Enem Digital: das 99 cidades-sede, só 6 não têm mortes por covid-19

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Por Lauro Neto, compartilhado de Projeto Colabora – 

Exame, que é presencial, será realizado pela primeira vez no Brasil em novembro; educador vê grandes riscos em implementar inovação durante a pandemia, e associações fazem manifesto pelo adiamento da prova

Movimento pelo adiamento do Enem toma conta das redes sociais (Foto: Reprodução/UBES)

Um levantamento feito pelo Projeto #Colabora mostra que dos 99 municípios que irão realizar o Enem Digital, apenas 6 ainda não têm registros de mortes por Covid-19. No cruzamento de dados entre os números de mortes provocadas pelo novo coronavírus, divulgados pelas secretarias estaduais de Saúde, e a lista de cidades com 101.100 vagas (todas preenchidas) para a versão digital do Enem, somente Ipatinga (MG), Passos (MG), Francisco Beltrão (RS), Pelotas (RS), Brusque (SC) e Jaguariúna (SP) não registraram óbitos. Na versão impressa, já são mais de 4 milhões de inscritos. Nesta terça-feira (19/5), o ministro da Educação, Abraham Weintraub, sinalizou, pela primeira vez, que pode adiar o cronograma do Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) – principal porta de acesso ao ensino superior -, tanto na sua versão tradicional, em papel, quanto na digital, que é inédita e presencial. Dos 5.570 municípios brasileiros, 1.273 têm mortes por Covid-19.




Weintraub anunciou que os inscritos vão poder opinar sobre a data de realização da prova por meio de uma consulta que será feita na última semana de junho na Página do Participante, que reúne as etapas de realização do Enem. “Vamos ouvir a parte interessada, a que se inscreveu. Se a maioria topar, a gente adia”, disse o ministro numa live. À noite, o Senado aprovou – 75 votos a favor e um contra, do senador Flávio Bolsonaro – projeto que adia o Enem 2020. Pelo texto aprovado, o Enem não pode ser aplicado antes do fim do ano letivo das escolas públicas de ensino médio. O projeto ainda precisa ser aprovado pela Câmara dos Deputados, antes de ir à sanção presidencial.

Ações pelo adiamento

Depois de dias de uma batalha judicial e um embate público entre diversos setores da educação a favor do adiamento das provas em decorrência da pandemia e da suspensão das aulas em todo país desde o fim de março, o Ministério da Educação (MEC) divulgou uma extensa nota oficial em que afirma que “já se demonstrou abertura para nova alteração da data de aplicação das provas, tão logo o cenário fique mais definido”. A manifestação ocorreu no mesmo dia em que a Defensoria Pública da União (DPU) entrou com um recurso para que o Tribunal da Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) reconsidere a decisão de manter o atual calendário do exame: dias 1º e 8 de novembro para o Enem tradicional, e dias 22 e 29 do mesmo mês para a versão digital.

A DPU havia conseguido uma liminar a favor mudança das datas na Justiça Federal de São Paulo, mas a Advocacia Geral da União (AGU) recorreu, e o desembargador Antônio Cedenho, do TRF-3, reverteu a decisão a favor da manutenção do cronograma. Além da ação da DPU, apoiada pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, um parecer técnico do Tribunal de Contas da União (TCU) recomendou o adiamento do Enem. A recomendação é endossada por 38 entidades ligadas à educação, que assinaram uma carta pedindo que o calendário do exame seja suspenso, e as provas não sejam realizadas em 2020.

Entre essas entidades estão a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Ensino Superior (Andifes), o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e o Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif), que fazem parte do Comitê Operativo de Emergência, criado com o objetivo de debater e definir medidas de combate à disseminação do novo coronavírus em instituições de ensino, seguindo as diretrizes do Ministério da Saúde. Ironicamente, também assina a carta a Associação dos Servidores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão do MEC responsável pelo Enem.

O principal argumento a favor do adiamento é calcado no fato de que cerca de 6,6 milhões de estudantes brasileiros não têm acesso à internet, a maioria da rede pública, de acordo com levantamento feito pelo jornal O Globo, dificultando o acesso a ferramentas de ensino à distância (EAD) durante o período de aulas suspensas. “As desigualdades sociais refletem-se e aprofundam-se nas desigualdades educacionais e a realização de atividades escolares através de meios virtuais negligencia o fato de que grande parte dos jovens brasileiros não dispõe desta possibilidade e das condições necessárias para acesso e aprendizagem dos conteúdos exigidos nas avaliações definidoras para o prosseguimento dos estudos em nível superior. Considere-se que 87,5% dos estudantes do ensino médio no Brasil frequentam escolas públicas”, diz a carta assinada pelas 32 entidades.

