerda do continente neste novo século, principalmente a partir da Cúpula das Américas de 2005, quando Lula da Silva, Néstor Kirchner e Hugo Chávez disseram na cara de Bush Jr. que não queriam a ALCA (Aliança de Livre Comércio das Américas, um fetiche dos EUA na época). Redesenharam assim a figura do caudilho latinoamericano, que voltou a ser do líder identificado com os anseios de soberania nacional, como nos processos independentistas de dois séculos atrás, e não mais aquele sujeito que usa o seu carisma em prol da mera manutenção do próprio poder, embora muitos tenham tentado colar neles essa imagem – no Brasil, por exemplo, de tanto atacar Lula da Silva, e só convencer setores de classes alta e média, a oposição política passou a brigar para ser a representação de sua continuidade, enquanto a midiática se dedicou a alimentar alternativas eleitorais em figuras ligadas a ele, mas distantes do seu projeto político.

Falamos de três presidentes capazes de construir os mitos ao redor deles próprios, em seus respectivos países, e que foram importantes barreiras contra a ideia de que a política não vale nada. Valeu até contrariar o país mais poderoso do mundo. Valeu também alguns avanços em inclusão social, de diferentes níveis em cada país, ainda que sem configurar finalmente um estágio consolidado de equidade social. A retórica de que a política não presta não funcionou quando havia esse projeto político no qual acreditar, personalizado na figura do caudilho.

Mas o tempo passou, e os caudilhos se foram. Lula da Silva, o presidente brasileiro mais avacalhado pela imprensa de seu país em todos os tempos – chamado de ignorante, estúpido, ladrão (sem nenhuma prova) e ditador – sofreu dois anos com um câncer na laringe. Mantém sua relevância como importante ator no cenário político, mas como apoiador, já sem forças para ser o protagonista, embora ainda seja o político mais amado do país, e capaz de decidir uma eleição. Na Venezuela, a oposição tem um discurso no exterior – dizendo que Chávez era um neoditador – e outro completamente diferente em casa, tentando se apropriar das conquistas sociais do chavismo e acusando Maduro de não saber continuar o legado do falecido presidente. Semelhante ao que acontece na Argentina, onde se acrescenta o fator sexista sobre Cristina Fernández, que carrega a imagem de viúva negra, construída por seus desafetos.

Dilma, Maduro e Cristina enfrentam com dificulade a tarefa de defender o legado de seus antecessores.

Nos três casos, os herdeiros políticos não souberam ou não puderam encarar o desafio – ou sucumbiram à natureza do caudilhismo, cuja concentração de poder é, em si mesma, uma trava para o surgimento de novas lideranças, ou mesmo para fomentar uma participação mais direta dos cidadãos nos processos políticos. Cristina Fernández parecia ter o mesmo vigor do marido nos primeiros anos, mas após enfrentar diferentes e graves problemas de saúde, viu sua capacidade de liderança minguar na mesma proporção. Dilma Rousseff e Nicolás Maduro foram os melhores alunos da classe, escolhidos a dedo por suas capacidades técnicas, mas mostraram debilidade no manejo político, principalmente para as situações de crise, como a do Brasil, no inverno de 2013, e na Venezuela, no verão de 2014, onde sua reação foi titubeante, para não dizer errática.

O que não significa que não possam se reabilitar. A brasileira Dilma ainda é favorita para conseguir sua reeleição, neste outubro que se inicia. Quatro anos de governar sem ser Lula a obrigaram a talhar seu próprio estilo de liderança, um processo no qual colheu mais críticas que elogios. Mas talvez o verdadeiro estilo de Dilma só seja conhecido num possível segundo mandato. Ainda assim, Dilma está melhor que Maduro, que insiste em tentar imitar o estilo de Chávez ao invés de criar o seu próprio – e está pagando por isso.

Esses desatinos, mais a ausência dos velhos ou falecidos neocaudilhos, criou o cenário ideal para o crescimento ou ressurgimento de tendências antipolíticas, sem que isso signifique menor centralismo ou participação mais direta da cidadania. Tendências com nome e rosto, talvez não os preferidos pelos que protestaram – que pediram, nos três países, reformas na política, mas não necessariamente são atendidos por esses novos nomes, que são, no fim das contas, os que tentaram colocar a coroa na cabeça.

Ainda são figuras sem projeção internacional, exceto Henrique Capriles, que já há alguns anos é o líder da aparentemente desideologizada oposição venezuelana, embora sua imagem também tenha sido chamuscada após a crise do primeiro semestre. Na Argentina, onde Mauricio Macri não decola nacionalmente (tal qual Aécio Neves no Brasil), surge Sergio Massa, um ex-kirchnerista que se apresenta como a terceira via ideal e livre laços partidários tradicionais, mas com os mesmos nexos com os grandes grupos empresariais. Algo parecido ocorre com Marina Silva no Brasil. Desligada dos partidos, apesar de ser uma política profissional há mais de vinte anos, tornou-se uma ameaça real à reeleição de Dilma.

A eleição brasileira pode ser o início de novos ares nesses três países, talvez em todo o continente, ou pode mostrar que no fundo, mesmo com toda aquela gente nas ruas, a maioria ainda não quer que as coisas mudem, pelo menos não agora. Seja como for, estamos diante da encruzilhada dessa América do Sul sem caudilhos, quem sabe em tempos de transição, esperando que novos líderes apareçam e apontem o rumo das próximas décadas.

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