A maneira como o jornalismo retrata a tragédia climática ajuda a moldar a visão que temos dela
Do Observatório de Política Externa Brasileira, compartilhado de BdF
Por Bruno Fabricio Alcebino da Silva, Diana Dias Dias, Giulia Monfredini, Ismara Izepe de Souza, Joyce Cipriano Victurino, Lucca León Franco, Maria Eduarda Brito, Tiago Amadei Navarro Barbiellini
Neste ano, o estado do Rio Grande do Sul enfrentou a maior tragédia climática de toda a sua história. Os eventos climáticos que assolaram a região sul brasileira não ocorreram de modo repentino, mas vieram com diversos alertas que antecederam as cheias dos rios.
No dia 29 de abril de 2024, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) emitiu o primeiro alerta vermelho de volume elevado de chuva. No dia seguinte, em 30 de abril, foram registradas as primeiras cinco mortes no estado relacionadas às cheias, e na semana seguinte a situação piorou drasticamente.
Na primeira semana de maio, mais de 114 municípios foram afetados pelas enchentes, e mais óbitos foram registrados. No dia 5 de maio, em entrevista concedida ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o governador Eduardo Leite (PSDB) afirmou que o Estado precisaria de um plano de recuperação, semelhante ao que reergueu a Europa no pós-Segunda Guerra Mundial.
Outro fator que ressurgiu com as enchentes foi o debate sobre as notícias falsas, as fake news sobre doações e, até mesmo, sobre os discursos de autoridades importantes, que contribuíram com a desinformação e atrapalharam doações para as vítimas das chuvas. O modo como a imprensa comunicava o que estava acontecendo no Rio Grande do Sul e como, muitas vezes, trazia notícias de baixa veracidade para seus canais de comunicação, colocou em evidência a manipulação de informações e imagens.
Com isso, o próprio Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome fez uma nota esclarecendo que é falsa a informação de que doações populares ao Rio Grande do Sul estariam sendo reembaladas e enviadas com a logomarca do Governo Federal. Dessa forma, é notório como as fake news se propagaram tão intensamente nesse momento de tragédia que se faz extremamente necessária uma interpretação e análise prévia de reportagens e matérias sobre o cenário. Infelizmente, com o passar dos meses, se percebeu que, além dos problemas com matérias pouco verídicas, começou a se ouvir falar cada vez menos da situação gaúcha, e as ações, em especial públicas, que vêm sendo realizadas para reconstruir o Estado nesse momento de vulnerabilidade.
Nesse artigo, será possível avaliar a abordagem realizada pela imprensa através da verificação de reportagens, com o intuito de analisar o modo como propagaram as notícias. Optamos por avaliar alguns expoentes da grande imprensa como os jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, as revistas Veja e Oeste, além de alguns sites e expoentes do espectro político mais à esquerda, como o Brasil de Fato, a revista Carta Capital e o site de notícias Brasil 247.
Principais fatos da tragédia e o papel dos governos estadual e federal
Não é a primeira vez que o Rio Grande do Sul sofre com desastres climáticos. Em junho, setembro e novembro de 2023, a população enfrentou alagamentos e destruição causados, segundo o Inmet, por um ciclone extratropical e chuvas intensas. Ainda em novembro, 28 mil pessoas precisaram deixar suas casas. Porém, diferentemente desses últimos casos, o ocorrido em maio deste ano foi ocasionado não só por eventos naturais como ciclones e chuvas intensas, mas também agravado pelas mudanças climáticas, como o aquecimento global. Desse modo, eventos que antes eram mais espaçados, como a última cheia significativa do rio Guaíba, que ocorreu em 1941, agora podem acontecer até duas vezes por ano.
O início de maio foi o período mais intenso, com a água subindo mais de 1 metro por dia. Os moradores foram obrigados a deixarem suas casas e o Estado enfrentou diversos problemas técnicos com o sistema contra enchentes. O rio Guaíba ultrapassou a marca histórica de 1941 e chegou a 5,33 metros, inundando diferentes bairros da capital gaúcha, incluindo o centro histórico, assim como a rodoviária e o Aeroporto Internacional Salgado Filho de Porto Alegre.
Atualmente, é possível ter uma noção mais precisa do número de afetados pela tragédia. Os números contabilizam mais de 800 pessoas feridas durante as enchentes, 29 desaparecidas e 180 mortas, vítimas principalmente de deslizamentos, descargas elétricas e afogamentos. Além disso, o balanço realizado pela Defesa Civil ainda em 30 de maio contabilizava mais de 581 mil pessoas desalojadas, entre essas, mais de 45 mil estavam em abrigos emergenciais. A quantidade total de pessoas que foram afetadas de alguma maneira pelas enchentes ultrapassou a casa dos dois milhões.
Entre as causas da tragédia, não se pode considerar o ocorrido apenas como um desastre da natureza. Em entrevista para o UOL, o climatologista e professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Francisco Eliseu Aquino comenta sobre como o aumento dos desastres está ligado diretamente ao enfraquecimento das políticas ambientais nos últimos anos. Além disso, a falha do Governo do Estado em destinar recursos para ações da Defesa Civil contribuiu para o aumento da gravidade da tragédia. De acordo com a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2024, apenas 0,009% da receita total do estado foi destinada à ações voltadas à prevenção e emergência. Em meio ao que seria considerado desastre natural, as ações humanas – ou a falta delas – tomaram lugar de destaque para o agravamento da tragédia.
