“Então, Foi Assim?” Nova seção do Bem Blogado conta como foram feitas belas músicas brasileiras

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O Bem Blogado ganha nova seção, trazendo para os seus internautas um expert em música, Ruy Godinho. Como se escolhe um perfume no meio de muitos frascos, o Bem Blogado vai, periodicamente, escolher uma das muitas histórias que o artista multimídia Ruy Godinho apresenta, na coleção literária “Então, Foi Assim”, sobre como foram feitas músicas de grande sucesso. Histórias contadas pelos autores, histórias para cantar.

Apresentamos aqui a fera que tem este dom de pesquisar e mostrar as fontes de inspirações para belas, como diziam antigamente, páginas musicais brasileiras.

Ruy Godinho, paraense é produtor multimídia, pesquisador, radialista, ator, diretor, escritor e divulgador de MPB.




Produz e apresenta o programa Roda de Choro, na Rádio Câmara FM 96,9 Mhz (Brasília-DF), desde jan/2003, retransmitido por mais de 230 rádios em todo país.

É autor da série de livros Então, foi assim? Os bastidores da criação musical brasileira, Volumes 1, 2, 3 e 4 e do Então, foi assim? Os bastidores da criação musical brasileira – Compositores Amapaenses.

Produz e apresenta o programa radiofônico Então, Foi Assim?, desde 2010, na rádio Cultura FM, de Brasília, retransmitido em mais de 270 rádios parceiras por todo o país.

Para estrear, destacamos a história de como Tunai, grande compositor falecido recentemente, fez com Sérgio Natureza a bela música Frisson. E sem essa de se assustar com o tamanho do texto, entre nesta gostosa história. Você vai querer é mais.

FRISSON

Você caiu do céu
Um anjo lindo que apareceu
Com olhos de cristal
Me enfeitiçou
Eu nunca vi nada igual

Foi o cantor e compositor João Bosco quem teve a feliz ideia de apresentar o irmão, o também cantor e compositor Tunai ao poeta e letrista Sergio Natureza , em 1977. A identificação foi imediata, tanto que no ano seguinte, a dupla emplacou na voz de Fafá de Belém a composição Se eu disser, no LP Banho de Cheiro.

A consagração não demoraria com a emocionante interpretação de Elis Regina para As aparências enganam , assinada por ambos, registrada no LP Essa Mulher, de 1979.

Essa gravação, segundo Tunai, foi o vestibular que ele precisava passar para largar a engenharia civil de vez e dedicar-se integralmente à música. E apenas na qualidade de compositor da família.

O ofício de violonista e cantor ele deixaria por conta do irmão, que tinha boa voz e disposição para passar quatro, cinco horas por dia estudando os acordes de baixo invertido, que se tornaram característicos nas harmonias de João Bosco.

Tunai não achava que sua voz fosse lá essas coisas e não dispunha de todo esse tempo para estudar, já que se ocupava de atividades tão boas quanto, como as peladas de futebol.

A história da vez é de um hit que foi usado como mote para milhões de abordagens, que embalou romances, serviu de pano de fundo para namoros e foi trilha sonora de cerimônias de casamento por esse Brasil afora: Frisson. A melodia nasceu primeiro e foi composta por Tunai, sensibilizado após assistir uma ópera-rock.

“Eu lembro que fiz essa música em 1984 e eu tinha essa estrofe na cabeça: Me olha, me toca, me faz sentir/que é hora, agora, da gente ir… Porque a ópera-rock Tommy estava bombando, e uma amiga minha, de Ponte Nova [MG], esteve em Nova York e comprou aquela caixa linda, Pinball [Wizard] na frente, o LP do The Who. Eu fiquei assim…

Tinha tanta gente boa ali dentro e eu fiquei muito marcado, a história é muito triste. O pai vai pra guerra e o filho fica lá com a mãe. Aí [o pai] fica todo desfigurado e quando volta para casa para reencontrar com a família, a mãe está casada com outro cara e ela rejeita essa relação. E o filho sente que o pai dele é o outro. É uma história muito triste, mas é aquele negócio de filme. Eu fiquei com isso na cabeça e fiz esse refrão, que o Sergio Natureza depois lembrou”, revela Tunai.

No Volume II desta Série, no capítulo reservado a Frisson, Natureza afirmou que a letra era toda dele. Tunai leu e conversou com o parceiro para relembrá-lo que, além de toda a melodia, criou também o refrão, que foi muito bem-aproveitado. Razão pela qual se torna necessária a retratação feita agora neste Volume.

