Publicado em Justificando –
“Todas as vítimas da ditadura e os seus familiares e apoiadores não aceitarão demagogia política e revisionismo histórico com as suas memórias e os seus direitos”
A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves deve anunciar até o fim desta semana mudanças no regime de indenizações pagas pelo governo federal a pessoas perseguidas pelo regime militar, entre 1946 e 1988. Nesse mesmo contexto, o instituto que examina os requerimentos de indenização e assessora o Estado em suas decisões, Comissão de Anistia, também deve passar por mudanças estruturais.
Em 2001, por meio de uma medida provisória, o então presidente Fernando Henrique Cardoso criou a Comissão de Anistia no âmbito do Ministério da Justiça. Hoje, o comissão passa a atuar na esfera da pasta de Damares Alves, que vem tecendo comentários contrários à política de pensões nesse modelo.
Incorpora o discurso de Alves, uma reportagem exclusiva publicada pela Revista IstoÉ que caracteriza as indenizações como uma “farra” e traz valores pagos a políticos perseguidos pelo regime ditatorial brasileiro como o ex-presidente Lula, a ex-presidenta Dilma Rousseff, José Dirceu e José Genoino. A reportagem traz que, embora o nome da maioria dos beneficiários seja desconhecido pelo “grande público”, “há porém, pessoas claramente identificadas com o petismo e a esquerda”.
O partido do presidente Jair Bolsonaro, PSL, cogita a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o pagamento de indenizações durante o período em que o Partido dos Trabalhadores esteve no Executivo brasileiro. Desde que a política foi criada, a totalidade das indenizações de caráter político soma R$ 9,9 bilhões.
Em resposta aos possíveis desmontes do governo Bolsonaro e à reportagem da IstoÉ, pesquisadores, entidades de direitos humanos e ex-integrantes da Comissão de Anistia lançaram nesta quarta-feira (20) um manifesto no qual afirma que “por meio de imprecisões técnicas e notícias falsas”, a reportagem “busca desmerecer o trabalho realizado pela Comissão de Anistia ao longo da sua existência e questionar os direitos das vítimas da ditadura”. Entre os assinantes do manifesto, estão Associação de Juízes para a Democracia (AJD), Grupo Tortura Nunca Mais, Justiça Global, Célia Regina Ody Bernardes (Juíza Federal e membra da AJD), Michael Löwy (sociólogo e diretor de pesquisa emérito no CNRS, em Paris), Chico Alencar (PSOL-RJ), Maria do Rosário (PT-RS), Ivan Valente (PSOL-SP), Luisa Erundina (PSOL-SP).
O professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul José Carlos Moreira disse que por meio desse movimento do governo “se busca atingir a um só golpe: a memória política, os anistiados, as bases do pacto democrático brasileiro e todos os que militam por Verdade, Memória e Justiça. Diante disso, redigimos um manifesto no qual enfrentamos as imprecisões técnicas e as fake news presentes na matéria da IstoÉ e repudiamos a possível instalação da CPI”.
De acordo com o manifesto, “nunca é demais ressaltar que a ditadura criminalizou o direito de greve e que trabalhadores que com ela se envolviam eram considerados subversivos e eram perseguidos, quanto mais se atuavam no âmbito público, daí nossa Lei Maior, fruto do pacto de redemocratização do país, ter previsto como condição para anistia nesses casos apenas a participação em greves como causa suficiente para a sua concessão”.
A reportagem também faz, em tom de crítica, referência aos familiares de perseguidos políticos anistiados que possuem o direito à indenização como um tipo de “perseguição reversa” decorrente da perseguição sofridas pelos seus pais, “como erroneamente afirma a matéria”.
No entanto, explica o manifesto, os familiares citados “têm o direito de serem anistiados porque sofreram diretamente as consequências de atos de exceção em suas vidas: alguns foram presos como estudantes e eram menores de 18 anos (em flagrante violação a própria lei penal vigente no período), alguns foram presos juntos com seus pais (violados em seus direitos à liberdade), outros foram exilados com a família (violados em seu direitos de viver em seu país), outros foram compelidos a viver na clandestinidade (violados em seus direitos a identidade e convivência familiar), outros foram afetados pelo direito de ter o nome de seus pais desaparecidos políticos em suas certidões de nascimento (violados em seus direitos a identidade), dentre outras tantas barbáries típicas cometidas pela ditadura civil-militar”.