Desde o início das enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul, os governos estadual e federal têm se mobilizado de maneira intensa para oferecer apoio imediato e contínuo às famílias e comunidades afetadas. As medidas implementadas visam não apenas mitigar os efeitos imediatos da calamidade, mas também proporcionar uma base sólida para a recuperação e reconstrução a longo prazo.
O governo federal implementou um conjunto abrangente de medidas para enfrentar as enchentes. Inicialmente, foram alocados R$ 300 milhões para a reconstrução de infraestruturas críticas e fornecimento de cestas básicas e kits de higiene para as famílias afetadas. As Forças Armadas também foram mobilizadas para o resgate e construção de abrigos temporários.
A primeira ação significativa foi a aprovação do Projeto de Decreto Legislativo que reconheceu a calamidade pública, permitindo a utilização de recursos extraordinários. Em 11 de maio, a Medida Provisória nº 1.218/2024 abriu um crédito extraordinário de R$ 12,18 bilhões, destinado a crédito com juros zero para empresas e agricultores, pagamento extra de seguro-desemprego, e aquisição de arroz e medicamentos.
Em 13 de maio, o governo federal anunciou a suspensão da dívida do Rio Grande do Sul por três anos, isentando juros e disponibilizando R$ 23 bilhões para a recuperação. Posteriormente, a Medida Provisória 1.223/2024, de 23 de maio, acrescentou R$ 1,83 bilhões, elevando o total de recursos federais para R$ 62,5 bilhões, com foco em apoio aos municípios, universidades e outras áreas.
Além disso, novas linhas de crédito de R$ 16,5 bilhões foram anunciadas para a recuperação econômica e manutenção de empregos. Recursos adicionais foram destinados à aquisição de unidades habitacionais e apoio à base aérea de Canoas, entre outros.
O total de recursos federais destinados ao Rio Grande do Sul soma R$ 94,4 bilhões, englobando assistência emergencial, segurança alimentar, reconstrução de infraestrutura, e apoio à saúde e à educação. Esse montante inclui também R$ 17,5 bilhões em antecipação de benefícios e prorrogação de tributos.
A resposta federal foi coordenada pelo Comitê Nacional de Crise, que agilizou a liberação de recursos e a distribuição de ajuda. Destaca-se ainda o Programa de Recuperação de Pequenos Agricultores, que ofereceu crédito subsidiado para produtores rurais afetados.
Em paralelo, o governo estadual do Rio Grande do Sul também adotou uma série de medidas robustas para enfrentar a crise. O programa “Volta por Cima” foi um dos principais instrumentos de apoio, oferecendo um auxílio financeiro direto de R$ 2,5 mil para cada família desabrigada. Além disso, o governo estadual criou o “Pix SOS Rio Grande do Sul”, que distribuiu R$ 2 mil para famílias não contempladas pelo “Volta por Cima”. Essas iniciativas foram complementadas pelo adiantamento do pagamento da bolsa-auxílio do programa “Todo Jovem na Escola”, beneficiando mais de 83 mil estudantes e suas famílias em um momento de extrema necessidade.
Outra medida importante foi a isenção da tarifa de saneamento e água por até seis meses para cerca de 900 mil clientes em 90 municípios afetados, resultado de um acordo entre a Aegea Corsan, o Ministério Público e a Defensoria Pública do Estado. Além disso, o governo estadual facilitou a emissão gratuita de 2ª via de certidões de nascimento e casamento para as pessoas que perderam seus documentos durante a enchente, com pontos de atendimento estabelecidos em várias localidades de Porto Alegre.
O governador Eduardo Leite também anunciou a criação do “Plano Rio Grande”, que tem como objetivo não apenas a reconstrução das infraestruturas danificadas, mas também a implementação de um plano abrangente de resiliência climática. Este plano inclui a criação de uma nova Secretaria da Reconstrução Gaúcha e a instituição do Fundo do Plano Rio Grande (Funrigs), com um valor inicial de R$ 12 bilhões para financiar projetos de reconstrução. O plano também prevê a implementação de cidades temporárias para abrigar as pessoas desabrigadas, especialmente nos municípios mais afetados.
A comparação entre as ações dos governos federal e estadual na resposta às enchentes no Rio Grande do Sul revela abordagens distintas que, em conjunto, foram essenciais para enfrentar a crise. O governo federal, liderado pelo presidente Lula, foi ágil na mobilização de recursos e na coordenação de esforços. Desde o início da crise, foram alocados R$ 62,5 bilhões em créditos extraordinários, destinados a assistência emergencial, reconstrução de infraestrutura, apoio econômico e social, e isenção de dívidas estaduais. O presidente Lula fez três visitas ao estado no primeiro mês da tragédia, destacando o compromisso federal com a recuperação.
Em contraste, o governo estadual, sob a liderança de Eduardo Leite, concentrou-se na implementação de medidas diretas para apoio imediato às famílias e na reconstrução a longo prazo. No entanto, a gestão de Leite enfrenta críticas significativas devido ao desmonte das estruturas de proteção ambiental. Reformas legislativas, como a aprovação do novo Código Ambiental em 2019, enfraqueceram as proteções ambientais e contribuíram para a intensificação dos danos causados pelas enchentes. As reformas foram aprovadas rapidamente, sem consulta adequada a especialistas e sem debate público, priorizando interesses econômicos em detrimento da preservação ambiental.
