Entre navalhas, polacas e tamborins: uma breve história do Samba batucado do Estácio de Sá

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Nascido em meio a navalhas, polacas e malandros, o “samba batucado” do Estácio de Sá se expandiu e tornou-se dominante em todo o Brasil

Por MARCO AURÉLIO, compartilhado de Revista Opera




Peter Burke, historiador britânico, um dos maiores especialistas em história da Idade Moderna e integrante da terceira geração da Escola dos Annales, costumava dizer que a função da história é “lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer”. Ao colocarmos essa frase ao lado de sujeitos negros na história do Brasil, ela ganha um peso ainda maior. Motivado por essa função, dada por Peter, e por uma certa obsessão exacerbada pelo objeto do artigo, consumo praticamente qualquer coisa que se refere ao samba. Mas, voltando ao historiador britânico: se a função do historiador é, de forma persistente, lembrar a sociedade do que ela ignora, a história do samba pode ser um bom exemplo do efeito dessa frase.

Ultrapassada a barreira imposta pelo Estado Novo e a Ditadura Brasileira – especialistas em tornar a história brasileira uma grande comunhão de raças e certeira em apagar os elementos negro e indígena de sua construção –, hoje temos um farto material que comprova não apenas a grandiosidade, mas a indispensável presença dos grupos originários e afro-brasileiros na criação e sustentação da cultura que se afirma nacional.

Há muito tempo se discute o embranquecimento do samba – no sentido estrutural e capitalista –, a distorção dos rumos que as escolas de samba tomaram, e o surgimento do carnaval-produto. Essas críticas, feitas por gente como Ana Maria Rodrigues[1], Candeia[2] e Elton Medeiros[3], se situa num processo que, como já dito, se inicia com a construção do mito nacional, durante o processo de industrialização brasileira, que tem seu ponto alto na Revolução de 1930 e que seguiu rumos ainda mais nefastos durante o Golpe de 1964.

Frantz Fanon, em sua análise sobre a cultura nacional dos países subdesenvolvidos[4], nos conta que o intelectual colonizado, numa espécie de obsessão por um passado idílico, passa a buscar, incessantemente, explicar como as nações e povos oprimidos são o oposto do que o colonialismo impôs. De forma magistral, Fanon designa os perigos do que ele chama de racialização da cultura[5], e da homogeneização de “culturas negras”[6], sem levar em consideração as suas características nacionais. Longe de criticar essa busca pelo passado – pelo contrário, esse se torna um passo importante na afirmação dos povos colonizados e de sua cultura –, Fanon nos mostra que, ainda que esse passado seja, supostamente, glorioso, em nada ele interfere nas condições atuais dos povos historicamente oprimidos, fato que toma proporções gigantescas com o processo de acumulação primitiva do capital, a descoberta do Novo Mundo e a espoliação dos autóctones.

Portanto, o objetivo de diversos intelectuais, ao demonstrar as origens da cultura nacional em bases negras e indígenas, é muitas vezes mais que afirmar um passado glorioso, mas colocar as coisas em seu devido lugar. Pois só a partir desse estabelecimento concreto da cultura brasileira e de seus atores, podemos, dialeticamente, buscar novos rumos para nossa sociedade, em especial para os povos racializados.

A história do samba batucado – como ficou conhecida a segunda fase do samba, o chamado “Samba de sambar” do Estácio de Sá –, é importante para que, longe das influências colonialistas e racistas na análise da história brasileira, possamos demonstrar como, a partir de certas condições materiais e mentais, o samba – surgido em lugares como Vale do Paraíba, Pernambuco e Bahia, e que tomou a forma atual no Rio de Janeiro dos anos 1920 –, insiste em se manter como o maior símbolo da cultura negra brasileira, ao lado do candomblé. É também uma maneira de mostrar a capacidade do materialismo histórico e dialético em extrair dos objetos as contradições que o compõem, para, assim, termos bases concretas que possam explicar a nossa cultura, e transforma-la, social e economicamente, rumo a uma cultura popular que tenha, de fato, uma base material popular. 


