Por André Felipe de Lima no Museu da Pelada –
Ponta-direita do timaço do Santos da década de 1960, Dorval Rodrigues jogava com Coutinho, Pelé, Mengálvio e Pepe no ataque mais famoso da Vila Belmiro. O craque nasceu no dia 26 de fevereiro de 1935, em Porto Alegre, e marcou 198 gols nas 612 partidas em que vestiu a camisa santista. Uma performance que o lista como o sexto maior artilheiro do clube.
Em sua cidade natal, Dorval trabalhava como engraxate. Aos 13 anos, fundou um time de futebol amador, o Esporte Clube XV de Novembro, mas foi nos juvenis do Grêmio que sentiu o gosto inicial de jogar futebol para valer. O treinador Mendes Ribeiro descobriu a posição ideal para o jovem: a ponta-direita. E nela, Dorval construiria sua brilhante carreira. Só chegaria ao profissionalismo com 20 anos de idade, no Grêmio Esportivo Força e Luz. Destacou-se e foi convocado para a seleção gaúcha. Habilidoso e driblador, como eram os ponteiros “das antigas”, Dorval chamou a atenção de Flamengo e, em seguida, do Corinthians, mas ambos os clubes desistiram da contratação em cima da hora. O motivo nunca fora explicado. Mas o destino é sempre surpreendente na vida de todos. Dorval era um predestinado. Num dia do ano de 1956, Arnaldo Figueiredo, cartola do Força e Luz, empresário de Dorval, conversou com o diretor do Departamento Profissional do Santos, Antônio dos Santos, e ambos selaram o destino de Dorval. O rapaz, dali em diante, seria jogador do Santos, que recrutava na mesma época outro jovem bom de bola conhecido como Pelé.
Os dirigentes santistas gostaram de Dorval, mas consideraram-no inexperiente e o rapaz acabou tendo o passe emprestado ao Juventus da Mooca para se adaptar ao futebol paulista, mas o estágio durou apenas três meses. O ponta-direita jogou tanto que retornou à Vila Belmiro. E como titular ao desbancar Alfredinho. Em 1958, conquistou o campeonato paulista. Mas a consagração viria em 1962, quando ajudou o Santos a levantar uma penca de troféus. Dorval e o Alvinegro foram campeões paulista, da Taça Brasil, da Libertadores da América e do Mundial Interclubes, cujo jogo decisivo foi marcado por uma goleada de 5 a 2 do Santos sobre o Benfica, na casa dos portugueses. “Quando chegamos a Lisboa para jogar, eles já estavam vendendo ingressos para a terceira partida. Acharam que ganhariam da gente no segundo jogo, mas deram azar. Perdemos muitos gols no Maracanã e isso não aconteceu em Portugal. Quando abriram os olhos, já estávamos ganhando por 4 a 0”.
O show de títulos daquele Santos se repetiu no ano seguinte e, lógico, tendo Dorval como ponta-direita bicampeão da Libertadores e do Mundial, com o Milan de “vítima da vez” na inesquecível final no Maracanã, em que Almir Pernambuquinho jogou no lugar de Pelé e calou os craques milaneses, entre os quais Trappattoni, Cesare Maldini e o “possesso” Amarildo.
Em 1964, Dorval, Batista e Luís Cláudio tiveram os passes negociados com Racing, da Argentina, mas o clube portenho deu um calote e todos voltaram ao Santos. Dorval permaneceu na Vila até 1967, quando o Palmeiras o acolheu. No Parque Antarctica, o ponta jogou com Ademir da Guia, Dudu e Djalma Santos, mas em apenas 20 partidas. O mesmo Djalma, que aceitou proposta do Atlético Paranaense em 1968, abriu portas para vários jogadores em fim de carreira fazerem história no futebol do Paraná. Dorval foi um deles. O ex-craque do Santos esteve no time que recuperou a auto-estima do Furacão após a conquista do campeonato estadual de 1970. Além de Dorval, estavam naquele elenco Bellini, Zé Roberto, Nilson “Bocão” Borges e Sicupira.
Ponta de grandes recursos técnicos, Dorval também notabilizou-se pelo temperamento impulsivo. Nunca gostou de brincadeiras. Vários foram os relatos de desavenças com companheiros e até dirigentes. O jeito rude não foi, porém, motivo para que não gostassem dele.
Dorval raramente figurava na seleção brasileira. O motivo: ser contemporâneo de Garrincha, do Botafogo, e de Joel, do Flamengo. Poderia ter ido ao Chile, para a Copa de 1962, mas o treinador Aymoré Moreira optou por Jair da Costa, então ponteiro da Portuguesa de Desportos, que brilharia depois na Internazionale de Milão.
