Estilistas e modelos das mais diversas regiões e etnias vêm ocupando o seu espaço e renovando as passarelas brasileiras
Por Ana Rafaella Oliveira, compartilhado de Projeto Colabora
Na foto: Modelos indígenas ocupam os seus devidos espaços nas passarelas nacionais. Foto Montagem Divulgação
Com 305 povos indígenas distribuídos por todas as regiões, de acordo com dados publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil é um dos países de maior diversidade cultural do mundo. Essa forte característica nacional se reflete também nos seus modos de vestir indígena, já que cada etnia possui simbolismos próprios, como grafismos, indumentárias produzidas a partir de elementos naturais e novas influências absorvidas por meio do processo de colonização. Mas algo que todas têm em comum é o desejo de manter vivas as suas tradições e a proteção dos seus territórios.
Ainda hoje, um imaginário distorcido no país contribui para a reprodução de estereótipos sobre os modos de vestir dessas populações, sobretudo, a ideia de que andavam e andam nus. Para a educadora Papiõn Cristiane Santos, descendente de povos indígenas de Oiapoque, no Amapá, “há uma divergência nessa questão do indígena nu, seminu e com roupa”. Segundo ela, “quando os colonizadores chegaram ao Brasil, a arte de tecer já estava presente e era constante entre os indígenas”. Dessa forma, argumenta haver uma perspectiva “ilusória de que os indígenas não tinham roupa”, quando eles já usavam peças tecidas “tanto de pena quanto de tecidos feitos de algodão e de outras fibras”.
Na tentativa de desconstruir ideias equivocadas, a educadora vem trabalhando com atividades didáticas que colaboram para ampliar as perspectivas sobre os modos de vestir dos povos originários. Ela é uma das professoras da Ewa Poranga, uma escola de ensino de moda pluricultural, criada pela também professora Júlia Vidal. No espaço digital, Papiõn Cristiane ensina sobre grafismos e apropriação cultural.
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Nas suas aulas, reforça a ideia de que “os indígenas acompanham a moda desde a invasão do Brasil, no Brasil Colônia”. “Eu trago tudo isso para mostrar realmente que os indígenas estão sempre se adaptando à moda e sempre usando as roupas da moda”, argumenta a especialista.
A partir dos grafismos, ela propõe que os alunos reflitam sobre os sentidos da apropriação cultural em torno das produções indígenas. “A gente pode começar a trazer essa questão do que é o sagrado, do que é a discussão sobre grafismos indígenas para uma sociedade que vê sempre o indígena como algo que não tem intelecto, ou que tem uma certa dificuldade para passar o que se pensa. Nossas pinturas são sagradas, têm um porquê em cada traço, têm uma linguagem, têm uma etnia”, explica.
A partir dessa didática, busca ampliar a discussão e contribuir para que os alunos possam refletir sobre a importância de respeitar as tradições e os costumes dos povos originários. Esse é um tema importante para ser debatido na indústria da moda, que com frequência, reproduz estereótipos e se apropria de diversos símbolos das mais diferentes culturas.
“Trazendo para o campo do design e da moda, se você vai trabalhar com a questão indígena, ou sobre um povo indígena, vá até a aldeia. Busque conversar com as lideranças e peça permissão para trazer isso para fora da aldeia deles. Melhor ainda, faça dessa sua aldeia e deles os seus parceiros. Porque quando a gente caminha lado a lado com o sagrado de uma etnia, a gente caminha com autorização desses seres encantados que transformam a vida dos indígenas e os protegem”, orienta.
Entre diversas abordagens da Ewa Poranga, a proposta central da escola é abordar conteúdos da história da moda a partir das três grandes matrizes culturais que compõem a identidade brasileira: indígenas, africanas e europeias. Como metodologia, acreditam na formação como um meio de multiplicar conhecimento, onde cada aluno é considerado uma semente.
“A gente entende a metodologia como isso, algo circular e complementar, como uma espiral. Ela aprofunda essa relação do que se aprende com o entorno, sendo trazida não por uma questão de mercado, mas sim por uma questão de que todo mundo precisa viver bem”, explica Júlia Vidal.
Assim, a proposta de aula não segue um formato rígido como em escolas de moda tradicionais, já que a própria relação com o tempo parte de um outro referencial. “Pela cosmovisão indígena, a gente fala de passado e presente, porque estamos fazendo o futuro agora. Então, é uma linguagem acessível, não tem exatamente uma hierarquia de tempo dentro dos cursos”.
O conteúdo tem impactado e uma das suas extensões envolve a integração entre o que é aprendido na teoria com soluções criativas no ambiente concreto. Buscando levar seus alunos a colaborarem com problemas reais, a educadora relata uma dessas experiências: “A gente lançou uma linha de camisetas para financiar o projeto e manter a tradição do ritual de passagem para uma menina moça, na Aldeia Maracanã, na cidade do Rio de Janeiro. Fizemos um concurso de estampas e movimentamos as pessoas em torno dos símbolos, das estampas e das cores desse ritual. Dessa forma, a comunidade apoiadora começou a entrar em contato com o ritual e, antes dele acontecer, já tínhamos conseguido financiá-lo. Então é isso, a gente bota a moda a serviço das pessoas e não o contrário”.