Zona do Mangue nos anos 1950. (Reprodução / Madureira: Ontem e Hoje)

Zona do Mangue: prostituição, malandros e poesias

Para definir, de forma precisa e rápida, o que era a Zona do Mangue, faço uso das palavras do musicólogo Carlos Didier[7]:

Uma história para quem não desconhece que os homens, como também as mulheres, trazem em si o céu e o inferno, como cantava, muitos anos antes, o poeta persa Khayyam. Uma história para quem sabe que o crime não era, nem podia ser, coisa estranha aos malandros, cujas musas dos sambas eram as malandrinhas do bairro do prazer”.

Fazia pouco mais de 30 anos que a escravidão havia sido abolida no Brasil. Os negros e negras, embora alforriados, viviam em situação de completa miséria. Não houve reformas que pudessem os colocar numa condição minimamente humana frente às mudanças que ocorriam no Rio de Janeiro, capital da jovem república. A Zona do Mangue, ocupando a região da Cidade Nova, era uma área onde a prostituição se tornou uma das principais formas de comércio no centro do Rio de Janeiro. Existem diversas versões para o seu surgimento, mas o importante é saber que a região tem uma ligação umbilical com o tráfico internacional de mulheres – em muito alimentado pela Primeira Guerra Mundial –, e o processo de miscigenação e embranquecimento da população brasileira, financiado pelo Estado. 

Tanto a Cidade Nova como o Estácio de Sá, bairros vizinhos, eram lugares de aglutinação proletária. É um tanto controverso falar de proletários no Brasil do início do século 20, mas o processo de urbanização da cidade e o desejo de industrializar um país tão atrasado fez surgir essa classe no Brasil, que, na Europa, já era enorme. A região central do Rio de Janeiro foi o destino da maioria dos negros alforriados. Ali surgiu, por exemplo, a primeira favela da cidade, conhecida como Morro da Providência, que desde 1897 abrigava ex-excravos e ex-combatentes da Guerra de Canudos.

O local se tornou essa mistura de refugiados da guerra, negros libertos e europeus pobres em busca de melhores oportunidades, aliado ao já citado processo de eugenização da população brasileira. A famosa organização criminosa Zwi Migdal – ligada à comunidade judaica do Leste Europeu –, foi a grande responsável pelo tráfico das chamadas “polacas”. O nome, longe de representar a totalidade das mulheres europeias trazidas à América Latina, era uma forma de denotar que, em sua maioria, essas mulheres vinham do Leste Europeu, região muito mais pobre da Europa em comparação com a região ocidental e central. Ainda que o primeiro navio da organização tenha atracado no Brasil em 1867, foi no início do século 20, e durante a Primeira Guerra, que o fluxo atingiu seu ápice. Junto de brasileiras, em sua maioria, mulheres negras, as polacas se tornaram objeto de desejo de toda a sociedade carioca, e transformaram a Zona do Mangue num ponto de comércio sem precedentes.

Ao mesmo tempo, para os homens negros não houve um plano de inserção na sociedade de classes. O que lhes restou foi a malandragem. Muito bem explorada, essa categoria é contraditória, no sentido de que engloba uma série de atividades ilícitas, ao mesmo tempo em que foi transformada por sambistas como Bezerra da Silva. Mas, em suma, os malandros eram, em sua maioria, homens negros que viviam do jogo, da capoeira, dos roubos, entre outros crimes. Mas uma categoria em especial reinava na Zona do Mangue: o malandro-cáften. Esse tipo de malandro era o responsável pelo gerenciamento das polacas, ou seja, uma espécie de cafetão. Com o desaparecimento das Maltas de capoeira[8], o malandro se tornou a principal figura entre as classes mais precarizadas da cidade. Eram, de fato, expropriadores do trabalho, da segurança e de corpos alheios.

Pela Zona do Mangue, os malandros mais abastados andavam em ternos de linho, camisas de seda, gravatas, e, claro, a navalha, sua arma preferida, herdada das maltas de capoeira e dos tempos em que essa luta era, segundo os governantes do Império Brasileiro, a principal ameaça à monarquia[9].