A análise da efetividade dessas medidas revela que, apesar do esforço combinado, o impacto da gestão estadual sobre o meio ambiente teve consequências graves. A falta de proteção ambiental exacerbou os danos das enchentes, resultando em perdas significativas para a população e a infraestrutura. As medidas federais foram cruciais para a assistência imediata e a recuperação econômica, enquanto a resposta estadual mostrou a necessidade urgente de fortalecer as proteções ambientais para prevenir futuros desastres. A coordenação entre os dois níveis de governo foi fundamental, mas a eficiência a longo prazo dependerá da capacidade de ambos os governos em manter o compromisso com uma recuperação sustentável e com a preservação ambiental.
A abordagem da imprensa
A maneira como o jornalismo retrata a tragédia climática ajuda a moldar a visão que temos dela, inspirando ações individuais e coletivas (Folha, 2024). De fato, desastres naturais como tsunamis, furacões, tornados, tempestades, enchentes e terremotos constituem episódios críticos, que afetam diretamente o diálogo e a interação do poder público com a população (Reis, Zucco e Darolt, 2013), sobretudo em tempos tão politicamente polarizados quanto os que vivemos atualmente, em que qualquer acontecimento tende a ser instrumentalizado em forma de discurso político, sendo ainda maximizado pela influência das redes sociais que, em muitos aspectos, tem tomado o lugar dos veículos tradicionais de mídia no serviço de informar as populações.
Segundo Gutmann (2006), as pessoas compreendem a maior parte da vida social embasados pelos assuntos pautados pela mídia, e ainda segundo McCombs (apud Rossetto; Silva, 2012), quanto maior a necessidade de orientação de um cidadão no âmbito de assuntos públicos, maior se torna a probabilidade de que o mesmo preste atenção na agenda dos meios de comunicação. É nesse cenário de enorme profusão na disseminação de informações, muitas vezes desencontradas, que nos dispomos a analisar como a grande mídia brasileira se colocou em relação ao desastre das enchentes ocorridas em abril deste ano em todo estado do Rio Grande do Sul.
Todos os veículos de imprensa noticiaram os fortes temporais que atingiram áreas onde nascem grandes rios do estado, como o Taquari e o Caí, que também testemunharam cheias históricas, e permanecem até hoje noticiando as consequências da tragédia, como os desafios da retomada da vida cotidiana, a crise sanitária, com o aumento diário de casos de leptospirose e outras doenças trazidas pelo contato com a água contaminada, a difícil retomada do comércio, a discussão sobre quais medidas preventivas devem serem tomadas para que a tragédia não se repita, e, principalmente, as ações tomadas pelas autoridades em todas as esferas de governo.
Durante a primeira semana dos acontecimentos, a maioria das notícias veiculadas pela grande mídia brasileira foi dedicada à contextualização dos fatos e à exposição dos acontecimentos mais recentes, reproduzindo os alertas emitidos pelos institutos de pesquisa, atualizando em tempo real o número de pessoas desabrigadas ou removidas de suas casas, o número de mortos e as proporções do desastre. A Revista Oeste, em 30 de abril, apenas um dia após o início das chuvas publicou: “Alerta vermelho: Rio Grande do Sul encara grande perigo para acumulado de chuva e Todo o Estado está sob risco de inundação, diz governador do Rio Grande do Sul“. A primeira matéria, noticiou o alerta emitido pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), que indicava a ocorrência de precipitações superiores a 60 milímetros, podendo ultrapassar a marca de 100 mm por dia, chamava a atenção para o risco de alagamentos, deslizamentos de encostas e transbordamentos de rios. Já a segunda, além do aviso sobre o risco de inundações severas em mais de 65 municípios, ressaltava as falas do governador em exercício no estado, Eduardo Leite, que havia solicitado, na ocasião, o apoio das Forças Armadas para o resgate de moradores ilhados, além de pedir que as pessoas abandonassem suas residências, caso estas estivessem em lugares categorizados como de risco, e procurassem se colocar em segurança.
Também com teor informativo, foi publicada em 03 de maio pela Folha de S.Paulo a matéria “Enchente na região central do Rio Grande do Sul já supera a de 1941, diz pesquisadora“. No texto em questão, Alice Castilho, diretora de Hidrologia e Gestão Territorial do Serviço Geológico do Brasil (SGB), esclareceu sobre a enorme quantidade de chuva que já acometia o estado e sobre as condições do solo, deixando um alerta sobre o agravamento da situação nos dias subsequentes, devido a previsão de mais chuva na região. O periódico O Estado de S. Paulo, com a matéria, “Porto Alegre: Rio Guaíba transborda e Defesa Civil alerta sobre risco de inundações” dava os mesmos alertas enquanto noticiava que o nível do rio Guaíba já havia ultrapassado o limite de 3 metros.
