Entenda o papel da esquerda na formação do novo governo da França após derrota da extrema direita

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Partidos França Insubmissa e Socialista aparecem com o mesmo peso para uma possível indicação de nome de esquerda

Por Leandro Melito, compartilhado de Brasil de Fato




As ruas são tomadas na França após projeções confirmarem vitória da coligação de esquerda na eleição legislativa neste domingo (7) – Emmanuel Dunand / AFP

A dez dias da abertura dos Jogos Olímpicos, o presidente da França, Emmanuel Macron, aceitou na terça-feira (16) a renúncia de seu gabinete, que seguirá atuando de forma interina enquanto prosseguem as negociações  partidárias para definir a próxima maioria de governo. O Executivo administrará “os assuntos cotidianos até que um novo governo seja nomeado”, indicou a presidência em um comunicado, após o fracasso da coalizão de Macron em obter uma maioria nas eleições legislativas antecipadas.

Em um Conselho de Ministros realizado algumas horas antes, Macron havia indicado ao primeiro-ministro, Gabriel Attal, que aceitaria sua renúncia e a de sua equipe. Também deu a entender que a situação pode “durar algum tempo”, inclusive “semanas” e provavelmente até o final dos Jogos Olímpicos de Paris, que começam em 26 de julho e terminam em 11 de agosto, acrescentaram. 

“Após o primeiro turno, o presidente desapareceu porque tudo o que ele havia dito era um fracasso, ele havia fracassado. Então Gabriel Attal veio à tona, o atual primeiro-ministro, que abandonou publicamente o presidente e começou a liderar a campanha do campo presidencial e pediu a renúncia daqueles que estavam em terceiro lugar em seu campo”, disse ao Brasil de Fato a militante francesa Monique Piot Murga.

Ela é presidenta do comitê dos amigos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na França e  explicou que a adesão do campo macronista à estratégia de enfrentamento à extrema direita, não contou com a iniciativa do presidente francês. “Macron não tem nada a ver com a aproximação da esquerda. Nem antes, nem agora, nem amanhã.”

O gabinete francês se reuniu nove dias após o segundo turno das legislativas, que reconfigurou o tabuleiro político no país: nenhum partido ou coalizão obteve a maioria absoluta de 289 deputados. A Nova Frente Popular (NFP), aliança de esquerda que inclui socialistas, comunistas, ambientalistas e a esquerda radical do partido França Insubmissa, ficou em primeiro lugar, à frente da aliança de centro-direita de Macron e da extrema direita.

A NFP ficou em primeiro lugar com pouco menos de 200 cadeiras no segundo turno, seguida pela aliança de centro-direita de Macron (160) e pelo partido de extrema direita Reagrupamento Nacional (RN) e seus aliados (143).

A renúncia do governo permitirá a vários membros eleitos deputados participarem da eleição de quinta-feira (18) do novo presidente da Assembleia Nacional, a Câmara Baixa do Parlamento. A política francesa encontra-se em um momento de incerteza, já que ainda não se sabe qual força conseguirá formar um governo. 

Em uma carta aos franceses na quarta passada, Macron havia pedido às “forças políticas que se identificam com as instituições republicanas” que construíssem uma “maioria sólida” no Parlamento. 


Monique Piot Murga, é presidenta do comitê dos amigos do MST na França / Marina Duarte

Ela aponta que o momento é de articulação entre os partidos que compõem a NFP para a indicação de um nome do campo progressista para o cargo de primeiro-ministro, e aponta que alianças com o partido de Macron estão descartadas nesse processo.

“Partido Comunista e a França Insubmissa tomaram a posição de não fazer aliança com o partido presidencial. Porque estamos lutando há sete anos contra tudo o que destruiu o país, nosso programa é reconstruir o que foi destruído. Portanto, não há como imaginarmos uma aliança, é muito complicado. Alguns dos socialistas que são mais centristas estão pensando em uma aliança com parte do campo presidencial, mas eles são minoria na Nova Frente Popular.”

A carta de Macron apontava para a excluir a ultradireitista RN e a principal formação da NFP, A França Insubmissa (LFI), dirigida por Jean-Luc Mélenchon. 

Monique aponta  que a estratégia de Macron não ressoa na NFP e  que não está no horizonte da esquerda francesa abandonar um dos principais partidos progressistas do país. “O campo presidencial também está dividido entre aqueles que querem fazer uma aliança com a direita e aqueles que são mais ou menos a favor de uma aliança com a esquerda, que eles chamam de republicana, mas que não é, sem a França Insubmissa. É uma proposta do campo presidencial, dos liberais. Isso não será aceito pela Nova Frente Popular, que não pode imaginar que a França Insubmissa não ficará. Ela é o maior partido. Portanto, isso não pode ser imaginado e não vai acontecer.”