A pedido dos anistiados, o Estado brasileiro mantém uma página com o nome de todos os anistiados militares que recebem algum tipo de indenização, um total de 222 nomes. E uma outra lista com os nomes dos civis beneficiados. Também está disponível no Portal da Transparência a possibilidade de procurar individualmente os valores recebidos por cada anistiado. Contudo, segundo o manifesto, “lamentavelmente, de um ano para cá esses sites muitas vezes estão indisponíveis ou fora do ar”.
Sobre a maioria dos beneficiados ser desconhecida, no entanto estar atrelada à esquerda e ao PT, o manifesto afirma que “as pessoas listadas na matéria como ‘petistas’ foram anistiadas por histórias de perseguição anteriores à própria existência do PT. A história da ditadura revela a perseguição aos setores populares, estudantis, sindicais, camponeses e organizações políticas de esquerda rotuladas de subversivas no contexto da guerra fria. Não deveria ser surpresa identificar que os setores sociais da esquerda foram as principais vítimas de perseguição política em uma ditadura de direita”.
Leia, abaixo, alguns trechos do manifesto:
“Durante quase 20 anos o processo de reparação às vítimas foi escrutinado e submeteu-se estritamente às regras jurídicas do país. Não é aceitável que se tente impor mudanças interpretativas sobre os critérios da lei que foram aplicados por diferentes Ministros da Justiça de diferentes governos ao longo do tempo e, com isso, venham a comprometer a continuidade da agenda pendente da transição. A agenda da transição e o processo de reparação às vítimas é uma agenda de Estado e não de governo. Esperamos que não se instale no país práticas de revisionismo histórico. A Comissão de Anistia é uma Comissão de Estado, e não de governo.
O que deveria surpreender a opinião pública brasileira não seria que os cidadãos que tiveram seus projetos de vida atingidos e até mesmo sua integridade física e psicológica duramente afetadas pela ditadura, exerçam o seu direito de serem reparados segundo a obrigação do Estado em responsabilizar-se pelos danos que causa a terceiros. O que deveria indignar é o fato de que até hoje não foram julgados os torturadores e assassinos dos centros de repressão. Até hoje não foi revisada a continuidade dos torturadores nas fileiras das carreiras de Estado e que seguiram recebendo seus salários e aposentadorias manchados de sangue.
Não notamos o mesmo interesse da Revista e dos políticos que defendem a moral e a transparência das contas públicas em propor uma CPI, ou em buscar quantificar o montante dos valores pagos a agentes públicos, civis e militares, que causaram os danos pelos quais o Estado hoje é responsável por ressarcir (certamente tais valores são amplamente maiores que os hoje envolvidos na reparação aos ex-perseguidos políticos).
Até hoje não foram devolvidos os corpos dos desaparecidos políticos e as mães estão falecendo sem o direito básico de saber a verdade e usufruir o direito de enterrar os seus entes queridos. Até hoje não foram abertos integralmente os arquivos da ditadura para revelar a cadeia de comando e a responsabilidade daqueles que cometeram crimes contra a humanidade. O Brasil é o único país da região onde continua vigente uma total impunidade para os crimes de Estado cometidos no passado.
Condenamos vigorosamente a tentativa de criar uma CPI sobre as indenizações às vítimas da ditadura. É a primeira vez na história que se criaria uma CPI contra os direitos humanos. Essa iniciativa é um grave retrocesso democrático. Se ela se efetivar será um atentado aos direitos das vítimas da ditadura e um rompimento com os elementos político-constitucionais que permitiram ao país voltar à democracia, com coesão social. Todas as vítimas da ditadura e os seus familiares e apoiadores não aceitarão demagogia política e revisionismo histórico com as suas memórias e os seus direitos.
Mobilizaremos, lutaremos e denunciaremos em todas as instâncias nacionais e internacionais contra essa iniciativa que reacende, mais uma vez, o ataque das instituições do Estado aos nossos projetos de vida e aos nossos direitos humanos. Se necessário, denunciaremos essa nova violação do Estado em todos os foros nacionais e internacionais. Já resistimos ao arbítrio no passado e também resistiremos democraticamente no presente. Um país sem memória é um país sem futuro.”