Pela seleção, Dorval fez 13 partidas, o que o deixava frustrado, já que colegas como Coutinho, Mengálvio, Pepe e Pelé frequentavam com mais assiduidade as listas de convocação. “Na época do Mundial, eu e o Garrincha éramos os melhores pontas do país, mas só ele foi convocado. O Mané era fantástico e ninguém tiraria ele do time, mas mesmo assim eu queria ir para um Mundial”, disse, referindo-se à Copa de 1962, no Chile. E houve um dia em que Dorval teve de parar Garrincha. Ou, pelo menos, tentar. Em 1961, contra o Botafogo, Dalmo foi expulso e Dorval teve que se deslocar para a lateral-esquerda, numa época em que não eram permitidas substituições durante o jogo. Dorval afirmava que foi tão rápido quanto Garrincha e que conhecia cada drible que ele aplicava. E deve ter se saído bem mesmo na ingrata função de marcador de Mané porque o jogo terminou 3 a 1 para o Santos.
Dorval era boêmio e “pé-de-valsa” inveterado. O que não o constrangia porque a boemia fazia parte do universo futebolístico. Exatamente como acontece hoje, mas como uma pequena diferença: não era vista como algo que impedisse o jogador de atuar bem pelo seu time. Dorval dava provas disso.
O Santos era celeiro de craques e também… de piadistas. Pepe, um deles, garante Dorval. Por conta das andanças dele na noite, Pepe brincou com o notívago Dorval ao inventar que o craque levou para a pista de dança um travesti, confundindo-o com uma mulher. Dorval garante que tudo não passou de uma “mentira” da grossa do Pepe. Na verdade, os dois pontas, os maiores que o Santos já teve, eram grandes amigos. Quem o acompanhava nas noitadas eram Coutinho e Tite. Já Pelé, devido à fama exacerbada, era mais recluso.
O final de carreira lhe pregou peças. Algumas desagradáveis, como o dia em que foi barrado na porta do estádio da Vila Belmiro, no final dos anos de 1960, como cita Ivan Cavalcante Proença, recuperando diálogo que Dorval teve com o ponteiro do clube santista:
— Você não pode entrar — gritou o porteiro do Santos.
— Você é que não pode me barrar — gritou o jogador.
— Quem é você? — perguntou o porteiro.
— Sou Dorval, Já dei muitas vitórias a esse time.
— Mas só entra com carteira de sócio.
— Pois vou entrar no peito.
O craque entrou, mas depois de encarar uma fila e comprar um ingresso.
Revoltado, Dorval recordou a história:“Enquanto a gente está no time faz o que quer, mas quando está de fora nem os porteiros nos conhecem mais. Se soubesse o que iria encontrar ao deixar o futebol cuidado melhor, aprendendo uma outra coisa, mas como só vivi no futebol até hoje, a minha única distração é ir aos estádios ver o Santos jogar”.
Queixava-se — como narrou Proença — do esquecimento de Jair Rosa Pinto, que o convidou para trabalhar no Olaria, no final dos anos de 1960, mas o ignorava, deixando o jogador em situação indefinida no Rio de Janeiro. Dorval dormiu alguns dias na casa de Almir, de Ruço e de outros amigos que moravam na cidade até por tudo em pratos limpos com Jair. Quando conseguiu uma reunião com ele e o presidente do Olaria, Jair teria saído pela porta dos fundos sem atendê-lo. “No mesmo instante voltei para Santos”.
Dorval temia pelo futuro. Estava sem dinheiro e com dívidas de um bar que mantinha com o sogro. Aguardava uma proposta do Canadá.
Nada foi adiante. Ficou pelo Brasil mesmo.
Defendeu o Atlético Paranaense e, em 1971, quando deixou Curitiba, atuou por seis meses no Valência, da Venezuela, e na volta jogou pelo Saad, ao lado dos ex-companheiros Coutinho e Joel, para encerrar a carreira em 1972. Anos depois, tornou-se técnico de divisões de base.
O futebol lhe deu fama e dinheiro. Investiu em imóveis, mas perdeu tudo. O ídolo santista foi treinador da escolinha de futebol do Centro Esportivo do Jabaquara, localizado em uma região bastante pobre de São Paulo. O projeto, bancado pela Prefeitura de São Paulo, tinha o intuito de afastar menores carentes do tráfico de drogas e das ruas. Na época em que Dorval se esforçava nesse projeto, a então prefeita Marta Suplicy, alegando não ter verba, encerrou o programa social e demitiu todos os profissionais envolvidos com as escolinhas, entre eles Dorval.
Ídolo dos torcedores da velha guarda, mas já não tão lembrado pelos mais jovens, que idolatram Robinho, Neymar e Ganso, Dorval não explorou tanto a sua imagem como deveria. Na década de 1960, a Coca-Cola estampou as imagens dele, de Pelé e Coutinho em uma propaganda. Pelé teria embolsado 25 milhões de cruzeiros na época e Dorval apenas 4 mil. Somente muitos anos depois, o ex-jogador moveria uma ação judicial para requerer cerca de 6 milhões pelo uso de sua imagem.
Dorval é um altruísta. Essa é a verdade. Craque de alma limpa, que sempre trabalhou voluntariamente em programas sociais no Jardim Jabaquara e também se preocupa em resgatar a memória dele e de outros craques do passado ao decidir tocar uma cooperativa de ex-jogadores da capital paulista.