A LFI por sua vez rejeitou na terça-feira (16) a indicação da economista Laurence Tubiana para o cargo de primeira-ministra – nome de consenso entre socialistas, comunistas e ecologistas – por considerar a professora, de 73 anos, próxima a Macron. 

Já os socialistas descartaram, durante o fim de semana, a sugestão da LFI, ecologistas e comunistas de oferecer o cargo a Huguette Bello, uma ex-deputada comunista de 73 anos que atualmente é presidente do Conselho Regional da Ilha da Reunião, um território francês no Oceano Índico. 

Leia a entrevista completa

Brasil de Fato: Antes das eleições, não havia sinais de que Macron pudesse se aproximar da esquerda. Mas a ameaça da extrema direita uniu esses campos. Como e por que a chamada “Frente Republicana” foi bem-sucedida?

Monique Piot Murga: Acho que o contexto precisa ser explicado um pouco. Macron dissolveu a Assembleia Nacional porque seu partido e seu grupo político fracassaram nas eleições europeias. Então, ele teve a estratégia de realizar eleições pensando que a esquerda estaria desunida e que ele poderia se apresentar como a única opção segura contra o Reagrupamento Nacional, como havia feito em várias eleições, dizendo “Eu ou o caos”.

Mas sua estratégia falhou. No mesmo dia da dissolução da Assembleia Nacional, os partidos de esquerda se reuniram e criaram a Nova Frente Popular. Esse nome tem uma força muito importante na França porque se refere a um evento que ocorreu em 1936, chamado Frente Popular, que foi um grande sucesso. Foi também uma união antifascista contra o nazismo, além de ter sido um grande sucesso social. Então, bem, essa nova Frente Popular, depois de muitos anos de divisão da esquerda, despertou imediatamente uma grande esperança na França.

Macron não fez nenhum apelo à esquerda, ele fez uma campanha de medo, dizendo que é preciso ter muito medo da ultraesquerda, assim como é preciso ter medo da ultradireita. Portanto, nada antifascista ou de combate à extrema direita. E ele colocou a extrema direita como uma onda diabólica, que era muito perigosa, que iria destruir o país, e assim por diante.

O primeiro turno não foi bom para ele, para o macronismo: a extrema direita foi muito forte no primeiro turno e depois houve uma discussão sobre o que é chamado em francês de Frente Republicana. Mas temos que explicar que a Frente Popular é uma aliança política com um programa, enquanto a chamada Frente Republicana não é uma frente, é uma prática específica: quem fica em terceiro lugar, no primeiro turno, desiste, renuncia e pede que seus eleitores votem em quem não é de extrema direita.

Portanto, como não se trata realmente de um acordo político, é um acordo antifascista, digamos assim, mas é um acordo pontual que sempre é feito entre adversários e, nesse caso, não foi Macron. Após o primeiro turno, os partidos de esquerda decidiram imediatamente a renúncia daqueles que ficaram em terceiro lugar para evitar que a Frente Nacional ganhasse muitos deputados. Após o primeiro turno, o presidente desapareceu porque tudo o que ele havia dito era um fracasso, ele havia fracassado. Então Gabriel Attal veio à tona, o atual primeiro-ministro, que abandonou publicamente o presidente e começou a liderar a campanha do campo presidencial e pediu a renúncia daqueles que estavam em terceiro lugar em seu campo. Portanto, Macron não tem nada a ver com a aproximação da esquerda. Nem antes, nem agora, nem amanhã. 

Os legisladores franceses agora terão que formar um governo de coalizão. A ideia inicial era excluir o RN, mas agora também há cada vez mais pedidos para excluir A França Insubmissa… Que papel a esquerda desempenhará nessa aliança quando o governo for formado?

No momento, estamos com uma dúvida total. Não sabemos o que vai acontecer. A Nova Frente Popular assim como a maioria dos partidos tomou uma posição. O Partido Comunista e a França Insubmissa tomaram a posição de não fazer aliança com o partido presidencial. Porque estamos lutando há sete anos contra tudo o que destruiu o país. Nosso programa é reconstruir o que foi destruído. Portanto, não há como imaginarmos uma aliança, é muito complicado.