A maioria dos malandros habitavam ali mesmo na Zona do Mangue. Porém, muitos deles vinham do Morro de São Carlos, favela localizada no Estácio, e uma das mais antigas da cidade. São Carlos foi outro importante ponto aglutinador de ex-escravos, ex-combatentes ou somente gente que não tinha onde morar.

Outra importante região central do Rio de Janeiro ajuda a fechar esse ciclo de explicações sobre as questões urbanas, sociais e raciais do Rio de Janeiro. A Praça XI, localizada no limite da Cidade Nova, era ocupada, quase que em sua totalidade, por negros libertos. Lá, existiam casebres, moradias extremamente precárias, onde essa massa de despossuídos passaram a morar. Foi também na Praça XI que a mítica Tia Ciata estabeleceu moradia. Sua casa, uma espécie de quilombo, foi frequentada por diversos homens e mulheres negras, que lá podiam rezar aos seus Deuses, cantar e sambar. Mas não era exatamente o samba que conhecemos hoje. Ali, na casa de Ciata, o samba ainda era maxixado, sendo sintetizado em “Pelo Telefone”, o primeiro samba gravado da história.

A proximidade da Praça XI com a Cidade Nova e o Estácio influenciaram no intercâmbio cultural entre essas regiões, o que fez com que, na Zona do Mangue, os malandros pudessem também compor, cantar, sambar e criar poesias sobre a vida na região.

Brancura foi um grande exemplo dessa síntese entre malandragem e poesia. Nascido Silvio Fernandes, tinha, ao mesmo tempo, uma extensa ficha criminal e uma extensa lista de composições, sendo considerado um dos maiores da Turma do Estácio, ainda que não tenha gravado seus sambas, tarefa que, em grande parte, ficou nas mãos de Francisco Alves. Dono de mais de 120 mulheres do bairro do prazer, Brancura morreu aos 32 anos de idade, “louco por conta da sífilis[10]”. A curta duração de sua vida não seria uma novidade num país em que a expectativa de vida era de 45 anos, mas Brancura morreu exatamente pelos motivos sobre o qual cantou, deu navalhadas e expropriou mulheres. Sambas como “Coração volúvel” e “Você chorou”, da autoria de Brancura, denotam o que seria o enredo do novo tipo de samba que tomaria o Rio de Janeiro, e seria a gênese do samba moderno.

Interessante notar que, em “Coração volúvel”, a melodia ainda se parecia muito com “Pelo Telefone”, o que muda em “Você chorou”, onde se pode ouvir o embrião do batuque do Estácio. Brancura foi o símbolo da contradição viva que era o samba do Estácio. Exemplo de como os sambistas-malandros se formaram, material e mentalmente. Um lugar inóspito e prolífico.

Desse intercâmbio, e do confronto entre o modo de viver na casa de Tia Ciata com a cultura econômica e social do Estácio, surgiu o famoso samba batucado. Outros fatores influenciaram essa criação, é claro. Mas, como grande malandro-poeta, Ismael Silva, peça central nessa história, explicaria assim a transformação do samba maxixado em samba batucado[11]:

“O samba era assim: ‘tan tantan tan tantan. Não dava […] Aí, a gente começou a fazer um samba assim: ‘bum bum paticubum prugurundum…”. 

Rodrigo Argenton / Wikicommons
Tamborim em uma roda de samba

Do maxixe ao batuque: a Turma do Estácio faz o samba sambar

A Turma do Estácio, que já tinha sua própria identidade cultural, precisava de uma identidade no samba. Isso não ocorreu como uma afirmação da vontade de seus integrantes, mas por uma necessidade tanto material – muitos dos sambistas do Estácio não sabiam tocar cordas –, como pelo ritmo dos desfiles carnavalescos de até então. A anedota de Ismael Silva sobre o estilo do samba dele era, na verdade, a explicação de uma mudança completa na forma de se tocar o samba, que culminou com a criação da Deixa Falar, considerada, por muitos, a primeira escola de samba do Brasil. A Deixa Falar dispensa comentários, mas basta dizer que Mangueira, Estácio de Sá e Portela foram três das escolas que surgiram da escola da Zona do Mangue. 