“A princípio, ele tinha esquecido e havia dito que a letra toda era dele. Aí eu o lembrei e ele disse:
‘– Será que é isso mesmo’?
‘– Será, não, Sergio’!
A gente ficou de mal uma semana, mas agora está tudo certo”, afirma Tunai com sua contumaz espirituosidade.

A ópera-rock Tommy, a que Tunai se refere, é o quarto álbum de estúdio da banda britânica The Who, composta majoritariamente por Pete Townshend, guitarrista, com duas faixas do baixista John Entwistle e uma creditada ao baterista Keith Moon. O álbum foi lançado em 1969, relançado em CD duplo em 1984 e aclamado como a primeira grande ópera-rock do cenário internacional.

Tunai continua o relato, agora com a versão dele para a letra feita por Natureza. “Eu morava em Ipanema, o Sergio também morava. E uma modelo muito bonita, que desfilava com joias na Europa, morava a umas quatro quadras à frente – que depois eu fui saber. E aí ele a conheceu num bar e a letra veio toda. E antes de eles namorarem de verdade, já rolou. Porque acontece essa coisa. A gente nasceu pra isso.

Nós temos esse dom que Deus deu e de repente a música pode surgir na hora. Ele já estava com a minha música e já tinha esse refrão: Me olha, me toca, me faz sentir que é hora da gente ir… Ele queria logo ir com ela pra qualquer lugar e largar aquilo tudo ali.

Eu sei que dois dias depois a letra estava pronta, não sei nesse meio tempo o que aconteceu, mas sei que ele ficou feliz, namoraram bastante tempo. E depois eu fui conhecê-la, ela era minha vizinha. Eu a conheci na praia. Que bom, ela inspirou Frisson.”

O poeta Sergio Natureza detalha agora o momento da inspiração para escrever a letra.

“A música não tinha grandes pretensões. Mas o que é que aconteceu? Tinha um lugar aqui no Rio de Janeiro chamado Beco da Pimenta. Era um sobrado na rua Real Grandeza, em Botafogo. Apesar de ser um estabelecimento com o nome da Elis, tinha fotos dela, mas não era um culto à Elis. Era mais aproveitando a figura. E havia shows.

Um desses foi do cantor e compositor Moacyr Luz, que eu conheço há duzentos anos. Ele estava tocando e de repente começou a fazer sinais com a cabeça. Olhava pra mim e fazia assim [imita o gesto]. E eu não entendia. O que é isso? Deve estar doendo.”

Sergio me explicou que Moacyr estava, na época, com problemas no pescoço ou na coluna, que o deixavam com limitações no movimento.

“Ele insistiu. Eu olhei para o lado e vi uma mulher linda, um tipo totalmente diferente, parecia uma camponesa do leste europeu, com um pano na cabeça. Aí eu notei que era isso que ele queria chamar a atenção. E eu que sempre fui extremamente recatado, tímido mesmo – eu nunca fui de atacar –, nesse dia não me contive.

A entrada para os toaletes era comum e depois bifurcava. E era bastante ampla. Aí eu me tomei de sem-vergonhice e decidi: ‘Eu vou atrás dessa mulher’. Tomei coragem e fui. Quando a vi, não conseguia falar. Ela era linda, parecia uma coisa onírica mesmo. Isso não existe. Ela me olhou e disse: ‘Oi’!”

Sergio ficou embaraçado. Macaco velho, poeta, acostumado a escrever poemas e letras de músicas belíssimas, contumaz em encantar com os adjetivos e a conquistar pela palavra, naquele momento crucial não conseguia verbalizar coisa com coisa.
‘– Oi’!
‘– Oi’!
‘– Me desculpe eu estar olhando pra você assim. Você é linda’.
‘– Obrigada’.
‘– Você não existe’.
‘– Não, não sou nada disso que você está falando’.
‘– Você realmente caiu do céu. Você é um anjo’.
‘– Que nada. Obrigada’.
‘– O que é que você faz’?
‘– Eu sou modelo fotográfico’.
‘– Olha, eu estou assim com falta de ar’.
‘– Que nada’.
‘– Você deve estar com alguém’…
‘– Não. Eu estava com uma amiga, mas ela já foi’.
‘– Depois a gente conversa’.”