Alguns dos socialistas que são mais centristas estão pensando em uma aliança com parte do campo presidencial, mas eles são minoria na nova Frente Popular. E, por outro lado, o campo presidencial também está dividido entre aqueles que querem fazer uma aliança com a direita e aqueles que são mais ou menos a favor de uma aliança com a esquerda, que eles chamam de republicana, mas que não é, sem a França Insubmissa. É uma proposta do campo presidencial, dos liberais. Isso não será aceito pela Nova Frente Popular, que não pode imaginar que a França Insubmissa não ficará. Ela é o maior partido. Portanto, isso não pode ser imaginado e não vai acontecer. 

O que acontecerá agora no Parlamento? Como pode ser a coalizão majoritária?

Não estou vendo uma coalizão majoritária. Realmente não vejo isso. Estamos muito longe de uma maioria absoluta. Temos em torno de 190 e a maioria é 289. Então, ainda falta muito. Se estiver faltando 20, você consegue convencer os grupos pequenos, mais de 100 acho que é difícil. Então, também pode ser uma estratégia, se tivéssemos um governo de esquerda,  fazer lei por lei, para conseguir que uma parte dos macronistas e uma parte de outros pequenos grupos votassem em questões sociais. Mas isso será muito, muito difícil.

Há um nome de consenso na esquerda para indicação de primeiro-ministro? A presença de um nome do campo no cargo poderia levar o governo mais para a esquerda, com políticas sociais etc.?

Não, no momento não. Os grupos políticos no Parlamento estão se preparando para apresentar oficialmente seu grupo e a composição de seu grupo. Portanto, no momento, há negociações no Parlamento para atrair mais deputados para seu próprio grupo a fim de aumentar o número de deputados e, no momento, há uma competição entre o Partido Socialista Socialista e A França Insubmissa. 

A verdade é que não é uma questão de nome, de pessoa, é uma correlação de forças. Em uma visão talvez utópica, um primeiro-ministro de esquerda compõe um governo de esquerda e tenta conseguir algo com a rua. Porque sem a rua, vai ser um governo enfraquecido, o que eu acho que no Brasil vocês conhecem bem esse problema, e a única coisa que será possível é fazer concessões, concessões e concessões. 

Você tem que fazer acordos, há uma mudança importante no fato de que a França Insubmissa não é mais a única líder da esquerda, com toda a política de austeridade de Macron e até mesmo de direita, muito forte. Uma parte de seu apoio político, que vinha, desde as duas últimas eleições presidenciais, da parte central do Partido Socialista, dos reformistas, retornou ao Partido Socialista. Então, o Partido Socialista se reencontrou como era há 15 anos, muito maior, e agora os dois são iguais, as duas maiores forças, iguais, na Frente Popular.

A França Insubmissa não pode mais liderar a aliança de esquerda no que diz respeito aos nomes. Não se pode dizer um nome, você pode supor ou fazer hipóteses. Melanchón não será o candidato da França Insubmissa. Poderia ser Mathilde Panot, que é a ex-presidente do grupo de Deputados da França Insubmissa. E sei que Olivier Faure, que foi presidente do Partido Socialista, anunciou que poderia ser candidato. Portanto, teríamos duas forças para ter a proposta do primeiro-ministro.

A vitória da esquerda se deve a uma boa estratégia, ao fracasso de Macron ou ao sucesso da Frente Ampla? 

É uma mistura de muitas razões, mas é a primeira vez que vejo uma grande mobilização. É complicado, porque mesmo com milhões de votos, a esquerda ainda não alcançou o número de votos de 2012, muito menos de 1981, porque a abstenção cresceu e se mantém em 33%, o que é muito. Mas percebemos, dentro da esquerda, que pessoas que não votavam há 10, 15 ou 20 anos voltaram a votar. Então a mobilização foi muito grande. A segunda coisa é que, diante do precipício, os franceses disseram não, mas nós já somos republicanos.

A Frente Nacional não perdeu votos, mas a direita e os macronistas não votaram na Frente no segundo turno, o que falamos de renúncia republicana funcionou. Então o campo da extrema direita tinha candidatos em 189 distritos eleitorais. Sem essa renúncia republicana, eles teriam conquistado cerca de 200 deputados, mas por causa disso, eles ganharam apenas 88. A Frente Nacional tem 143 deputados com 37% dos votos e a esquerda tem 193 deputados com 27% dos votos. Portanto, o sistema eleitoral favoreceu a aliança republicana.

Quais foram as principais bandeiras da esquerda nessa campanha?

O programa foi feito muito rapidamente, em uma noite, com base na aliança da eleição presidencial legislativa anterior de 2022, que foi chamada de Nova União Popular e Social. Assim, eles concordaram muito rapidamente com um programa de medidas que não eram tão estruturais, mas diretamente sociais. O aumento do salário mínimo de 1.400 para 1.600 euros, uma medida imediata.

