Enquanto 1 menina é estuprada a cada 6 minutos no Brasil, PL do Estupro visa criminalizar crianças e mulheres abusadas sexualmente.

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PL 1.904/2024 equipara o aborto, realizado por meninas e mulheres estupradas, ao crime de homicídio. O projeto de lei “ignora a epidemia da violência de gênero e rifa a saúde de meninas e mulheres, em especial periféricas”, analisa a doutora em direito

Entrevista especial com Taysa Schiocchet

Por João Vitor Santos, edição d Cristina Guerini, compartilhado de IHU




epidemia da violência contra meninas e mulheres segue vertiginosa. Houve um aumento no número de casos de estupro de menores de 91,5%, entre 2011 e 2023. É o que revelam os dados divulgados em 18-07-2024 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Os números são ainda piores quando falamos em vulneráveis: 1 estupro a cada 6 minutos. 83.988 meninas foram violentadas, sendo que 61,6% tinham até 13 anos. São informações que corroboram com afirmação de Taysa Schiocchet: “vivemos uma cultura do estupro”.  

Enquanto a violência de gênero explode, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 1.904/2024, conhecido como PL do Estupro, que visa criminalizar meninas e mulheres que decidirem interromper a gestação indesejada decorrente do estupro. Para a professora, estamos falando em “retrocesso”. Segundo demonstra, “trata-se de um projeto de lei que não tem nenhum rigor ou qualidade do ponto de vista da técnica legislativa, tanto que facilmente se identificou a equiparação descabida entre o crime de homicídio e aborto. Uma equiparação equivocada de tipos penais, sem nenhum cuidado, tampouco há um compromisso com a qualidade do projeto de lei”, adverte. “A impressão é que foi feito a toque de caixa, sem qualquer compromisso de analisar dados, rifando os direitos sexuais e produtivos em nome dessa disputa [política]”, complementa.

“Não há nenhum compromisso do Congresso com essa epidemia de violência”, assevera Taysa. O projeto de lei é “bastante moralizante, religioso, maniqueísta, instrumental com o argumento de proteção do feto, que vão chamar de bebê, de nascituro. Em nenhum momento se colocou, pelo Congresso, essa realidade subjacente, anterior, de violência sexual, que pode gerar uma gestação e, portanto, uma interrupção voluntária dessa gestação”, explica a pesquisadora em entrevista concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Taysa Schiocchet, que é professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR, destaca também que o “direito à vida não é um direito absoluto nos sistemas jurídicos de países democráticos”, de forma que “existem outros vetores, princípios jurídicos e pressupostos legais e constitucionais que devem ser levados em conta, como: dignidade humana, integridade, respeito à saúde, não só física, mas psíquica dessas mulheres e meninas”, considera.

Brasil necessita alcançar a maturidade cívica e democrática em relação à “moralidade pública e privada” no tema do aborto, ainda tratado como tabu para a professora. Entre as iniciativas que devem ser adotadas para não aumentarmos a vulnerabilidade das meninas e mulheres abusadas sexualmente, “a primeira tarefa é olhar para como descontruir esse estigma em torno do aborto, que é decorrente muito dessa criminalização”, pontua. Por fim, salienta que o tópico deve ser tratado como “questão de saúde pública e não de segurança pública“. 

Taysa Schiocchet (Foto: UFPR)

Taysa Schiocchet é professora da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. Doutora em Direito (UFPR), com período de estudos doutorais na Université Paris I (França) e FLACSO (Argentina), realizou pós-doutorado em Direito na Universidad Autónoma de Madrid (Espanha). Professora visitante da Université Paris X. Coordenadora da Clínica de Direitos Humanos da UFPR. Tem experiência na área de Teoria do Direito e Direitos Humanos, com ênfase em biodireito, metodologia da pesquisa e metodologias clínicas de ensino do direito.

A entrevista foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, 19-07-2024.

Confira a entrevista.

IHU – Segundo dados do Atlas da Violência [2024 com dados de 2022], apesar dos índices de homicídios de mulheres terem apresentado queda a partir de 2020, a cada 46 minutos uma mulher sofre ataque sexual no Brasil. O que isso significa? Como a senhora compreende e interpreta esta realidade?

Taysa Schiocchet – Estes dados demonstram que vivemos uma cultura de estupro. O que significa que vivemos uma cultura da violência, que naturaliza ações ou relações violentas, de ataque sexual e de gênero, especialmente contra mulheres e meninas. Se olharmos em uma linha do tempo, perceberemos que estes dados não são de hoje, de 2024. É importante percebermos a consistência destes dados ao longo dos anos. Em que pese algumas variações, nós temos um quadro de permanente cultura de violência de gênero contra mulheres e meninas. Em geral, vamos chamar de cultura do estupro.