Esse foi o primeiro diálogo do poeta com a modelo Isabel, conhecida como Bebel. “Na verdade, partiu disso. Depois, eu a encontrei, a namorei, mas eu sempre fiquei um pouco distante, porque eu achava que era meio uma criação da minha cabeça.

Ela era muito linda. Uma pessoa adorável, doce. E não era só a beleza. Era a simplicidade. E a vestimenta era uma coisa meio oriental. Ela estava com uma roupa que me pirou. Eu acho que é porque ela desfilava, fazia fotografias. Mas ela não era do tipo Gisele Bündchen. Ela era uma morena, cheinha. Ela era uma mulher bonita, farta.”

Sem dúvida, uma bela fonte de inspiração para a letra. E a música? “O Tunai me mostrou uma música que ele já tinha, chegou assim em cima do laço. E a letra partiu de você caiu do céu, um anjo lindo que apareceu e foi embora.

Ela era bonita e eu acho que a música passava a leveza que eu queria dizer. Não pra dizer que eu estava apaixonado. E depois, foi um negócio tão assim… rolou e depois ‘desrolou’, sem o menor problema. Não houve briga, não houve nada. Eu não a vi mais e também ela nunca mais apareceu”, relata o poeta.

Tunai ficou curioso para conhecer a beldade. Não demorou para esse encontro acontecer. “Ele a conheceu anos depois, por uma circunstância de vida, acho que na praia e falou pra mim. Ela se apresentou: ‘Eu sou a Bebel. Você que é o Tunai? O Sergio fez aquela letra pra mim’. E o Tunai confirmou que fez a música comigo”, conta Sergio.

O interessante é que algumas das mulheres que tiveram algum contato com Sergio Natureza acham que foram suas musas, pensam que a música foi feita pra elas. Fazer o quê, numa situação dessas? Negar ou alimentar a doce ilusão?

“Ainda há pouco, apareceu uma senhora americana. Senhora hoje, mas que eu namorei quando ela estava com 20 anos. Linda e loira. Hoje uma senhora bonita e casada. Mas ela apareceu e depois de muita timidez me disse, falando em inglês:
‘– Aquela música você fez para mim, não foi’?
‘– É, foi. Com certeza. Como é que você adivinhou’?

Não, porque não custa nada. Pra bem da verdade, a música foi feita um pouco pra cada uma, senão não faz sentido. Como ela alcança todo mundo, as pessoas se veem na música. Algumas se acham as próprias musas, outras não.

E depois que a Ivete Sangalo gravou, até no feminino, todo mundo se acha homenageado. Eu achei ótimo”, conclui Sergio sem nenhuma modéstia.

Frisson foi gravada por Tunai no CD Em Cartaz (1984). Ivete Sangalo e grupo Ketama (Espanha) a regravaram em português e espanhol, no CD Eu e Você (Banda Eva), incluída na trilha da novela Suave Veneno (Tevê Globo, 1998). Em 2005, foi registrada com um arranjo sofisticado e belíssimo pela cantora Luanda Cozetti, no CD Um Pouco de Mim – Sergio Natureza e Amigos. E, ainda, por Tunai, no CD Eternamente (MZA, 2011), que contou com diversas participações, inclusive de Milton Nascimento, Simone, Zélia Duncan, Jane Duboc, Jorge Vercillo, Patricia Mellodi e Wagner Tiso.

Ouça aqui Frisson, na voz de Tunai.  Se você tem mais de 40 anos, certamente vai lembrar desta música que muito tocou no rádio. 

Frisson
(Tunai/Sergio Natureza)

Meu coração pulou
Você chegou, me deixou assim
Com os pés fora do chão
Pensei: que bom…
Parece, enfim acordei
Pra renovar meu ser
Faltava mesmo chegar você
Assim sem me avisar
Pra acelerar…
Um coração que já bate pouco
De tanto procurar por outro
Anda cansado
Mas quando você está do lado
Fica louco de satisfação
Solidão nunca mais

Você caiu do céu
Um anjo lindo que apareceu
Com olhos de cristal
Me enfeitiçou
Eu nunca vi nada igual
De repente…
Você surgiu na minha frente
Luz cintilante
Estrela em forma de gente
Invasora do planeta amor
Você me conquistou

Me olha, me toca, me faz sentir
Que é hora, agora, da gente ir

 

Foto: Luiz Clementino

livros disponíveis no site: www.entaofoiassim.com.br

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