Com o agravamento da situação, os veículos passaram não só a noticiar os últimos acontecimentos, mas também a fazer análises mais aprofundadas sobre os motivos que levaram às inundações, o que trouxe para o centro do debate a crise climática e o aquecimento global, que é consenso entre a comunidade acadêmica e tido como iminente para a imensa parte da mídia e da opinião pública, conforme demonstrado por pesquisa realizada pelo instituto Quaest, que indicou que 99% dos brasileiros enxergam alguma relação entre as enchentes no Rio Grande do Sul e as mudanças do clima.
A pesquisa foi divulgada por diversos veículos, com matérias na CartaCapital, Estadão, Exame, InfoMoney, Metrópoles, SBT e UOL. Outro ponto de análise a que se dedicaram, foi o tempo e a qualidade da resposta dos governos, priorizando vozes e ações de autoridades, como o corpo de bombeiros e o governo estadual. Comentaristas diversos, cientistas da área, personagens clássicos do jornalismo corporativo, levantaram o debate sobre a capacidade ou a inépcia governamental no socorro aos atingidos.
A Folha de S. Paulo publicou diversos artigos sobre o tema da crise climática. Em um deles, “Resiliência climática requer ações conjuntas, defendem especialistas“, o jornal esclareceu, através da visão de especialistas, que realizar investimentos em infraestrutura de forma dissociada à situação climática atual não resolverá o problema, podendo inclusive agravá-lo com o impacto ambiental causado por alguns projetos. Matérias como “Mudança climática tornou chuva no RS duas vezes mais provável, aponta estudo“, veiculada no O Globo, e “Desespero, raiva e sensação de fracasso atingem cientistas climáticos diante da falta de ações efetivas“, demonstram a preocupação do jornal com a questão climática, com destaque para o artigo “O olhar jornalístico sobre tragédias climáticas“, no qual , através da entrevista com Kyle Pope, cofundador da iniciativa Covering Climate Now, organização sem fins lucrativos que reúne, apoia e treina jornalistas para uma cobertura mais assertiva da crise climática, o jornal assumiu a sua responsabilidade em informar com qualidade e credibilidade sobre a questão do clima, principalmente em ano eleitoral.
Ao ressaltar o aquecimento global como fator determinante, a Folha de S. Paulo escapou de um viés político de negacionismo trazido por outros veículos à tragédia, se atendo mais à condutas tomadas pelos governos no momento anterior à tragédia, a exemplo dos artigos “Sob Bolsonaro Brasil afrouxou regras para construir na margem de rios e lagos, entenda a legislação” e “Estudos alertaram mas o governo também vive outras agendas, diz Leite sobre falta de plano para conter cheias no RS“, que mostram como a questão ambiental não foi priorizada.
O jornal noticiou também medidas efetivas tomadas pelos governos, principalmente no pós-desastre, como a criação de benefícios sociais, adiantamento do Bolsa Família, lançamento de linhas de crédito a juros baixos para pequenos empresários e a aprovação de pacotes de ajuda vindos de várias esferas de governo e ministérios, além da crítica a medidas futuras que estão, ou não estão, sendo tomadas para a prevenção de futuros acontecimentos semelhantes, como vemos nos artigos “Governo Lula deixou de fora do PAC projetos contra inundação pedidos por Leite“, além de apontar caminhos em outras publicações, como no artigo “Erros a evitar na reconstrução do Rio Grande do Sul“.
O jornal O Estado de S.Paulo também veiculou matérias sob o prisma ambiental. No artigo “Chuva no Rio Grande do Sul e crise climática: ‘Até quando vamos correr atrás do prejuízo?’” o jornal divulgou a entrevista com Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, que esclareceu em sua fala os vários âmbitos que levaram à tragédia do Rio Grande do Sul, afirmando que a adaptação ao “novo clima” precisa de ação de municípios e coordenação federal, e no artigo “Por que o Rio Grande do Sul é um prenúncio da crise climática no Brasil?” o editorial além de ressaltar circunstâncias agravantes como características naturais da região e o El Niño, dá destaque para o “consenso da comunidade científica internacional, representada pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas, sobre como o aquecimento do planeta deve acelerar o ciclo hidrológico, causando chuvas mais intensas em alguns lugares e secas maiores em outros”, demonstrando assim sua posição de não negação dos dados científicos sobre a situação do clima.
Tal posicionamento segue a direção de diversos estudos realizados, tanto de forma independente, quanto por encomenda dos governos, que demonstram de forma clara a alteração do clima por ações antrópicas ao longo do tempo, como noticiado pelo site especializado de jornalismo ambiental O Eco, que se define como um site sem fins lucrativos e sem vinculação com partidos políticos, empresas ou qualquer grupo de interesses “El Niño e mudança climática aumentaram em até 5 vezes probabilidade de chuva extrema no RS” que, para além do cunho factual, se aprofunda criticamente na discussão sobre as consequências, principalmente ambientais.
Apesar da sua não negação sobre a crise climática, o Estadão, crítico histórico dos governos petistas, não deixou de apontar o viés ideológico que teria influenciado os rumos da tragédia no artigo “Governos atuais não têm culpa por tragédia no Sul, mas Estado brasileiro e sua ideologia têm“, escrito por J.R. Guzzo e publicado também na Revista Oeste. Em tom crítico, o texto aborda a falta de sistemas para a precaução de desastres, fato que tem importância real e deve ser veementemente questionado e complementa a sua crítica ressaltando que: “Em 1941, o mesmo Rio Grande sofreu uma catástrofe comparável à essa de agora. Não se falava, então, na “crise climática”. Hoje não se fala de outra coisa, mas o fato é que já se passaram mais de 80 anos e a população continua sendo castigada exatamente do mesmo jeito” – colocando, de certa forma, a crise climática como um discurso e não como um fato.