Na contramão do consenso e do bom senso, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, insiste na manutenção das datas. “Isso que tem que paralisar tudo é bobagem. O Brasil não pode parar, não vai parar. Todo ano querem acabar com o Enem. Só que a argumentação deles é totalmente equivocada. Eles dizem: as pessoas não estão podendo se preparar. Mas está difícil para todo mundo. É uma competição. (…) Aí você fala. ‘Não é justo. E quem não tem internet?’. No passado, há três anos, dois anos, quem não tinha internet também tinha essa dificuldade de fazer o Enem. Não mudou nada”, disse Weintraub numa live, escolhendo ignorar a mudança de cenário em 2020, com as escolas fechadas por conta da pandemia.

“Vai haver falta de equidade se datas forem mantidas”, diz especialista

Segundo levantamento do Instituto Unibanco, em todos os continentes, entre 19 países com exames similares ao Enem, 10 já adiaram ou cancelaram suas provas: China, Estados Unidos, Espanha, Irlanda, Malásia, Polônia, Rússia, Singapura, Gana e no norte da Colômbia. Na França e no Reino Unido, os exames foram substituídos por outros tipos de avaliação. Cinco países mantiveram o cronograma por enquanto: Alemanha, Japão, Colômbia (parte das escolas no sul), Chile e Egito, os dois últimos com adaptações nas provas para cobrar somente conteúdos ensinados nos anos anteriores. Na Itália e na Finlândia, ainda não houve definições. Nos Estados Unidos, fonte de inspiração do governo Jair Bolsonaro e seu discípulo Weintraub, o SAT (sigla para teste de aptidão escolar, em inglês) foi adiado nacionalmente pela primeira vez desde 1977.

A grande maioria das pessoas acha desconfortável a utilização de máscaras, que é importantíssima. Imagina em novembro, em que as temperaturas são altas na maioria dos estados brasileiros, sem poder ligar o ar condicionado

Jônatas Abrahão
Virologista

Mestre em Educação e Tecnologia pela Universidade de Stanford, Fabio Campos explica que um dos principais elementos que beneficiam os alunos nos Estados Unidos é o fato de o SAT ser feito várias vezes por ano. “Isso o Brasil não tem. O Enem sempre aconteceu uma vez por ano. É um modelo que acho particularmente muito cruel para o aluno. Numa situação em que grande parte das cidades tiveram Covid-19 e em que não sabemos se o aluno teve sua família protegida ou perdeu um ente querido, em que condições ele está tendo aulas digitais, essa incerteza do Enem gera um estresse que certamente tem um impacto no desempenho. Vai haver falta de equidade se as datas forem mantidas. O Enem tem que ser adiado”, diz Campos, que atualmente faz Doutorado em Ciências da Aprendizagem na Universidade Nova York.

Apesar de considerar o Enem Digital um avanço que pode permitir mais edições da prova durante o ano, ele vê com preocupação a implementação do modelo durante a pandemia. Nos Estados Unidos, onde o SAT já está consolidado digitalmente, Campos informa que se estuda a possibilidade de realizá-lo “at home” (em casa), numa modalidade completamente online, devido ao novo coronavírus. No Brasil, a primeira edição digital do Enem, que vem sendo estudada há anos desde o governo Dilma Rousseff, será presencial. Campos considera arriscada a estratégia de adotar ainda este ano uma nova forma de aplicação, que requer uma logística diferente, em um exame marcado por um histórico de problemas, desde o roubo de provas em 2009 até a atribuição de notas erradas a milhares de candidatos no ano passado:

“Em termos de Covid-19, se você faz uma prova digital não protege tanto. Se você tem que a ir um centro de computadores, com uma sala fechada, com ar condicionado e pessoas que podem estar infectadas, não se está protegendo ninguém. Pela facilitação de o Enem digital poder acontecer várias vezes ao ano, seria o grande pulo do gato. Mas com a dificuldade toda que estamos vivendo, introduzir um elemento novo como o Enem Digital é até politicamente arriscado para o governo. Eu não usaria essa ficha agora. É tão importante ter outros modelos de Enem que não seja o monolítico, que gastar essa ficha agora é complicado”.

Virologista recomenda salas sem ar condicionado com distanciamento de 2 metros

Jônatas Abrahão, virologista da Universidade Federal de Minas Gerais, ressalta que devem ser adotadas medidas de prevenção para evitar a transmissão do coronavírus durante as provas, como o distanciamento de 2 metros entre os alunos, em salas sem ar condicionado, com uma boa ventilação e todos usando máscaras, higienização dos teclados e do mouse (no caso do Enem Digital).

“Se projetarmos nossa realidade atual para novembro nesse contexto das provas, o que seria preconizado seriam as mesmas recomendações de hoje. A grande maioria das pessoas acha desconfortável a utilização de máscaras, que é importantíssima. Imagina em novembro, em que as temperaturas são altas na maioria dos estados brasileiros, sem poder ligar o ar condicionado, pois existem estudos que mostram que isso é importante para a transmissão do vírus. É um outro problema que vai acontecer e que as pessoas vão ter que resolver e se adaptar. Por todas essas razões, acreditamos que o MEC deveria adiar as provas”, avalia o virologista.

Confira na íntegra a nota de esclarecimento do MEC sobre o Enem.

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