Junho de 2023 será um mês decisivo para as comunidades indígenas brasileiras. O Supremo Tribunal Federal deve retomar no dia 7 o julgamento sobre o marco temporal da ocupação da terra por populações indígenas no país.
Por Eduardo Reina, compartilhado de Conjur
O tema será debatido no Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, com repercussão geral. O RE discute se a data da promulgação da Constituição Federal — 5 de outubro de 1988 — deve representar o marco temporal da ocupação tradicional da terra por populações indígenas no Brasil.
Mas o entendimento sobre conflitos envolvendo os territórios tradicionais vai além da decisão do STF. Ainda nesta terça-feira (30/5), a Câmara dos Deputados deve se antecipar ao julgamento da Corte e votar o projeto de lei sobre a demarcação de terras indígenas (PL 490/2007).
No dia 24, a Câmara aprovou requerimento de urgência na votação do PL e propôs modificações nas estruturas de ministérios e alteração na política ambiental nas pastas dos Povos Indígenas e do Meio Ambiente, proposta pelo deputado Isnaldo Bulhões (MDB/AL). Também foi afrouxada a proteção à Mata Atlântica e ampliada a anistia por desmatamento.
A versão proposta pelos deputados transfere para o Poder Legislativo a prerrogativa da demarcação dos territórios. Ao texto também foi acrescida a possibilidade de realização de empreendimentos e exploração de recursos naturais das terras.
Assim, o Congresso poderá autorizar a exploração de recursos hídricos e potenciais energéticos, pesquisa e lavra mineral, instalação de equipamentos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte em terras indígenas. Tudo independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão indigenista federal competente.
Após a aprovação da urgência para apreciação do PL 490, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) acionou a Advocacia Geral da União (AGU) e solicitou, também de forma urgente, a revogação do parecer sobre o marco temporal (Parecer 001/2017).
Julgamento no STF
O julgamento da RE 1.017.365 está suspenso desde setembro de 2021, quando o ministro Alexandre de Moraes pediu vista. Até a suspensão, o ministro Edson Fachin havia votado contra a tese do marco temporal, e Nunes Marques de forma favorável.
O processo que motivou a discussão em Brasília trata da disputa pela posse da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, em Santa Catarina. No local vivem indígenas Xokleng, Guarani e Kaingang. O governo estadual catarinense entrou com pedido de reintegração de posse.
Hoje existem mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas abertos em todo território nacional.
À revista eletrônica Consultor Jurídico, o professor de Direito Constitucional da Universidade Mackenzie Flávio de Leão Bastos avaliou que a tese do marco temporal, “sob todos os pontos de vista que podem ser considerados (histórico, sociológico, antropológico, político e jurídico), constitui uma excrecência com consequências genocidas”.
“O marco temporal é assim denominado pois impõe a cada povo indígena, para que tenha reconhecida e demarcada sua terra ancestral e tradicional, o ônus da prova de que em 5 de outubro de 1988 ocupavam referidas terras de modo produtivo ou, ainda, que demonstrem que na citada data estavam litigando em juízo pela mencionada terra indígena”, explica.
“Ora, até 5 de outubro de 1988 os povos indígenas sempre foram roubados em suas terras; espoliados e exterminados. Como provar que ocupavam tais terras? E, ainda mais: viviam sob o regime de tutela. Como provar que litigavam em juízo? Trata-se de uma ofensa frontal ao sistema jurídico-constitucional do Brasil”, opina.
Lígia de Souza Cerqueira, advogada criminalista, pós-graduada em Direitos Humanos pela Universidade Católica Portuguesa, alerta para os riscos de judicialização em caso de eventual aprovação do PL 490 pelo Congresso.
“Caso o PL seja aprovado, partidos mais progressistas e ativistas pelo meio ambiente e pelos direitos dos povos indígenas certamente se utilizarão de ações constitucionais para questionar a medida, tendo em vista que o texto, tal como elaborado, deixou de observar o direito de consulta prévia e informada destes povos, garantido pela Convenção nº 169 da OIT, e trará grande insegurança jurídica aos territórios já demarcados ou que se encontram em processo de avaliação ou homologação”, afirma a especialista.
“A Constituição Federal prevê que as demarcações de territórios indígenas devem ser feitas pela União, não havendo necessidade de os requerentes comprovem a data da posse da terra, já que se presume que estes, na qualidade de povos originários, já estavam aqui desde antes da colonização”, explica.
Caso o PL 490/2007 seja aprovado, só serão consideradas terras indígenas os territórios que já estavam ocupados por esses povos originários em 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição, de modo que novos pedidos que não tiverem essa comprovação serão negados.
“Na prática, essa aprovação significaria uma violação ao direito de consulta prévia e informada destes povos, garantido pela Convenção 169 da OIT; desrespeitaria a política indigenista do não contato com povos em isolamento voluntário — abrindo caminho para a disseminação de doenças e consequente genocídio — e permitiria, ainda, a prática de mineração, expansão da malha viária e exploração hídrica em territórios então protegidos, causando prejuízos ao meio ambiente.”