Esse viés negacionista do artigo de Guzzo é escancarado no artigo “Não foi o aquecimento global“, não escrito por ele, mas publicado pela Revista Oeste, veículo do qual é idealizador, em 07 de maio, no qual o tom apocalíptico utilizado pelos ativistas é denunciado e a entrevista cedida por Ricardo Augusto Felício, ex-professor e pesquisador no Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, esclarece como a natureza “desmente” os especialistas e a quem interessa a propaganda alarmista. A publicação traz ainda uma entrevista com o jornalista norte-americano Michael Shellenberger, autor do livro Apocalypse Never: Por Que O Alarmismo Ambiental Prejudica a Todos, que afirma que “Para evitar que outra tragédia como a do Rio Grande do Sul aconteça num futuro próximo, é preciso resolver os problemas que levaram a ela. E não insistir em cultuar fantasmas imaginários.”
Artigos como “O negacionismo assim como a tragédia ambiental brasileira precisa ser politizado e Negacionistas minimizam impacto da crise climática em tragédia no Rio Grande do Sul“, publicados pelo Estadão, veículo que além de reiterar a crise climática como fator decisivo para a tragédia, se dedicou a desmentir fake news sobre o assunto através da iniciativa Estadão Verifica, fazem contraponto ao posicionamento da Revista Oeste, apesar de ter seus artigos republicados por ela constantemente, evidenciando onde estão os pontos de convergência e de divergência em seus posicionamentos. Outros artigos publicados pela Revista Oeste também se dedicaram a explicar o motivo das enchentes, mas em todos são ressaltadas as características da região, sua posição geográfica propícia a eventos climáticos e a convergência de condições meteorológicas que levaram à cheia recorde, não levando em consideração as mudanças climáticas.
Sobre a capacidade ou inépcia do governo no socorro às vítimas, a disputa se deu na comparação do espaço e destaque dados às ações governamentais e civis. Essa tendência também foi percebida e noticiada pela grande mídia como podemos verificar na publicação do Estadão “Governistas exaltam ação de Lula e Pimenta, e oposição tenta emplacar ‘civil salva civil’ no RS“.
É indiscutível que a ação popular durante desastres é, muitas vezes, decisiva, principalmente para o salvamento de vidas, mas a instrumentalização desse discurso durante as enchentes, gerou uma “cauda longa” de fake news divididas em três eixos. O primeiro eixo é o de dizer que o Estado nada faz, o segundo é a de que o Estado atrapalha, e o terceiro é o pânico econômico, como descrito pela jornalista Daniela Lima, da Globo News.
Segundo Frandalozo & Franzoni (2020), o relacionamento, por vezes, tenso ou impraticável entre os órgãos que gerenciam a emergência e os jornalistas em inúmeras situações de desastre e crise, acaba gerando desconfiança da população em relação ao poder público e à imprensa e uma sensação de “cada um por si”, que prejudica as ações de resposta.
Essa sensação de “cada um por si” foi amplamente representada pela Revista Oeste que direcionou suas publicações ao protagonismo das ações de ajuda e resgate realizadas pela sociedade civil direta e indiretamente implicada na tragédia, a exemplo do artigo “Quando o brasileiro descobriu que o Estado não serve para quase nada“, que além dos argumentos óbvios já expressos em seu título, afirma: “Está aí a lição número um do liberalismo: no fim, só podemos contar conosco e com os poucos que nos cercam”, destacando a inação governamental durante a tragédia.
Em “Tragédia didática“, matéria também publicada pela Revista Oeste, baseada em publicações feitas no Twitter/X, a advogada e jornalista mineira, Claudia Wild, criticou a inércia do poder público, afirmando que os heróis anônimos são as pessoas físicas e a iniciativa privada, atores verdadeiramente engajados no salvamento da população.
Ainda no artigo “O poder do povo“, publicado pelo mesmo veículo, é apresentada a história de Bárbara Anton, gaúcha, de 33 anos, que ao se ver em meio ao caos trazido pela repentina subida das águas, organizou, de forma improvisada, frentes de trabalho para auxílio da população.
Os dois últimos exemplo mostram o enquadramento da notícia, “através de relatos que envolvem conhecimento, poder, experiência, vivências e emoções” (Amaral, 2011), mantendo fontes de caráter testemunhais que ocorrem de forma recorrente em desastres ambientais e tragédias humanas, conforme analisam Pozobon e Miranda (2012), que ressaltam ainda que essas escolhas são um ponto inicial para se entender o enquadramento da notícia.
Outros artigos contrários a esse posicionamento foram publicados pelo Estadão, como “É falso que governo Lula não tenha mandado ajuda ao RS e que resgates sejam feitos por empresários” e “É falso que empresário tenha enviado mais aeronaves ao Rio Grande do Sul que a FAB” mostrando um novo ponto de inflexão entre o jornal e a Revista Oeste.