Não à toa que gente como Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho, Paulo da Portela, Alcides Malandro Histórico, Manacéia, Molequinho e Aniceto do Império Serrano passariam a chegar junto com a Turma do Estácio, e participavam das rodas de samba promovidas por essa turma, nos bares Apollo e Cumpadre. 

Os desfiles de carnaval já aconteciam na Praça XI, e, em 1933, o prefeito Pedro Ernesto organizou o primeiro desfile oficial na praça. Era o samba da casa de Tia Ciata, as marchinhas, as polcas e outros gêneros que, por ali, passavam com suas fantasias e músicos. Aquela turma de bambas e malandros desfilavam nos chamados “blocos sujos”, que, por muitas vezes, caiam na porrada entre si, seja pelo motivo que fosse. Mas também desfilavam com um ritmo diferente, o “bum bum paticumbum prugurundum”. Era um ritmo mais alegre, e que, segundo Ismael Silva, seria o mais adequado para acompanhar os foliões. O que ajudou a transformar esse ritmo foi a criação, por Bidê, do surdo, instrumento hoje indispensável nas escolas de samba, e que, por muito tempo – inclusive nos Originais do Samba –, assumiu a função de marcação do samba, que, anos depois, seria praticamente substituída pelo tantã criado por Sereno. Bidê também introduziu na Deixa Falar o tamborim, outro instrumento presente nas escolas e nas rodas de samba. Por fim, o saudoso João da Mina introduziria ao samba a cuíca. Estava formado o samba de sambar, o samba batucado. É interessante também entender que essa mudança, não apenas sonora, se daria pelas condições urbanas com as quais aquela geração se relacionou. É possível falar de samba batucado no contexto em que ele existiu, em diferenciação do samba de Ciata, com características ainda muito ligadas à forma como os negros de sua época viviam; praticamente um samba pré-abolição.

Essas mudanças foram explicadas por Ismael Silva, no programa “Arquivo N” da Globo News, com seu jeito irreverente e egocêntrico, no melhor sentido do termo.

https://youtube.com/watch?v=8_KKiSPzz9Y%3F%26ab_channel%3Dcalulinho%26wmode%3Dopaque

Ainda sobre o novo padrão de samba, o musicólogo Carlos Sandroni faz uma análise comparando o estilo e originalidade do samba batucado em relação ao samba maxixado[12]:

“No maxixe a síncope está contida dentro de um tempo, enquanto que  neste novo samba criado pelo pessoal do Estácio, ela transborda de um tempo para outro”.

Ainda que se fale muito em Ismael Silva, que, de fato, foi o grande líder dessa geração, muitos outros sambistas e malandros estiveram presentes na turma. Armando Marçal, pai do eterno Mestre Marçal, foi outro grande nome da Turma do Estácio. Curiosa e trágica é sua morte, dentro de um estúdio de gravação da RCA, ao ter um ataque fulminante, aos 45 anos de idade. Podemos falar ainda de Mano Edgar, que, aos 31 anos, foi assassinado por uma briga de jogo do bicho. Ao dia de sua morte, foi anunciada assim sua passagem:

“A Praça XI anuncia: morreu o malandro mais famoso do Estácio de Sá”.

A relação do grupo do Estácio com a morte prematura – violenta ou não – e o amor foi o que mais marcou o estilo de composição desses sambistas. Além dos já citados Brancura, Mano Edgar, Bide e Marçal, entram na brilhante lista ainda Baiaco, Nilton Bastos, Bucy Moreira – que era neto de Tia Ciata –, Mano Rubem, e tantos outros nomes. Poucos deles viveriam o suficiente para ver a criação do Estácio se tornar o novo padrão de samba, que daria origem não apenas às escolas de samba, como, indiretamente, ao Fundo de Quintal, que, sem dúvidas, foi a terceira mais marcante fase do samba, com suas inovações no gênero.

