Por Camila Fernandes, compartilhado do Portal Letras* –
Geni e o Zepelim é uma das canções mais fortes da MPB. Composta por Chico Buarque em 1978 como parte do espetáculo Ópera do Malandro, a música permanece atual e suas críticas continuam válidas.
Prova disso é a quantidade de interpretações que ela já ganhou em shows e apresentações de teatro. Uma das versões mais famosas é a da atriz Letícia Sabatella no espetáculo Alma Boa de Lugar Nenhum.
Só por essa interpretação já deu pra perceber o peso que a música tem, né? Então bora entender melhor o que a letra diz!
Significado de Geni e o Zepelim
Na década de 70, o Brasil vivia sob o Regime Militar e ainda estava em vigor o Ato Institucional Número 5, que marcou o auge da censura no país.
Nessa época, Chico Buarque ficou conhecido por enfrentar a repressão e se posicionar abertamente contra a censura em suas composições, ao lado de vários outros artistas.
Esse sentimento se manifestava em canções sobre problemas sociais e opressão, como é o caso de Geni e o Zepelim e da peça teatral Ópera do Malandro.
Além disso, outra característica das composições de Chico que aparece na história de Geni é o protagonismo da personagem feminina.
O cantor escreveu muito sobre mulheres em diferentes universos e, em Geni e o Zepelim, ele traz essa questão de um modo diferente ao falar sobre o uso do corpo, a objetificação e a condenação pela sociedade.
Agora que já conhece melhor o contexto, dá o play no vídeo para ouvir enquanto acompanha a análise dos versos!
Primeira parte: apresentando Geni
De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
A letra começa nos apresentando Geni e o primeiro aspecto retratado é sua vida sexual. O corpo dela é dado como um objeto e, na descrição, ela se resume basicamente a isso.
Ao ouvir a música completa, vamos perceber que é justamente essa a crítica que ela traz: a sociedade vê Geni como um corpo que pode ser usado.
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
Aqui já começamos a ter uma ideia de que Geni pode ser uma prostituta e que ela atende a todo tipo de gente.
Ela faz sucesso entre homens e mulheres nas mais diversas situações, desde os presos até os adolescentes do internato.
E também vai amiúde
Com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
E por que motivo Geni se submete a tudo isso? Aqui, a letra nos diz que ela é inspirada pela bondade.
Provavelmente por saber como é ser discriminada, Geni não tem nenhum tipo de preconceito, e essa atitude dela desperta a fúria da cidade.
Joga pedra na Geni!
Joga pedra na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!
O refrão da música ressalta a crueldade das pessoas da cidade com Geni. Ela é completamente desumanizada, agredida física e psicologicamente.
A justificativa para tais atos? O uso que ela faz de seu próprio corpo.
A música não deixa claro, já que os pronomes são todos femininos, mas, ao ver a Ópera do Malandro, descobrimos que Geni é uma travesti — seu nome de batismo é Genivaldo.
Essa seria mais uma razão para despertar fúria contra ela, já que o musical se passa em uma sociedade conservadora da década de 40.
Segunda parte: a chegada do zepelim
Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
Depois do primeiro refrão, a música para a descrição de Geni para introduzir o segundo nome que aparece no título: o zepelim.
Zepelim é um tipo de dirigível feito com material rígido criado na Alemanha, que foi muito usado para fins militares e para transporte de passageiros sobre os oceanos na década de 30.
A letra relata a chegada dele sobre a cidade, já com os canhões apontados, ou seja, com a clara intenção de atacar.
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo: “Mudei de ideia!”
Ao ver o zepelim, os habitantes da cidade ficam imediatamente apavorados, já esperando a destruição.
No entanto, eles são surpreendidos quando o comandante do dirigível aparece e diz que mudou de ideia.
Quando vi nesta cidade
Tanto horror e iniquidade
Resolvi tudo explodir
Mas posso evitar o drama
Se aquela formosa dama
Esta noite me servir
Essa estrofe mostra a fala do comandante do zepelim. Ele explica os motivos pelos quais pensou em destruir a cidade e também a razão da desistência.
Olhando do alto, o comandante se encantou por uma mulher, e está disposto a cancelar o ataque se puder passar uma noite com ela.
Essa dama era Geni!
Mas não pode ser Geni!
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni!
Para a surpresa de todos, ele queria Geni. Logo ela, a qual a cidade inteira não atribuía nenhum valor, agora era a responsável pela salvação.
Esse segundo refrão enfatiza a incredulidade do povo diante da situação.
Terceira parte: Geni assume o poder
Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Apesar de parecer absurdo à população da cidade, era mesmo Geni a dama que despertou o interesse do comandante.
A música enfatiza a relação controversa de poder: logo ela, tão insignificante, conseguiu dominar um homem tão poderoso.
Acontece que a donzela
(E isso era segredo dela)
Também tinha seus caprichos
E ao deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Apesar de o coro da cidade enfatizar no refrão que ela dá pra qualquer um, eles acabam descobrindo que não era bem assim. Geni tinha sim suas preferências, e o comandante do zepelim não fazia parte delas.
Dentro da Ópera do Malandro, é possível perceber que Geni e o Zepelim traz outras críticas mais discretas além da história principal. Essa estrofe é vista como uma aversão ao capitalismo.
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
A principal mensagem da música começa a ser apontada nessa estrofe, quando a cidade muda seu comportamento perante Geni por puro interesse.
As figuras do prefeito, do bispo e do banqueiro representam os três pilares da cidade: o poder público, o capital e a igreja, todos rendidos aos pés da mulher que antes odiavam.
Vai com ele, vai, Geni!
Vai com ele, vai, Geni!
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni!
Na terceira versão do refrão, a cidade clama pela ajuda de Geni, que agora é bendita.
Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Por fim, diante de todas as súplicas, Geni resolve ceder e abrir mão de sua única objeção.
A música diz que ela dominou seu asco, ou seja, ela aceitou se submeter àquela situação pelo bem da cidade, mesmo sentindo aversão ao homem com quem teria que se deitar.
Quarta parte: fim do encanto
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
A estrofe anterior diz que Geni se entregou como quem dá-se ao carrasco, ou seja, deixou que ele fizesse dela o que bem entendesse. Voltamos, então, ao corpo de Geni sendo visto e usado como um objeto.
Depois de fazer tudo o que queria, o comandante cumpre sua promessa e vai embora, deixando a cidade intacta logo ao amanhecer.
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Ao ver que tudo aquilo tinha acabado e que estava livre de novo, Geni se sentiu aliviada, mas por pouco tempo.
Joga pedra na Geni!
Joga bosta na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!
Esse último refrão é idêntico ao primeiro, demonstrando que as coisas voltaram a ser exatamente como eram antes. Agora que Geni não tinha mais nenhuma utilidade, a cidade volta a tratá-la com o mesmo desprezo.
É essa a conclusão da história, que faz com que muitos a entendam como uma crítica à hipocrisia da sociedade.