Os meios de comunicação ganham protagonismo nas tarefas de envolver os diferentes atores, impulsionar as ações de socorro e apoio às vítimas, e gerar confiança entre os atingidos. Tal perspectiva se funda na percepção de uma série de trabalhos precedentes segundo os quais, durante um desastre, a mídia é a mais importante ferramenta de mitigação à disposição das autoridades porque a sua atuação cria a percepção pública sobre os riscos do evento (MILES; MORSE, 2007; PÉREZ-LUGO, 2001).
Ajuda da Sociedade Civil vs. Medidas Governamentais
Acerca da contraposição da ajuda dada pela Sociedade Civil e as medidas assistenciais realizadas pelos governos, seja municipal, estadual ou federal, verifica-se que há uma maior ênfase às ações comunitárias, feitas e propagadas pela própria Sociedade Civil, nos mais variados veículos de imprensa.
Nesse contexto, o jornal Folha de S. Paulo, considerado um dos jornais mais acessados no país, situado mais ao centro do espectro político, publicou diversas reportagens que exaltaram o protagonismo da população frente ao desastre ocorrido, como em “Voluntários abrem cozinhas, abrigam famílias e atuam em ‘operação de guerra’ no RS“, que descreve que “grupos superam estradas interditadas e enfrentam escassez de suprimentos para atender famílias atingidas pelas enchentes”.
Foram diversas matérias, que destacaram as mais variadas ações comunitárias como: “ONGs lideram projetos de reconstrução do RS após chuvas” – que cita ações que incluem ambulatórios itinerantes, acolhimento para crianças, cozinhas solidárias e curso de gastronomia. Tais matérias desconsideraram a iniciativa governamental à reconstrução, que representa na maioria das vezes um volume financeiro mais elevado que as destinadas pelas citadas ONGs. De mesmo teor, são as seguintes reportagens, como se evidencia por seus títulos –, “ONGs, artistas e empresas levam ajuda ao Rio Grande do Sul; veja como doar”, “Iniciativas mobilizam doação de roupas plus size para o Rio Grande do Sul”, “Estudantes de SP vão ao RS ajudar a reconstruir escolas”, entre outras.
As colunas de opinião também voltaram-se às iniciativas mobilizadas pela população e se demonstraram críticas à falta de apoio governamental. Na coluna de Mariliz Pereira Jorge, sob o título de “Tragédia no RS mostra o que o brasileiro tem de melhor”, abordaram-se as iniciativas citadas anteriormente, tendo a colunista afirmado ser “comovente ver como o brasileiro é melhor quando é mais unido”, abordando que “não somos apenas o retrato estereotipado da alegria, mas milhões de pessoas que doam tempo e recursos” ao analisar dados de comportamento solidário. Em “Ações para a cidadania”, de Maria Alice Setubal, é enfatizado que “nos momentos de catástrofes, as pessoas reconhecem as várias formas de doação e ação para fazer a diferença de forma imediata traz satisfação e sensação de fraternidade, que mobiliza e engaja”.
Como um certo contraponto, também há destaque às ações da iniciativa privada, principalmente de grandes empresas, como em “Gerdau e Gerando Falcões criam fundo de R$ 5 milhões para reconstrução do RS”. A Folha de S. Paulo também abriu espaço às celebridades digitais: “Virgínia, Whindersson Nunes e famosos fazem campanha para desabrigados nas enchentes do Rio Grande do Sul”. Mas, ao inserir as iniciativas governamentais na busca, as reportagens possuem um tom mais crítico e, em grande maioria, relacionam-se com uma visão negativa da política feita pelo governo – sobretudo federal.
Em “Reação à tragédia do RS vira problema no governo, e Lula busca contornar imagem”, o governo admite falhas na comunicação e a reportagem insere um certo teor político a possíveis iniciativas governamentais que seriam anunciadas, o que é enfatizado na análise de Ranier Bragon: “Lula reforça politização com escolha de Pimenta para ‘czar’ no Rio Grande do Sul”, e na coluna de Bruno Boghossian: “Relação Lula-Leite dá sinais de que o jogo no RS mudou de fase”. Aliás, também houve uma concentração de críticas ao governo na questão do leilão de arroz, que seria realizado pela Companhia Nacional de Abastecimento, com manchetes que ressaltavam o caráter político da iniciativa, avaliado como algo sem necessidade, com intenções puramente eleitorais.
Esses enfoques, como citado anteriormente, não se restringiram à Folha de S. Paulo, sendo muito acompanhado pelo O Estado de S. Paulo e pela Revista Oeste, ambos veículos mais à direita do espectro político, sendo o último um veículo à serviço da extrema direita, especialmente nas manifestações de rejeição ao governo Lula. Apenas para ilustrar as tendências da referida revista, temos os seguintes títulos de reportagens: “Paulo Pimenta admite que não sabe o que fazer no Rio Grande do Sul”, “Rio Grande do Sul: governo recusa 115 mil cadastros de auxílio reconstrução”, “Governo Lula pagou menos de 15% dos recursos anunciados para o Rio Grande do Sul”, “O evento político de Lula no RS foi deplorável” e, por fim, muitas elogiosas ao governo estadual e municipal, como: “Eduardo Leite reclama de repasse do RS à União: ‘Parem de nos tirar o que é nosso’’’.