A violência que reinava na região da Zona do Mangue levou a maioria dos grandes nomes do samba de sambar, mas o que realmente era ponto chave do novo samba era o amor – e o desamor. Foi dessa forma que Noel Rosa resumiu a arte do Estácio, em seu samba “O X do problema”:

“Você tem vontade
Que eu abandone o largo de Estácio
Pra ser a rainha de um grande palácio
E dar um banquete uma vez por semana
Nasci no Estácio, não posso mudar minha massa de sangue
Você pode ver que palmeira do mangue
Não vive na areia de Copacabana”

Mais do que um novo movimento, o Estácio também demarcava um espaço de classe e raça na cultura carioca. Se a areia de Copacabana não poderia ser o lar desses malandros, o mangue era o espaço onde germinava as maiores composições do grupo.

Com apenas 14 anos, e muito antes de sonhar em gravar o seu primeiro disco, Ismael versou: “Já desisti da mulher, já desisti do trabalho, agora só me falta desistir do baralho.” Já em seu álbum de 1973 pode se notar uma atmosfera que envolve o amor das mulheres pelos malandros, e o desdém desses por elas. Era a atmosfera criada pela condição das mulheres do chamado baixo meretrício, mas também um resquício muito grande do machismo, ocasionado pelas condições da época, bem como pela profissão que vários dos malandros do Estácio assumiram. Mano Edgar, em Quem eu deixar não quero mais, versa sobre os dentes de ouro que deu a uma “mulher ingrata”. A relação desses homens com a sensação de posse sobre as mulheres foi muito explorada no samba do Estácio e é um registro histórico de uma época marcada por todos os elementos econômicos e sociais que os negros e pobres vivenciavam no Rio de Janeiro. Mas, às vezes, as mulheres venciam algumas batalhas, como Francisco Alves e Heitor dos Prazeres cantaram, em 1929, no samba “A Vadiagem”:

“A vadiagem eu deixei, não quero mais saber
Arranjei outra vida, porque deste modo não se pode viver
Eu deixei a vadiagem para ser trabalhador
Os malandros hoje em dia não tem valor
Ora, meu bem, diga tudo o que quiser
Eu deixei de ser vadio por causa de uma mulher”

Claro que, nesse samba, são visíveis o processo “anti-malandragem” e de adaptação das classes subalternas ao trabalhismo e ao projeto modernizador da nação de Getúlio Vargas. Não apenas as mulheres, por vezes, assumiram o papel de salvar os homens da vida boêmia. O braço do estado também fez a sua parte. Esse é um ponto interessante para se pensar, por exemplo, sobre o declínio da Turma do Estácio, e a acirrada disputa entre o samba malandro e o “samba trabalhador”.

Arnaldo Pescuma, Heitor dos Prazeres, Armando Marçal e Bide, integrantes da Turma do Estácio, 1940. (Reprodução)

No estudo sobre o tema do amor na Turma do Estácio, Gabriel Valladares Giesta e Maria Izabel Valença Barros refletem sobre a ambiguidade com que o Estácio tratou o amor e o trabalho. Bide, que em “A Malandragem”, defendeu o amor como forma de abandonar a orgia, logo mudou de ideia em “Nasci no samba”, gravado por Leonel Faria em 1932:

“Vivo na malandragem, não quero saber do batedor
Pode escrever o que vou dizer, ando melhor do que o trabalhador”

Fica evidente então que, com a Revolução de 1930, e a consequente criação do aparato de repressão voltado à cultura e o projeto de proletarização do Brasil, a Turma do Estácio viveu um momento de grandes contradições em suas composições. Se, de um lado, a mulher e o trabalho eram elementos de baixa importância, eles passam a se tornar os meios pelos quais o malandro deixa de ser malandro e se torna trabalhador.

Esses elementos, junto da morte de Mano Edgar e Nilton Bastos, colaboraram para o declínio da Turma do Estácio. Junta-se à isso a prisão de Ismael Silva e seu desaparecimento temporário no meio do samba – o que ocasionaria a criação de um dos mais belos sambas já escritos, Antônico, gravado por Ismael em seu disco de estreia, e regravado, anos depois, por Gal Costa.

