Especialista no tema aponta preocupações em acordo que levou ex-jogador ao comando do clube mineiro
Paulo Motoryn, compartilhado de Brasil de Fato
No jargão econômico, “voo de galinha” ocorre quando uma economia inicia um processo de recuperação, mas logo em seguida despenca, sem dar conta de sustentar o crescimento. A figura foi utilizada por Irlan Simões, jornalista e pesquisador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) para expressar uma de suas preocupações em torno da compra do Cruzeiro por um fundo de investimentos ligado ao ex-jogador Ronaldo Fenômeno.
Estudioso do tema e organizador do livro Clube-Empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol, Simões disse ao Brasil de Fato que projeta um sucesso esportivo rápido como resultado da negociação, anunciada no último sábado (18). Ele avalia, contudo, que a situação no longo prazo não será confortável para o clube mineiro, que estará “à mercê de Ronaldo”.
“Há uma figura que usamos nessa discussão que é o chamado ‘voo de galinha’ do clube empresa. O clube recebe um aporte inicial, se diferencia em um momento específico, mas isso é um voo de galinha porque, na hora da aterrissagem, o cenário muda e o clube passa a ter mais obrigações do que recursos”, declara.
“O Cruzeiro já não tem mais nenhuma margem de manobra e não tem mais condição nenhuma de bolar um plano B ou C que não seja à mercê do que o Ronaldo quiser.”
O ex-atacante da seleção – que começou profissionalmente no Cruzeiro – prometeu investir R$ 400 milhões na negociação que adquiriu 90% das ações do clube. O novo administrador da Raposa assume o clube em um cenário de crise financeira. Vivendo a pior fase da sua história centenária, há três anos na Série B, o clube mineiro tem uma dívida acumulada próxima de R$ 1 bilhão.
Os clubes brasileiros estão autorizados a se transformar em SAF (Sociedade Anônima de Futebol), após a promulgação da Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021.
Além do Cruzeiro, outros grandes times do país podem apostar na mesma estratégia nos próximos meses. Simões vê o tema com cautela e lamenta que a norma não obrigue os clubes a divulgarem quem são os acionistas ou cotistas dos fundos que assumem a gestão das equipes.
Em seu livro, o pesquisador propõe análises alternativas sobre o tema. Aliando pesquisas acadêmicas e relatos de movimentos de torcedores de Chile, Argentina, Portugal e Espanha, além de abordagens sobre Alemanha e Inglaterra, a obra traz um quadro amplo e diverso de entendimentos sobres os verdadeiros impactos da entrega dos clubes a grupos privados.
Os textos desconfiam e contestam, a partir de casos concretos, os mantras da profissionalização, da eficiência gerencial, da atração de investimentos, da transparência nas contas, da boa governança corporativa e do ganho de competitividade em campo, estabelecendo um quadro real e pouco animador sobre a atual situação dos clube-empresa no mundo. Clique aqui para saber como comprar.
Leia a entrevista com Irlan Simões:
Brasil de Fato: No curto prazo, está correto entender que a venda do Cruzeiro pode ajudar o clube se reerguer esportivamente?
Irlan Simões: Quando alguém compra um clube de uma associação, uma vez que a Associação Cruzeiro Esporte Clube é uma associação civil sem fins lucrativos, é natural que o recurso seja totalmente reinvestido na atividade do clube, seja no pagamento de dívidas ou no investimento em novos ativos, como novos jogadores ou em melhorias estruturais. Então, nesse primeiro momento, é inevitável entender que esse recurso, sim, vai fazer uma diferença muito grande para o Cruzeiro.
Como na Lei da SAF (Sociedade Anônima de Futebol), a dívida fica com a associação, a SAF nasce sem dívida alguma, só com esses ativos que foram transferidos da associação para SAF – que é isso que o Ronaldo tá comprando 90%, ao que consta. Estamos falando de uma espécie de empresa “limpa”, que começa só com esse aporte financeiro. Existe um diferencial, ainda que temporário, do Cruzeiro com relação aos adversários. Isso vai acontecer [o sucesso dentro de campo] em 2 ou 3 anos, sem a menor sombra de dúvida.
No longo prazo, quais são as preocupações em torno desse tipo de arranjo?