A indexação dos salários à inflação, que é muito importante para não perder dinheiro quando os preços sobem, o bloqueio dos preços, dos alimentos e da energia. Eles também concordaram com refeições escolares gratuitas e material escolar gratuito para as crianças. Também concordaram em organizar com urgência uma negociação para os agricultores terem um preço de venda correto. Ainda outras medidas sobre a polícia, policiamento comunitário e menos repressão, e também sobre a diplomacia francesa a serviço da paz. Mas como eles não concordam de fato, não deram mais detalhes. E pelo cessar-fogo em Gaza, em que todos estão de acordo e uma paz justa e duradoura na Palestina. 

Sobre a mobilização e como ela continuará, já existe um movimento, houve uma grande mobilização, muitas pessoas que começaram a fazer campanha de porta em porta, porque aos poucos são organizadas equipes para conversar com as famílias. Também organizamos brigadas para ir de um lugar onde já havíamos perdido ou ganhado, para outras cidades que tínhamos de ajudar.

Esse tipo de coisa não era feita em massa havia muito tempo. Para a mobilização nas ruas, temos de esperar pelos sindicatos. Uma coisa muito importante que lembramos com os camaradas franceses é que foi a primeira vez que o movimento sindical de esquerda e as grandes associações assumiram uma posição política. Isso não é feito na França, porque significaria a divisão do movimento social e dos partidos.

Mas desta vez, foi um passo importante dado neste momento de uma politização muito mais forte do movimento sindical e das associações, e para ver o que acontecerá depois, dependendo do que acontecerá na França no outono (setembro a dezembro). Sei que os sindicatos têm uma reunião intersindical com as nove grandes centrais sindicais e que eles vão se reunir para propor um plano de ação para depois das férias escolares que estão começando agora.  

Há uma tentativa de limpar a imagem da extrema direita. Você poderia explicar como tem sido esse processo?

É um processo que vem ocorrendo há cerca de 20 anos, porque no início [o RN] era um partido muito violento, muito racista, criado por nazistas e com torturadores da guerra da Argélia. Depois, a filha [Marine Le Pen], quando assumiu a presidência, começou a ter um discurso mais social, com um jeito mais suave de falar. Ela fotografou bem, tira foto com seus gatos, quando recebe entrevistas em casa, coisas assim.

Bem, o problema é que eles realmente não têm um programa. Então, eles dizem o que quer que funcione com as pessoas, o que eles querem é poder, não criar um programa. Então, pouco a pouco, eles começaram a dizer o que queriam que as pessoas entendessem, que eles iriam criar um programa social e que iriam limitar a entrada de imigrantes ou que os imigrantes estavam tirando muito trabalho dos franceses.

Quais têm sido as principais defesas da extrema direita?

Nas principais defesas, a extrema direita tinha um programa social. É por isso que eles também enganaram muito as pessoas. E algumas medidas são iguais às que a esquerda está propondo. Mas, ao se aproximar das eleições, as medidas anunciadas acabaram sendo negadas. Então, cancelar a reforma da previdência não, isso seria visto depois. Aumentar o salário mínimo, não, ainda não se sabe,  teria que ser feito um balanço econômico da situação financeira do Estado. Portanto, eles voltaram atrás em muitas medidas.

Em segundo lugar, eles atacaram muito a esquerda como ultraesquerdista islâmica, tudo isso. E, em terceiro lugar, cometeram erros no RN para eleger não sei quantos candidatos que eles colocaram na época, e não foram eleitos. Eles fizeram isso muito rápido, pois não tinham uma base militante. No final, eles saíram com candidatos condenados pela justiça, mentalmente incapazes ou que tinham fotos com o quepe nazista, com um monte de discursos racistas. Então eles tinham 60 que não eram apresentáveis. Portanto, isso também foi um pouco complicado para eles. E o chefe do RN, Javier Bardella, cometeu erros. Por exemplo, ameaçou os franceses que têm duas nacionalidades, que são mais ou menos 10 milhões de pessoas na França,  são muitos.  

Ele ameaçou que, por um lado, eles não poderiam mais obter posições importantes no país, econômicas ou políticas, ou que eram pessoas que não eram seguras e, por outro lado, eles decidiram que qualquer condenação criminal poderia tirar a nacionalidade francesa deles. Isso foi um grande erro, um grande erro. Isso também ajudou a mostrar a verdadeira face desse movimento. Em muitas profissões há uma maioria de pessoas que são de imigração recente ou mais antiga e que acabaram de se voltar contra o antissemitismo na nova onda do Reagrupamento Nacional. 

Edição: Rodrigo Durão Coelho

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