Não havia mais espaço, no Brasil de 1940, para a malandragem. O trabalho proletarizado era o ideal a ser alcançado por uma nação recente, que desejava entrar na modernidade. Mas nada disso foi capaz de apagar o legado deixado pela Turma do Estácio. A semente plantada na Zona do Mangue, na Cidade Nova, no Morro de São Carlos e Providência, no Estácio e na Praça XI, germinou e espalhou frutos por todo o Rio de Janeiro, se espalhando, anos depois, por todo o Brasil, fazendo com que o samba batucado se tornasse sinônimo de samba.

“Deixa falar”: O legado da Turma do Estácio e o samba moderno

Como um movimento que durou tão pouco tempo pôde ter se tornado não só um legado, mas uma realidade, no sentido de mudar completamente o samba, e ajudar a torná-lo o ritmo mais popular do Brasil? 

Muito foi falado durante esse texto sobre a musicalidade da Turma do Estácio, em especial da sua batucada. Nos anos posteriores ao fim da turma, o samba adotou suas características de tocar e sambar. Francisco Alves, um dos mais populares cantores brasileiros – motivo pelo qual recebeu a alcunha “Rei da voz” –, gravou uma infinidade de sambas compostos no Estácio de Sá. Com o surgimento das primeiras grandes escolas de samba, como a Mangueira, Portela, Império Serrano e Estácio de Sá – claramente influenciadas pela Deixa Falar –, o ritmo dos desfiles adotaria o estilo dos malandros da Cidade Nova. O carnaval não seria mais o mesmo, com tamborins, surdos, cuícas e uma nova síncope dominando a Praça XI, e, posteriormente, a Marquês de Sapucaí.

Outro ponto importante do legado deixado pela Turma do Estácio pode ser visto nas questões sobre a crítica social e a adoção da identidade nacional propostas pela Revolução de 1930. Com as contradições entre capital e trabalho, o samba dos malandros, como já dito, sofreu um duro golpe. Mas, de forma alguma esse golpe foi mortal. As reformas de Getúlio, embora mudando qualitativamente a vida do negro, o inseriu em novas contradições. A tentativa de transformar a cultura negra em cultura brasileira foi, de certa forma, um fenômeno de longa duração, e que, ainda hoje, respinga nos debates sobre a cultura nacional. Fato é que a figura do malandro – que, por vezes, se tornou trabalhador aos moldes capitalistas –, foi um ponto de conflito entre as classes pobres e o Estado. O malandro, se afastando um pouco de sua atuação como um gângster, se tornou a negação do capitalismo dentro do samba. O trabalho que sobrou ao negro no início da república em pouco se diferenciava do trabalho do negro enquanto escravo no Império. Essa negação, é claro, não foi uma negação revolucionária. Mas foi uma negação importante, ainda que contraditória.

O malandro mudaria de forma no samba, tornando-se um estilo de vida e de sobrevivência. Na obra de Bezerra da Silva, o malandro se desdobra em dois tipos, a depender do álbum e da época. Em “Malandro demais vira bicho”, Bezerra retrata o sujeito “malandro demais”, um vacilão, que fala muito e pouco faz.  Já em “Malandro rife”, Bezerra canta o malandro respeitado e respeitador, bem quisto, e, acima de tudo, sujeito que vivia do seu ganha pão, sem expropriar os seus iguais. Em certa medida, há um pouco do malandro do Estácio em ambas as faixas de Bezerra da Silva, ainda que ele tenha levado a questão do malandro para um outro lugar, dado o espaço e tempo em que ele existe em sua obra, ou seja, as favelas cariocas dos anos 1980.

O Estácio não criou o malandro – sujeito bem mais antigo, remetendo à época das maltas de capoeira –, mas o colocou em evidência no samba. Sua gênese na Zona do Mangue se deu pela realidade da região, mas ela pode, dialeticamente, se transformar. Hoje podemos ser malandros no sentido mais genuíno da palavra, para que possamos sobreviver ao massacre racial, às balas da polícia, ao mercado de trabalho precarizado. A maior malandragem do mundo, segundo Helião e Sandrão[13], é viver. E sobreviver.

