Adailton Medeiros, produtor cultural, responsável pelo Ponto Cine, em Gaudalupe, um oásis em termos de cinema fora da Zona Sul do Rio de Janeiro, faz aqui um desabafo.
Com toda a urbanidade das Zonas Norte e Oeste, esse território virou latrina do progresso, dejeto do futuro.
Eu fui iludido desde cedo. Nasci artista e, quando ainda criança, por conta do meu talento, aos nove anos conquistei o meu primeiro e único cargo público: Diretor Artístico do Centro Cívico Escolar João Alfredo, da escola municipal Guilherme Tell (o motivo da homenagem a esse personagem até hoje eu não entendi).
Vivíamos o milagre econômico com governos alternados de generais militares. Um dos sonhos do meu pai, um cara genial que, de varredor de estradas de rodagens virou um comerciante bem-sucedido, era que eu estudasse em um colégio militar, o que não aconteceu. Ele morreu aos 40 anos e eu acabei seguindo outro caminho.
Mas ele, o meu pai, apresentava-me o progresso todos os dias, assim como os meus professores da escola primária (sim, havia primário), e depois alguns do ginásio (também havia ginásio). Àquela altura, o futuro era substituido pela palavra progresso. Que sacação essa do cara que se apoderou do termo da nossa bandeira para motivar todos nós: o progresso é o futuro. Genial.
Ai veio o progresso e o futuro, longínquo e quase inatingível, virou o presente, o hoje escrito incerto por linhas tortas, cheio de efeitos colaterais. Rios tomados por resíduos químicos e orgânicos, verdadeiras valas; mares absorvendo toneladas insuportáveis de plásticos; oceanos como lixões atômicos; atmosfera comprometida pelo excesso de CO2 e temperaturas subindo incontrolavelmente.
No Brasil, aglomerados de favelas, fome, gente jogada na rua (morador de rua é eufemismo, não existe morar na rua); e gente, poucas, muito poucas, desfrutando dos mais caros condomínios e mansões, comendo do bom e do melhor e tomando banho na praia particular, apesar de ser irregular.
Hoje Guadalupe parou, assim como Pavuna e Anchieta. Um bandido, líder do varejo de venda de drogas, foi morto pela polícia militar num confrontro ancestral. O que mais chamava a atenção, até porque durou mais de 3 horas, era o aparato bélico. Foi troca de igual para igual, em termos de tecnologia, ou seja, armas muito parecidas de cada lado.
Como se não bastasse, o progresso ainda provocou esse câncer social, que está virando metástase. O Rio já foi uma cidade partida, imortalizada no livro do Zuenir Ventura, com o massacre em Vigário Geral, hoje, entretanto, está quase perdida.
Sou carioca e não abro mão disso, mas quando jovem morei 8 meses em Belém do Pará. Lá passei a me acostumar com seus sabores e seus costumes. Uma compreensão que eles tinham com a natureza era a de marcar encontros, reuniões e outros compromissos após a chuva. Em Belém todos os dias chove à tarde.
Acredito que os cariocas das zona Norte e Oeste estão meio como os paraenses: saída para o trabalho, reuniões e encontros só após o tiroteio. Normal. Assim vamos perdendo o que levamos anos para conquistar, a liberdade, especialmente, o direito de ir e vir.
Com toda a urbanidade das Zonas Norte e Oeste, esse território virou latrina do progresso, dejeto do futuro.