Por Paulo Moreira Leite, no Blog da Cidadania –
Vinte e quatro horas depois da decisão que liberou empresários e executivos, cabe a pergunta: o STF agiria da mesma forma diante do tesoureiro do PT João Vaccari?
O voto do ministro Teori Zavascki, ontem, que garantiu a soltura do empreiteiro Ricardo Pessoa após cinco meses e quinze dias de prisão sem culpa formada, permitindo também a libertação de outros oito executivos e empresários, é um ato civilizatório.
A decisão, por 3 votos a 2, merece aplauso. Ajuda a restabelecer direitos e garantias dos acusados, além de colocar hierarquia do Judiciário no lugar adequado, lembrando a todos que o país tem um Supremo Tribunal Federal e que Sérgio Moro, da Vara Criminal de Curitiba, é um juiz de primeira instância.
Mas é cedo para se acreditar que essa decisão seja o anúncio de mudanças de fundo. Questiona-se, por exemplo, se a 2ª Turma do Supremo, que tomou a decisão, terá a mesma postura e chegará ao mesmo resultado no dia em que for colocada diante de um pedido de habeas corpus de João Vaccari Neto, tesoureiro do Partido dos Trabalhadores, preso em 15 de abril.
Outra pergunta envolve as questões de mérito, que o Supremo irá julgar mais tarde, na hora devida. É razoável aguardar por uma postura mais equilibrada do que as decisões da AP 470?
Os dois votos contrários ao Habeas Corpus vieram do decano, Celso de Mello, e de Carmen Lucia. Os votos favoráveis vieram do próprio Teori Zavascki, de Antonio Dias Toffoli e de Gilmar Mendes. Colocado na situação de fiel da balança, Gilmar fez um voto de oito páginas. Ele dedicou poucos parágrafos para justificar seu apoio ao Habeas Corpus, concordando, de forma lacônica, quase protocolar, com os argumentos do relator. Na maior parte de seu voto, Gilmar disparou críticas duras ao Partido dos Trabalhadores, alvo político reconhecido da Lava Jato.
Depois de recuperar longos trechos de um voto duríssimo de Celso de Mello na AP 470, quando este defendia que os réus fossem condenados pelo crime de quadrilha — tese que acabou derrubada na fase dos embargos infringentes — Gilmar fez uma comparação: “se, no Mensalão, analisamos pagamentos a parlamentares da ‘base aliada’, financiados por verbas de contratos de publicidade e empréstimos bancários fajutos, aqui temos um quadro potencialmente mais sombrio.”
Após assumir, como verdadeiras, as principais conclusões da Lava Jato, que mais tarde irá julgar, com direito de condenar ou absolver os réus, Gilmar denunciou o Partido dos Trabalhadores por usar a “máquina publica para desviar o patrimônio público, canalizando-o ao financiamento de um projeto de poder.” O ministro também lembrou as contas da campanha de Dilma Rousseff, aprovadas com o voto unânime dos juízes do TSE — inclusive o dele.
Com linguagem especialmente crua, Gilmar fez uma insinuação. Disse que “contas de campanha são um emaranhado que deixa muito espaço para a lavagem de ativos. O volume de despesas torna impossível verificar sua efetiva realização.” O ministro falou de uma empresa, Focal, que recebeu R$ 24 milhões, mas, “a partir de investigações realizadas pela imprensa, chegou-se a fortes indícios de que o grupo societário era composto por laranjas.” Referindo-se ao que chamou de “desfile macabro,” falou de impressos produzidos, “a pedido do tesoureiro do partido”, enaltecendo o governo, “considerados propaganda eleitoral ilícita pelo TSE.” Alguém tem dificuldade em imaginar qual será o voto — e o placar — quando os réus usarem a estrela do PT?
