Um senhor calvo. Na casa dos 70 anos. Sobe os degraus de uma escada estreita. “Puta que pariu, essa escadinha aqui não deixou saudade”, diz. Ele passa. A câmera permanece estática, gravando a escada vazia. Voz em off. Do primeiro andar chegam interjeições de surpresa: “Não mudou nada, absolutamente nada.” Ouvem-se os acordes de uma música antiga, grega, executada sob a batuta de um maestro espanhol. Impetuoso, o senhor adentra uma sala pequena, de paredes puídas. “Aqui é o lugar em que eles brincavam com a gente”, afirma. “Brincavam de dar tapinha, de dar choquinho…”. Estamos na sede do DOI-Codi. Rua Tutóia, São Paulo. Hoje, excepcionalmente, ninguém bate nem apanha.
Corta.
Relatório final da Comissão Nacional da Verdade, volume 1. Capítulo 18, parágrafo 8, publicado em 10 de dezembro de 2014: “Ao demonstrar por meio da apuração registrada neste Relatório que as graves violações de direitos humanos praticadas pelo regime militar ocorreram em um contexto generalizado e sistemático de ataque do Estado contra a população civil – foram atingidos homens, mulheres, crianças, adolescentes e idosos, vinculados aos mais diferentes grupos sociais, como trabalhadores urbanos, camponeses, estudantes, clérigos, dentre tantos outros –, a CNV constatou que a prática de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres por agentes do Estado durante a ditadura militar caracterizou o cometimento de crimes contra a humanidade.”
Corta.
Um pai. Cabelos grisalhos e camiseta pólo. O cenário é a cama de solteiro que foi de seu filho. O pai acaricia um capacete. Põe-se a narrar, para o entrevistador, o roteiro da hipocrisia, o discurso ensaiado repetido por policiais militares a cada novo assassinato praticado por agente de Estado e disfarçado sob o manto sombrio da legítima defesa, do auto de resistência. “Seu filho veio a perder o controle da moto, saiu capotando e levantou atirando contra a guarnição”, imita. Capotando e atirando. Capotando e atirando. Vai entender. No circo armado pelos policiais, um erro grave, grosseiro, grotesco. A arma plantada ao lado do cadáver do jovem permanecia intacta, com todas as balas no pente, nenhum cartucho deflagrado. Uma mãe, em outro contexto, lembra a pergunta que repetia insistentemente ao policial que, criativo, buscava justificar a barbárie praticada contra seu filho. “Meu filho machucou alguém? Meu filho machucou alguém?”. Segundo a lei dos homens, que deu de ser diferente da lei das letras, se tiver machucado alguém, a vingança é permitida. Alguns chamam de Justiça.
Corta.
Folha de S.Paulo. Terça-feira, 22 de setembro de 2015. Pág. B1. “Governo Alckmin esvazia ações para conter mortes por policiais”. “SP teve 571 mortes em decorrência de abordagens da polícia, diz ouvidoria”. “Na contramão do crescimento recorde de mortes praticadas por policiais em São Paulo, o governo Geraldo Alckmin (PSDB) esvaziou mecanismos de repressão e prevenção criados para reduzir a letalidade policial.”
Folha de S.Paulo. Domingo, 20 de fevereiro de 2015. Pág. B11. “Nova Chacina mata 4 jovens na Grande SP”. “Crime ocorreu em Carapicuíba”. “As vítimas, que não tinham antecedentes criminais, foram encontradas de bruços e com ferimentos na região da cabeça. Parte delas estava com as mãos cruzadas na altura da nuca, sinal de que foram rendidas antes da morte.”
El País. 14 de agosto. “Noite mais violenta do ano em São Paulo deixa 19 pessoas mortas.” Abre parêntesis. É a noite, e não as pessoas, que é violenta em São Paulo. Fecha aspas. “Foi a sétima chacina de 2015 no Estado. “Os crimes levantaram a suspeita de que foram cometidos como retaliação às mortes de um policial militar e de um guarda civil, baleados durante assaltos dias atrás.”
Corta.
Camiseta branca. Letras vermelhas: “Justiça é o que se busca”. A dona da roupa e da frase-síntese discursa, gesticulando. “Partindo do princípio de que eu sou a favor da pena de morte, se a polícia em todos os assaltos abordasse e matasse, para mim não haveria nenhum problema.” “Num país onde a marginalidade deita e rola, onde o menor está assaltando, está colocando outras vidas em risco o que fazer? A polícia cruza os braços?” “Quantas vidas seu filho já pode ter tirado sem que você saiba” Segundo a lei dos homens, que é diferente da lei das letras, errado é matar inocente, gente de bem. Se tiver passagem pela polícia, mesmo que tenha sido por portar um cigarro de maconha, aí é bandido. E bandido bom é bandido morto. “Meu filho não era santo, mas precisava executar?”, pergunta uma mãe, viúva de filho. “Num confronto entre bandido e policial, quem é que tem que morrer?”, a outra devolve. Ninguém. Ninguém tem que morrer. Simples assim.
Corta.
O filme Orestes, do cineasta mineiro Rodrigo Siqueira, chega às salas de exibição com a responsabilidade de misturar essas duas realidades, combinar esses dois direitos à memória e à verdade. Há as mortes da ditadura e há as mortes da democracia. Há a tortura como política de Estado na ditadura e também na democracia. Há o extermínio como política de Estado na ditadura e também na democracia. Há os desaparecidos da ditadura e os muitos Amarildos. Há a sensação de impunidade que assombra os filhos das vítimas da ditadura, cujos algozes foram perversamente anistiados em 1979, e a sensação de impunidade dos pais dos adolescentes mortos em chacinas, em tiroteios forjados, com armas plantadas, em resistências que jamais existiram. Psicodrama, júri popular, o mito de Orestes, a memória de Soledad, a história ficcional narrada (e nunca encenada) do filho que mata o pai que lhe matou a mãe, o veredicto desejado. Fraude. Simulação. Mentira.
Corta.
“O meu projeto original tem o título de ‘A verdade simulada’, disse-me o diretor. “Fiquei impressionado como muitas e muitas e muitas vezes a verdade não é um valor primordial para as narrativas oficiais. O boletim de ocorrência que não conta a verdade não é ficção. É fraude! Documento oficial que tem a verdade adulterada é um documento que frauda a verdade. Se o promotor de Justiça não apura e leva o processo adiante, ele sustenta oficialmente uma fraude. Se o juiz de direito não devolve ao Ministério Público o processo e exige que se refaça a investigação, ele chancela a fraude.”
Corta.
Orestes é um filme que precisa ser visto. Para enternecer-se sem perder a dureza. Para arrumar o quarto do filho que já morreu. Para entender o que não se entende. O que não tem censura nem nunca terá. O que não faz sentido.