A questão é que, no longo prazo, esse aporte financeiro que o Ronaldo está fazendo não é a fundo perdido. Ele vai procurar, no mínimo, empatar esse investimento para não sair no prejuízo. E, obviamente, isso vai comprometer as receitas futuras do Cruzeiro, seja vendendo jogador ou utilizando a própria receita do clube para continuar pagando essa dívida, porque ele vai ter que se comprometer com o pagamento dessa dívida.
Há uma figura que usamos nessa discussão que é o chamado “voo de galinha” do clube empresa. O clube recebe um aporte inicial, se diferencia em um momento específico, mas isso é um voo de galinha porque, na hora da aterrissagem, o cenário muda e o clube passa a ter mais obrigações do que recursos.
Quais são as principais ameaças ao sucesso da nova estrutura de comando?
O que pode acontecer, de certa forma, é a frustração do projeto de Ronaldo. Enquanto empresário, ele busca, de certa forma, explorar o Cruzeiro, o tamanho da torcida do Cruzeiro, a marca do Cruzeiro para finalidades comerciais. Ele pode acabar se frustrando nesse processo. O mundo pode entrar em uma nova recessão, a economia brasileira não ajudar, o Cruzeiro não ser bem sucedido dentro de campo. Isso tudo pode acontecer. A própria SAF pode acabar acumulando muitas dívidas por uma questão da própria da natureza do negócio do futebol, que é muito complicado.
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Pode chegar no momento em que o Ronaldo já não vai ter mais esse cacife e esse interesse em renovar as injeções financeiras, e o Cruzeiro está à mercê dele. O Cruzeiro vendeu 90% do capital dessa empresa. A única forma de reverter ou de mudar os rumos, caso esse projeto Ronaldo fracasse, seria o clube retomar essas ações para retomar o controle e dar um novo encaminhamento.
Só que o clube teria que comprar 40% a 50% desse capital no futuro para retomar o controle. Ou o próprio Ronaldo teria que ter a boa vontade ou o interesse de vender a participação dele. O clube corre o risco de ficar estagnado por uma falta de resultados concretos, esportivos e financeiros, se o projeto do Ronaldo não dar certo.
Os dispositivos de transparências, que eram muito interessantes na Lei, não existem mais e hoje a gente fica nessa situação de correr risco de ver clubes caírem na mão de pessoas de baixa índole.
Tudo bem ser otimista hoje, é muito fácil. Mas a gente não pode descartar que isso dê errado. Hoje, o Cruzeiro já não tem mais nenhuma margem de manobra e não tem mais condição nenhuma de bolar um plano B, um plano C que não seja à mercê do que o Ronaldo quiser.
Como você avalia a questão da transparência na Lei da SAF e no caso do Cruzeiro especificamente?
A Lei da SAF foi elaborada de modo interessante do ponto de vista da transparência. Ela obrigava que os clubes divulgassem no seu site oficial quem são os acionistas e, caso o clube fosse controlado ou tivesse como acionista um fundo de investimentos, esse fundo de investimento deveria divulgar quem são os cotistas. É esse o caso do Cruzeiro.
Nós não sabemos quem serão os acionistas da Tara Sports. Ronaldo é a figura principal. Até onde a gente sabe, ele é o grande acionista da Tara Sports. Quem está comprando o Cruzeiro não é o Ronaldo pessoa física. Quem está comprando é a Tara Sports, pessoa jurídica que pertence a Ronaldo, que pode ter outros sócios de forma oculta e, se depender da lei, a gente não vai saber.
O que ocorreu é que no projeto de lei que foi enviado ao governo federal dois vetos pesaram na discussão mais ampla. Um era a queda dessa obrigatoriedade da divulgação dos acionistas diretos ou via fundos de investimento.
Outro foi um veto sobre o regime especial de tributação, que acabou criando muita polêmica exatamente porque é o coração do projeto, o que convenceria os clubes a virarem SAF de uma vez por todas. Isso acabou gerando muita polêmica, mas a parte da transparência, ninguém se importou, simplesmente não foi alvo de debate. E hoje a gente está nessa situação. Pode não ser o problema do Cruzeiro, porque o próprio proprietário e o Cruzeiro podem exigir isso no estatuto da própria SAF de forma voluntária, sem precisar da lei.
A queda dos dispositivos de transparências, que eram muito interessantes na Lei, não existe mais e hoje a gente fica aí nessa situação de correr risco de ver clubes caírem na mão de pessoas de baixa índole.
Edição: Leandro Melito