O placar de 3 a 2 é surpreendente a partir de determinadas circunstâncias, favoráveis ao Habeas Corpus, que poderiam justificar uma decisão mais folgada. Sem culpa formada, Ricardo Pessoa foi mantido na prisão por um tempo considerável pelos critérios de qualquer nação que preza a liberdade individual e as garantias do cidadão, algo que a humanidade aprendeu a valorizar desde a Revolução Francesa. Embora seja sempre necessário celebrar todo passo em direção à liberdade, também é possível perguntar por que a decisão demorou tanto. O STF liberou o empresário quando ele já foi destituído de suas funções na direção da empresa, UTC. Esta, por sua vez, está proibida de fazer novos contratos com a Petrobras. Pessoa vai passar seus dias com uma tornozeleira eletrônica. Conseguiu deixar a prisão após resistir a diversas tentativas de uma delação premiada capaz de levar a denúncia para patamares mais elevados do governo e do PT.
Ao condenar as prisões provisórias prolongadas, método de trabalho prioritário das investigações conduzidas pelo juiz Sérgio Moro, Teori Zavascki fez um debate erudito e também permitiu-se uma ironia, dizendo em determinado momento que “certamente passou longe da cogitação” do magistrado usar as detenções para forçar delações.
Entrando na substância do debate, Teori foi aos fundamentos a decisão. Deixou claro que se a prisão preventiva pode ser uma forma de proteção da sociedade, não pode se transformar em método de investigação. Examinou cada uma das situações em que a legislação autoriza a prisão preventiva, medida que “desafia o direito a presunção da inocência,” devendo ser aplicada com muita cautela e prudência, pois “é uma exceção à regra de liberdade,” lembrou, mencionando um voto de Nelson Jobim, proferido em 2001. Zavascki passou em revista cada uma das condições que poderiam justificar uma detenção tão prolongada, sem julgamento, para demonstrar que elas não se sustentavam no caso de Ricardo Pessoa. A principal dessas condições, lembrou, é que “é indispensável ficar evidenciado que o encarceramento do acusado é o único modo efetivo de afastar o risco” de ameaça à ordem pública ou econômica, quando deixa de ser cabível “sua substituição por outra medida cautelar.”
Depois de reafirmar com a devida ênfase o direito de todos a usufruir de um regime de liberdade, o ministro lembra que a proteção das garantias individuais é mais do que uma opção — é uma obrigação do magistrado. Diz que a prisão preventiva talvez pudesse se justificar em novembro de 2014, quando o acusado foi encaminhado à cela da Polícia Federal em Curitiba, mas não tem relação com a situação de hoje, quando Ricardo Pessoa já foi afastado da direção de sua empresa, que por sua vez se encontra impedida de assinar novos contratos com a Petrobrás e a própria investigação, nas palavras do Ministério Público, se encontra “praticamente concluída.” São circunstâncias incompatíveis com a manutenção do acusado na cadeia. “Se essa substituição (no regime prisional) é possível, sua adoção passa a ser um dever do magistrado,” afirma Zavascki.
O esforço para garantir que uma investigação — da Lava Jato e todas as outras — seja feita de acordo com as instituições, com respeito à hierarquia e regras da Justiça, é mais importante do que parece. Em 1968, quando a ditadura militar estimulava campanhas periódicas contra a corrupção, chegou-se a criar uma Comissão Geral de Investigações, a CGI, que funcionava como um tribunal especial para colher depoimentos, encontrar testemunhos e provas que, dizia-se, não poderiam ser obtidas pelos caminhos convencionais — que favoreciam a impunidade. Conforme relata a historiadora Heloisa Starling, autora de uma obra essencial sobre o período (“Os senhores das Geraes”), para “agir contra a corrupção e dar conta da moralidade pública, os militares trabalharam tanto com a natureza ditatorial do regime como com a vantagem fornecida pela legislação punitiva. Deu em nada,” lembra ela. Em dez anos, os integrantes da comissão produziram cerca de 1.153 processos. Desse conjunto, mil foram arquivados; 58 transformados em propostas de confisco de bens por enriquecimento ilícito, e 41 foram alvo de decreto presidencial.”