O músico e anfitrião, Cartola, observa o cantor Sérgio Cabral e o sambista Ismael Silva (ao violão), ao fundo, os pesquisadores da cultura carioca Jota Efege e Eneida Moraes, no bar Zicartola, no Rio de Janeiro, em 1969. (Imagem: Acervo da Biblioteca Nacional/Divulgação.)

O terceiro ponto do legado da Turma do Estácio está na mudança do samba de roda, aquele samba que todos nós, com nossas cervejas, cantamos e tocamos nas ruas, bares, morros e campos de futebol Brasil afora. O surgimento da Mangueira e Portela de dentro da Turma do Estácio permitiu que esse samba se expandisse para a Rocinha, Madureira e diversas outras regiões do Rio de Janeiro. Em Oswaldo Cruz, ajuda a construir uma seleção de sambistas como Candeia, Manacéia, Paulinho da Viola, Alcides Malandro Histórico, Zé Keti, Monarco e outros deuses do samba. Ao lado da Azul e branco, na parte imperial do bairro, nomes como Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola, Dona Ivone Lara, Aniceto do Império, Roberto Ribeiro, Molequinho e Mestre Fuleiro criaram sambas épicos nos batuques criados pela Turma do Estácio. No Morro da Mangueira, Cartola, Carlos Cachaça, Zé Espinguela, Seu Euclides e Tia Fé também caíram no samba de sambar.

A expansão desse samba que dominou o Rio de Janeiro – sem, é claro, apagar as outras formas ancestrais de samba –, tomou todas as partes da cidade. Da Baixada à Gamboa, chegando a São Paulo, Minas Gerais e outros cantos do Brasil, fato é que o samba batucado tornou-se a marca do samba, a síntese e o símbolo do que é o samba. Reafirmo que esse processo não apaga as outras formas de samba, como o maxixado, o samba de roda, o samba rural e o batuque dos engraxates. Mas ele se tornou dominante, na medida em que o país se urbanizou, os intercâmbios se tornaram mais simples, e o batuque tornou mais fácil fazer samba. Sons saiam de facas raspando em pratos, de atabaques pequenos, latas de tinta e baldes. A percussão africana, trazida por homens e mulheres escravizadas, tomariam conta do samba. Nos anos 1970 e 1980, esse processo desembocou, na Rua Urânio, número 1326, em Olaria, no movimento mais revolucionário do samba: o Cacique de Ramos. O movimento, que daria origem ao Grupo Fundo de Quintal e tantos outros sambistas, tem ligação umbilical com a Turma do Estácio. Não apenas o tantã de Sereno é influenciado pelo surdo de Bidê, mas também as batidas do repique de mão de Ubirany se assemelham em muito ao tamborim, também trazido pelo Estácio. Se hoje cantamos Luiz Carlos da Vila, Leci Brandão, Jorge Aragão e Jovelina Pérola Negra, isso é, em grande parte, pelo samba criado no Estácio.

A Deixa Falar, independente das acaloradas discussões sobre o tema, sendo a primeira escola de samba criada, de fato, cumpriu a sua função. Ismael Silva, sempre genial e irônico, costumava dizer que o nome surgiu do fato de que, nas imediações de onde batucava, havia uma escola. Ismael dizia então que eles – a Turma do Estácio –, eram os professores do samba. Em um dos mais divertidos registros do grande Ismael Silva, ele conta sobre a origem do nome Deixa Falar:

“Às vezes, chegava alguém contando: ‘sabe o que o Salgueiro falou?’, e eu respondia: ‘deixa falar, eles tem que respeitar, porque aqui é que é escola de samba.’”

De tanto deixar falar, o samba batucado percorreu o universo, como Cartola bem cantou em Tempos Idos. E quem imaginaria que, num ambiente tão degradado no pós-abolição, e pelo processo eugenista de urbanização, uma turma de malandros, que mal passavam dos 30 anos, criariam uma das mais emblemáticas e bonitas páginas da história da música brasileira?