Se considerarmos veículos de imprensa representativos da esquerda e ou do campo progressista, fizemos uma pesquisa na revista CartaCapital e no site de notícias Brasil de Fato, que embora não tenham deixado de divulgar as ações sociais da população, as contrapuseram com as ações promovidas pelo governo federal, como: “Lula garante força tarefa do governo federal para reconstrução do Rio Grande do Sul após temporais”, “Lula promete novas medidas para socorrer o RS: ‘o governo vai cuidar de vocês’”, “Governo federal autoriza repasse imediato a municípios gaúchos para assistência a atingidos”, “Lula garante verba para reconstrução de estradas no Rio Grande do Sul” e “Governo federal vai adquirir casas para desabrigados no Rio Grande do Sul”, como exemplos.
Nestes dois veículos, diferentemente dos demais, observa-se uma forte crítica às ações do governo estadual do Rio Grande do Sul, na figura do governador Eduardo Leite (PSDB), que incidiram especialmente sobre a responsabilidade e o papel deste governante diante da tragédia ocorrida. Assim, em “Governo Eduardo Leite não colocou em prática estudos contra desastres pagos pelo estado” e “Eduardo Leite ignorou relatório com medidas de prevenção às tragédias climáticas no Rio Grande do Sul, diz deputado” a responsabilização do governo estadual pelo desastre que acometeu o estado gaúcho foi atribuída especialmente ao governador. As colunas de opinião também possuíram uma posição similar a das reportagens, porém ainda mais críticas à figura do governador: “Leite, birrento e injusto”, “Governo do RS é um festival de mentiras e desnuda a imagem que Leite vende à população” e “O negacionismo climático de Eduardo Leite”,são exemplos.
Diante desse material exposto, fica clara a adesão dos jornais mais ao centro e à direita do espectro político a uma versão da tragédia que evidencia as ações promovidas pela sociedade civil e por empresas, muito mais elogiadas e citadas do que as ações governamentais. A Revista Oeste, avaliada aqui como representativa da extrema direita, persistiu em seus elogios às ações comunitárias, consideradas como solução para uma suposta inação do governo federal. Por outro lado, à esquerda, os veículos não deixaram de citar ações da sociedade, mas destacaram em suas reportagens as medidas do governo federal, em geral avaliadas como positivas, ao mesmo tempo que criticaram o papel dos outros entes federativos, principalmente o papel do governador gaúcho.
A desinformação e as fake news
Como se não fosse o bastante sofrer com a maior tragédia climática que o Brasil já enfrentou, a população do Rio Grande do Sul ainda ficou suscetível à onda de desinformação evidenciada pelas fake news, que atrapalham o trabalho das autoridades competentes e geram confusão e revolta entre a população. Trazemos aqui algumas das principais notícias falsas que foram veiculadas durante o período das tragédias no estado do Rio Grande do Sul. O jornal Metrópoles separou o teor das fake news mais comuns em algumas categorias de ideias: a de que o governo estaria impedindo doações às vítimas; de que o governo recusou ajuda e evitou doações; acontecimentos que supostamente teriam acontecido no Rio Grande do Sul; e doações falsamente atribuídas a pessoas ou países.
Uma das principais mentiras espalhadas pelas redes sociais em maio desse ano foi a de que caminhões com doações estariam sendo barrados por falta de notas fiscais. Essa desinformação foi amplamente divulgada pelo coach e candidato a prefeito Pablo Marçal, que postou um vídeo mentiroso para seus mais de 12,7 milhões de seguidores. A maioria das fake news veiculadas sobre as enchentes no estado do Rio Grande do Sul foram em formato de vídeos, geralmente retirados de contexto e/ou editados. Prática comum nesses casos foi a utilização de imagens de outros anos e locais, divulgadas como se fossem da situação de maio de 2024. Um vídeo publicado no Facebook, por exemplo, dava a entender que doações estavam sendo destruídas na cidade de Encantado. Outro evidenciava um suposto ataque ao ministro Paulo Pimenta no Rio Grande do Sul, que na verdade se tratava de uma confusão numa assembleia no Ceará.
É certo que muitas pessoas responsáveis por sites ou canais em redes sociais estão cada vez mais desesperados por “cliques”. Aí entram as fake news, já que são supostas notícias desenvolvidas com o único objetivo de chamar a atenção e gerar engajamento, de qualquer forma e a todo custo. Consequentemente, engajamento gera remuneração através de anúncios nos sites propagadores dessas desinformações, então não se pode desconsiderar que, para além das questões ideológicas, há uma razão econômica por trás dessa onda de desinformação.
O outro motivo pelo qual as fake news são criadas é, sem sombra de dúvidas, a guerra de narrativas no campo político. Segundo pesquisadores do Instituto de Internet da Universidade de Oxford, grupos de extrema direita são de longe os maiores divulgadores de fake news. Assim, pode-se dizer que uma das grandes estratégias da extrema direita é a propagação de fake news para desestabilizar adversários, atrair eleitores, criar teorias da conspiração e semear ódio a certas lideranças.
Desse modo, observa-se que a maioria das fake news sobre a atuação do governo durante as chuvas no Rio Grande do Sul surgiram de grupos bolsonaristas interessados em prejudicar a imagem do governo Lula. Eduardo e Flávio Bolsonaro (filhos do ex-presidente), além do coach Pablo Marçal (outra figura exaltada pelo bolsonarismo), são alguns dos nomes que foram acusados de compartilhar notícias falsas acerca das tragédias, interessados, certamente, em se aproveitar da enorme polarização que vive a sociedade brasileira.