Com práticas como essa, há um resgate da relação saudável entre ser humano e natureza, uma visão de mundo sempre cultivada pelas populações indígenas. “É também esse lugar do design regenerativo, porque o indígena é indissociável da natureza. O povo indígena ainda traz isso, no seu cerne, é uma forma de expressão sua”, conclui.
Uma nova forma se criar moda no Brasil
A geração de estilistas indígenas que tem ocupado a indústria da moda, parte de outros valores. Com um modo de produzir que respeita o ritmo da natureza, novos talentos vêm desenvolvendo coleções que têm como proposta o ritmo de slow fashion, no qual não há intenções de seguir o calendário acelerado das tendências desse mercado. Essa orientação resulta na escolha de matérias-primas naturais e de origem certificada, bem como no cuidado com as diversas etapas que envolvem o processo de produção de uma roupa, principalmente, no que se refere ao tingimento das peças.
Entre os estilistas que vêm conquistando espaço com essa forma de atuação, se destacam Day Molina, Sioduhi, Rodrigo Tremembé, We’e’ena Tikuna e Maurício Duarte. Cada um, a partir da sua subjetividade, apresenta uma diversidade do que significa criar moda indígena no Brasil, dialogando com as suas próprias culturas e refletindo também sobre o que a colonização provocou nos seus modos de pensar o vestir. Alguns deles, inclusive, já estão apresentando suas coleções nas principais semanas de moda no país. Day Molina na Casa de Criadores, Sioduhi e We’e’ena Tikuna no Brasil Eco Fashion Week, e agora, Maurício Duarte na São Paulo Fashion Week.
Há ainda uma significativa mudança na indústria que, em diálogo com a pauta de representatividade, tem trazido mais modelos que se autodeclaram como indígenas ou descendentes de indígenas para estrelar campanhas e desfiles. Zaya, Noah Alef, Emilly Nunes e Dandara Queiroz, uma das modelos mais requisitadas nas últimas edições do São Paulo Fashion Week, são alguns dos nomes que vêm se destacando nessa área.
Longe de ser o ideal, em termos de diversidade de corpos e etnias, mas ainda assim, essa é uma conquista considerável diante da realidade de indígenas que cresceram sem se enxergar nesse universo. Para Myrian Krexu Veloso, cirurgiã cardíaca da etnia Guarani-mbya, se ver na moda ainda é novidade, “gostar de moda é algo relativamente novo na minha vida, assim como apreciar a minha própria aparência”, relata. “Cresci no sul do país e passei infância e adolescência vendo um ‘padrão de beleza’ eurocêntrico. Demorei para me sentir bonita ou valorizar a forma que as roupas me vestiam e acredito que gostar de moda é muito mais do que sobre roupas e acessórios, começa com autoestima”, acrescenta.
A médica tem usado seu perfil no Instagram para compartilhar a experiência como cirurgiã e mulher indígena. Vinda de uma realidade de pobreza, por meio de muitos esforços conseguiu conquistar mais espaços com o seu trabalho. Dessa forma, não se afetou com as novas possibilidades de consumo e, sendo convidada para ilustrar campanhas e parcerias com marcas de moda, busca inspirar outras meninas indígenas a conquistarem sonhos.
“Como eu disse, não cresci apreciando a minha beleza, porque me convenceram que ser como eu, não era ser bonita. Então, ocupar esse espaço é soltar as minhas próprias amarras e fico feliz em inspirar outras mulheres e crianças indígenas para que elas vejam que são lindas e que todos os lugares também lhe pertencem, seja a passarela, a cidade, a televisão, a universidade”, reflete.
O cuidado também se estende à sua experiência de consumo, pois, Myrian valoriza a moda autoral brasileira, com processos éticos envolvidos em toda cadeia de produção – do impacto ambiental à remuneração justa dos envolvidos na confecção e criação das peças. Para ela, esse espaço é também uma forma de posicionamento político e que faz parte de um pensamento ancestral. “Antigamente, os povos Guarani-mbyá teciam e usavam peças de algodão, tenho preferência por esse tipo de material, não sei se por ancestralidade ou apenas por conforto. O Brasil todo é terra indígena. Logo, usar uma roupa diferente, se interessar por moda e trazer esse padrão de beleza também é uma forma de resistência”, observa.
Por meio desses exemplos de beleza e resiliência, entendemos a urgência de ampliar os debates sobre as formas de se fazer e vestir a moda indígena. Do combate aos estereótipos à conquista nos espaços de criação, a contribuição dos povos originários é considerada fundamental para termos uma indústria mais ética e respeitosa. Além disso, ter as populações indígenas dialogando e atuando a partir de suas próprias perspectivas representa um novo momento para se pensar a moda no Brasil.