Bem, recorrendo à poesia do samba para explicar como isso foi possível, recordo o samba-enredo de Beto Sem Braço e Aluízio Machado, composto para o desfile de 1982 do Império Serrano, no qual a escola foi campeã. “Bum Bum Paticumbum Prugurundum” se originou daquele diálogo entre Ismael Silva com Donga e João da Baiana sobre qual seria o verdadeiro samba. Se tornou um dos maiores enredos de todos os tempos, e exemplifica muito bem a glória da Praça XI e do Estácio. Se, em certos momentos, as navalhas e balas de revólver soavam como música para os malandros, os tamborins, surdos e cuícas puderam ocupar esse lugar como instrumentos de marcação da vida e resistência dos negros e pobres, e, mesmo com todas as contradições inesgotáveis que permeiam as raízes do samba de sambar, aquela turma entrou para o panteão do samba.

“Oh, Praça Onze, tu és imortal
Teus braços embalaram o samba
A sua apoteose é triunfal
De uma barrica se fez uma cuíca
De outra barrica um surdo de marcação
Com reco-reco, pandeiro e tamborim
E lindas baianas o samba ficou assim”

“Deixa Falar”, que anos depois se tornaria a “Estácio de Sá” foi a primeira escola de samba do país. (Foto: Reprodução)


Notas:

[1] Ver “Samba Negro Espoliação Branca”, livro de Ana Maria Rodrigues, que estuda o processo de expropriação e embranquecimento do samba.

[2] Ver “Escola de samba: árvore que esqueceu a raiz”, livro em que Candeia analisa e explica o funcionamento das escolas de samba, como faz uma crítica aos rumos que essas agremiações tomaram.

[3] O disco homônimo de Elton Medeiros, de 1973, é, em grande parte, uma crítica ao carnaval-produto, onde, segundo ele, o povo perde o protagonismo e até mesmo o acesso aos desfiles.

[4] FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Zahar, 2022, p. 183.

[5] O processo de racialização da cultura, que se dá no surgimento das teorias raciais, que validariam tanto a escravidão moderna como o colonialismo, foi um empreendimento que opos a cultura branca-europeia às culturas dos povos subjugados. Segundo Frantz Fanon, “os grandes responsáveis por essa racialização do pensamento, ou pelo menos pelos procedimentos do pensamento, são e continuam a ser os europeus que não cessaram de opor a cultura branca às outras inculturas”.

[6] Outro processo sinalizado por Frantz Fanon é o de “homogeneização da cultura negra”, processo esse que também se dá por uma questão política frente ao colonialismo. Mas, quando contraposto às questões nacionais, pode gerar atritos e dificuldades na elaboração de táticas na luta de libertação nacional. No capítulo “Sobre a cultural nacional”, em Os Condenados da Terra, Fanon aborda esse tema ao falar sobre os congressos de cultura ocorridos no século 20, em especial, o II Congresso dos Escritores e Artistas Negros. FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Zahar, 2022, p. 189.

[7] DIDIER, Carlos. Negra semente, fina flor da malandragem: samba batucado do Estácio de Sá. Rio de Janeiro: Edição do autor, 2022.

[8] As maltas eram grupos de capoeiristas, em sua maioria negros, que existiram como forma de resistência contra a elite brasileira. No Brasil Império haviam diversas maltas, como os Carpinteiros de São José, Conceição da Marinha, Glória, Lapa, Moura entre outras. No período da Proclamação da República havia duas grandes maltas: os Nagoas e os Guaiamús.

[9] EUGÊNIO, C. A Capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Editora da Unicamp, 2004.

[10] Brancura – CemporcentoSamba. Disponível em: <https://cemporcentosamba.com.br/brancura/>. Acesso em: 25 out. 2023.‌

[11] CABRAL, Sérgio. Escolas de samba no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lazuli, 2011, p. 260.

[12] CALDAS, C. Histórias do Samba e do Choro: O Reduto do Samba e dos bambas. Disponível em: <https://sambabook.blogspot.com/2016/01/o-reduto-do-samba.html>. Acesso em: 25 out. 2023.

[13] Referência a música “Paz interior”, do grupo RZO, formado por Helião, Sandrão e DJ Cia.

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