Ainda, um mapeamento realizado pelo laboratório Netlab, da UFRJ, aponta que 8 vídeos com conteúdos falsos tem 2,3 milhões de visualizações somadas no YouTube. Isso sem contar as outras centenas de vídeos espalhados pelas redes sociais onde não se consegue ter ideia do número de visualizações e compartilhamentos, como no Whatsapp e Telegram. Segundo a pesquisadora da UFF, Thaiane Moreira de Oliveira, em entrevista para a Agência Brasil, o ataque das fake news às autoridades públicas e o questionamento à credibilidade das instituições é muito preocupante e faz com que as pessoas fiquem sem referências para tomar decisões que extrapolam o campo político “Não é apenas um risco para a democracia, mas também para a própria segurança e saúde das vítimas”, afirma a professora.
Considerações Finais
A cobertura jornalística no Brasil, exemplificada neste artigo por um estudo de caso, qual seja, a tragédia ocorrida no Rio Grande do Sul, é profundamente influenciada pelo contexto social e político do país. Cabe observar que a função da mídia não é apenas informar, mas também criar e divulgar notícias, publicando narrativas e versões específicas sobre um evento ou tópico, e, sua influência na percepção do público, é extremamente significativa. Essa questão se agrava ainda mais pela era atual de polarização política e desinformação intensificada pelas redes sociais.
Durante as enchentes de abril de 2024, a chamada grande mídia no Brasil desempenhou um grande papel na rápida disseminação de informações. De início, começaram pelos alertas antecipados de instituições meteorológicas e ações de resgate e assistência dos governos federal e seccionais e organizações públicas.
Com o agravamento da situação, a cobertura passou a incluir análises das conexões das enchentes com a crise climática e o aquecimento global, e nesse contexto, vale ressaltar que o desempenho dos veículos de imprensa teve um grande impacto na formação da opinião pública sobre as questões ambientais, bem como sobre a influência de políticas públicas e a (não) responsabilização de lideranças políticas sobre a tragédia .
Contudo, existe uma grande diferença entre a cobertura realizada pelos veículos de imprensa. Enquanto alguns, como a Folha de S.Paulo e o Estadão, enfatizaram a necessidade de ações governamentais integradas para enfrentar a crise climática, outros, como a Revista Oeste, adotaram uma postura mais crítica e até negacionista em relação ao aquecimento global. Essa divergência também se manifestou na avaliação das respostas governamentais, com uma narrativa de inércia governamental sendo contraposta por relatos de heroísmo civil.
De fato, a solidariedade popular foi crucial durante a tragédia, mas é possível identificar não só o viés ideológico, mas as intenções políticas dos veículos de imprensa na análise da forma pela qual abordaram os eventos no Rio Grande do Sul. A Folha de S.Paulo, por exemplo, enfatizou a mobilização popular, com diversas reportagens elogiando iniciativas comunitárias e empresariais, mas as colunas de opinião desse mesmo jornal criticam fortemente a falta de apoio governamental.
Outras mídias de direita e extrema direita seguiram um padrão de crítica às ações do governo e elogios à sociedade civil. À tudo isso se somou a disseminação de fake news, que parecem ter sido criadas com o único objetivo de descredibilizar o governo federal. Em contraste, veículos que se identificam com o campo da esquerda e do progressismo como Carta Capital e Brasil de Fato destacam as ações do governo Lula, elogiando suas iniciativas enquanto criticam os governos estadual e municipal, especialmente o governador Eduardo Leite.
Vale salientar que as ações dos governos federal e estadual na resposta às enchentes foram essenciais para o enfrentamento da crise. O governo federal adotou uma série de medidas abrangentes, como inicialmente a destinação de R$ 300 milhões para a reconstrução de infraestruturas críticas, além de fornecer cestas básicas e kits de higiene para as famílias afetadas. As Forças Armadas também foram mobilizadas para realizar resgates e construir abrigos temporários. Simultaneamente, o governador Eduardo Leite lançou o “Plano Rio Grande”, que visa não apenas reconstruir as infraestruturas danificadas, mas também implementar um plano de resiliência climática.
Este plano inclui a criação da Secretaria da Reconstrução Gaúcha e o Fundo do Plano Rio Grande (Funrigs), com um capital inicial de R$ 12 bilhões para financiar projetos de reconstrução. Além disso, o plano prevê a construção de cidades temporárias para abrigar os desabrigados, especialmente nos municípios mais atingidos.
Portanto, a cobertura jornalística das enchentes no Rio Grande do Sul em abril de 2024 revela o impacto da polarização política na maneira como os eventos são relatados e interpretados. A forma como a mídia abordou a tragédia expõe os vieses políticos que permeiam os veículos de comunicação, moldando a narrativa de acordo com suas inclinações ideológicas. Essa polarização não apenas distorce a realidade, mas também enfraquece a capacidade da imprensa de fornecer uma análise equilibrada e objetiva dos acontecimentos, dificultando a correta formação de uma opinião pública. A polarização exacerbada, especialmente àquela fomentada pela extrema direita, desvia a atenção das verdadeiras questões e soluções necessárias para enfrentar os desafios climáticos e de gestão dos desastres.
Referências
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