Neste mesmo sentido, o que podemos pensar, quando falamos em cultura do estupro, cultura da violência contra as mulheres, é na imagem do iceberg. A ponta do iceberg é o feminicídio, a violência letal contra mulheres e meninas em razão do gênero. Mas na sua base teremos uma série de ações, comportamentos, forma de se relacionar com mulheres e meninas que traduz isso que chamamos de cultura do estupro.

Violência permanente

Esse quadro de violência é permanente contra meninas e mulheres. Temos desde o que chamamos de micromachismos ou de piadas machistas, em relações sociais, em festas, na família, na escola, nas universidades, em sala de aula e nas relações de trabalho. As mulheres são mais vulneráveis, em geral, recorrentemente são mais vítimas desse tipo de relação e violência. É importante percebermos: a violência sexual vai estar mais na ponta do iceberg, mas precisamos trabalhar, enquanto sociedade, essa cultura que é mais ampla e disseminada, que muitas vezes não é tão visível, de violência de gênero e contra mulheres e meninas.

O último ponto sobre esses dados é entender os números e não deixar com que os números inviabilizem histórias e pessoais reais. Quando falamos “a cada 46 minutos uma mulher sofre ataque sexual”, é isso mesmo, o tamanho dessa violência, o quão recorrente ela é, o quão persistente ela é no tempo e no volume. São muitas mulheres sendo violentadas a todo o tempo e todo o momento. Por isso é que temos usado a expressão de que se trata de uma epidemia de violência contra a mulher. Se olharmos a questão da violência como uma questão de saúde pública, poderemos caracterizar ela como uma verdadeira epidemia. É pensar isso.

 Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

IHU – Ainda segundo o Atlas da Violência, a maioria das vítimas são meninas na faixa dos 10 aos 14 anos de idade. O que este dado revela?

Taysa Schiocchet – Também é um dado que já existe há bastante tempo e que, de algum modo, essa discussão sobre o PL 1.904, que gerou uma cobertura maior nas mídias tradicionais e nas redes sociais, houve a possibilidade de esclarecer melhor e colocar alguns dados em pauta. Essa é uma questão que apareceu bastante: de fato, entre as mulheres, as meninas são as mais afetadas pela violência sexual. Ao contrário do que podemos imaginar e do que pode ser a realidade de muitas famílias, nem sempre a família é o lugar de proteção para crianças e adolescentes. Muitas vezes é dentro da família que ocorrem as violências sexuais. Associado a esse número de que meninas entre 10 e 14 anos são as mais afetadas nos casos de violência sexual, temos esse dado de que também a maioria das violências sexuais ocorre dentro de casa.

É quase dizer para algumas camadas da sociedade, em algumas regiões e algumas localidades, que teremos de maneira muito clara o espaço da família como um espaço que esconde relações de violência sexual. Associado a isso, por essas meninas serem mais vulneráveis e muitas vezes nem entenderem que aquilo é uma violência, não terem condições de denunciar ou mobilizar uma rede proteção, são essas meninas que passam anos a fio sofrendo violência dentro de casa por pessoas conhecidas. Em geral, pais, padrastos, tios, vizinhos e primos, pessoas que têm acesso a essa criança, que muitas vezes se presume que tem uma relação de confiança.

O primeiro ponto para entender esse cenário é descontruir a ideia de que toda a família é uma família que protege as crianças e os adolescentes. Ao contrário, em relação à violência sexual, na maioria dos casos, isso acontece por pessoas conhecidas dentro da própria casa, por parentes e afeta principalmente as meninas e crianças que são as mais vulneráveis.

Aqui é importante entendermos o que dificulta a denúncia, o que faz com que esse tipo de violência seja velado e permaneça por anos, muitas vezes, a fio, sem que as pessoas tomem conhecimento e consigam proteger. O mais importante é sabermos para qual vamos olhar nessa história. É menos no sentido de ‘revitimizar’ essa menina, essa criança e adolescente que não tem condições de expor ainda mais ou mobilizar uma eventual denúncia, olhar onde falhamos enquanto sociedade, instituição de justiça, sistema de saúde e sistema de proteção a essas crianças e meninas. Quando elas estão nessa situação de violência, a pergunta que temos que fazer é “onde erramos enquanto sociedade, família, escola?”

IHU – Quem são essas meninas vítimas de violência sexual e qual o perfil destes estupradores?

Taysa Schiocchet – O ponto principal já foi respondido na questão anterior. Mas é pensar que isso acontece no ambiente familiar. Quando falamos em estupro, muitas pessoas imaginam e pensam que são pessoas desconhecidas, que é um sujeito que aparece na surdina, na calada da noite, mas, na verdade, não. Quando pensamos no contexto que isso ocorre, são meninas, violentadas sexualmente, em geral durante alguns anos, por pessoas próximas e da família com as quais elas têm uma relação de confiança. São as pessoas que deveriam educá-la, que dormem com elas, que passam dia e noite com essas crianças e adolescentes.

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