Por Rosana Pinheiro-Machado, compartilhado de The Intercept Brasil –
NO BRASIL, há uma disputa desde a posse de Jair Bolsonaro sobre como classificar o novo governo, se podíamos chamar o presidente de fascista ou não. Para o historiador argentino Federico Finchelstein, autor de sete livros sobre o tema, em um ano e meio de governo, não há dúvidas de que Bolsonaro age como um fascista. “Bolsonaro é o líder populista que mais se aproximou do fascismo em toda a história”, me disse durante a conversa que tivemos durante quase uma hora na semana passada.
Finchelstein é hoje um dos maiores nomes do mundo no estudo do populismo e do fascismo. Em meio a maior crise sanitária do século, precisamos ouvi-lo para não normalizarmos o que está ocorrendo no Brasil e tomarmos posição. Finchelstein alerta: “Na história do nazismo, chamamos as pessoas que não se posicionaram contra o racismo de racistas moderadas. Existe tolerância e intolerância. As pessoas que não se posicionam em relação à discriminação de Bolsonaro a pessoas LGBTQ, elas estão com Bolsonaro. Podem achar que não, mas são intolerantes moderadas.”
Professor de História da New School for Social Research, em Nova York, Estados Unidos, Finchelstein nos ajuda nesta entrevista a compreender a ascensão de populistas autoritários, descreve como esses regimes prosperaram assentados sobre a mentira e ressalta a importância de uma ampla coalização, entre esquerda e direita, para pôr fim à destruição da democracia.
Parte das ideias de seu mais recente livro, “A Brief History of Fascist Lies” (Uma breve história das mentiras fascistas), está no ensaio “O líder fascista como encarnação da verdade”, feito especialmente para a Revista serrote, publicação do Instituto Moreira Salles, que traz na última edição ensaios sobre os impactos da pandemia (nesta quarta, às 17h, Finchelstein participa de uma live no canal do IMS).
Abaixo, os principais trechos da minha conversa com Finchelstein, onde ele dá uma aula sobre como reconhecer os traços fascistas em Bolsonaro e os riscos que seu governo traz para o Brasil.
‘O populismo é um pós-fascismo porque há avanços e retrocessos em termos de adesão à democracia, carregando elementos fascistas.’Rosana Pinheiro-Machado – Nos últimos anos, muitas pessoas no Brasil discutem se é possível chamar o momento atual da história política brasileira – e mundial – de fascismo. Na sua pesquisa, você classifica políticos autoritários como Trump e Bolsonaro de “populistas”, mas já os chamou de “fascistas” em outras ocasiões. Minha primeira pergunta é: podemos chamar Bolsonaro de fascista? Como você classifica esses políticos?
Federico Finchelstein – Na minha pesquisa, traço a história do populismo, especialmente após 1945, quando ele se torna um regime, uma espécie de reformulação pós-fascista do fascismo. Em outras palavras, o populismo é o momento em que ditadores e fascistas – como Juan Perón, na Argentina, ou Getulio Vargas, no Brasil – aderem à democracia. Portanto, vejo o populismo como um pós-fascismo, um fascismo em chave democrática. Ou seja, algo que às vezes é similar ao fascismo, às vezes não. Quando o populismo se torna um regime, como nos casos mais clássicos, de Hitler e Mussolini, os meios democráticos são usados para destruir a democracia desde dentro. No caso de Perón, é ditadura desde dentro para criar uma democracia eleitoral. Vargas era um ditador que aderiu à democracia, logo é o oposto do fascista. O populismo é um pós-fascismo porque há avanços e retrocessos em termos de adesão à democracia, carregando elementos fascistas.
Voltando à pergunta, deixe-me focar no que não é fascismo nesses líderes atuais. Isso é importante para entender o que exatamente Trump e Bolsonaro estão fazendo. Eles carregam elementos fascistas e autoritários. A democracia populista é uma versão autoritária da democracia, que também traz a ideia de que o líder personifica o povo. Ou seja, o líder, formal ou tecnicamente, é um representante do povo, mas ideologicamente e na prática costuma ser a pessoa à qual o poder foi delegado – em vez de representação, estamos falando de delegação –, com um entendimento autoritário e majoritarista: os apoiadores do presidente são o verdadeiro povo, ao passo que as pessoas contrárias são demonizadas como antipovo, antipátria – como dizia Perón – ou inimigas do povo.
Estabelece-se uma falta de legitimidade das minorias – geralmente, minorias políticas – e de quem discorda do líder. Mas, na prática, nada ou quase nada acontece com essas pessoas. Os níveis de violência na maioria dos populismos não são tão altos como os de uma ditadura. Na época de Perón, por exemplo, havia menos violência do que na ditadura militar argentina ou em governos democráticos posteriores. O populismo mescla essa intolerância majoritarista com meios democráticos – e diferentemente do fascismo, não os destrói.
O populismo é obcecado por eleições, acredita que elas conferem legitimidade. Ao mesmo tempo, no populismo também há um entendimento de que alguém é um líder não apenas porque foi eleito, mas porque personifica um país – sabe exatamente o que povo deseja, não precisa perguntar a ninguém. Existe esse autoritarismo, mas com eleições formais. Perón diria: “se você não gosta do que eu digo ou faço, pode me tirar”.
Essa foi a história do populismo até pouco tempo atrás. Ao se tornar um regime, o populismo deixa para trás três elementos centrais do fascismo. Por isso, falamos de populismo como fascismo em chave democrática, porque o fascismo não acontece em chave democrática.
O populismo abandona três elementos fundamentais do fascismo – e há ainda um quarto. Primeiro, não há fascismo sem ditador. Segundo, racismo e discriminação estão no centro da política – vemos isso em Trump e Bolsonaro. Não há fascismo sem racismo. É claro que houve racismo em regimes liberais, de extrema direita, de esquerda e comunistas, mas isso não era o principal vetor de suas políticas. Terceiro, temos o papel da violência, que é central para o fascismo – não apenas em suas práticas, mas em termos de uma moral e de valores estéticos. Essa glorificação da violência não está presente em outras tradições, sejam elas comunista, liberal ou conservadora.
Max Weber entende a violência como uma forma de legitimidade, no sentido de que o estado tem mais poder ao monopolizar a violência, mas a ideia é não usar esse recurso. Para o fascismo, em sentido totalmente oposto, o poder aumenta quando a violência é empregada reiteradamente. Em outras tradições, a violência é entendida como uma necessidade ou um meio, mas não uma fonte de regeneração. No comunismo, por exemplo, o terror vermelho era tido como uma necessidade, não era celebrado como uma fonte de renovação moral. Era algo que precisava ser empregado. Você encontra o mesmo no liberalismo. Nenhum liberal por excelência diria, por exemplo, que bombardear o Vietnã com napalm era uma fonte de regeneração moral para os Estados Unidos. Isso seria apresentando como algo necessário para implementar a democracia. Já no fascismo, a violência é uma fonte de regeneração ética e estética.
Portanto, o populismo abandonou esses três elementos: ditadura, violência e racismo. Perón diria que a violência e o fascismo assustam os eleitores. Em uma gíria argentina diz que isso “espanta votos”. O fascismo era visto pelo populismo como tóxico, como uma ideologia ou uma política no centro da política.
E qual seria o quarto elemento?
A mentira. Esse elemento é importante porque todas as ideologias mentem. Políticos mentem, mas não acreditam em suas mentiras – voltamos às ideias de meios e fins e da ética da responsabilidade. Eles são hipócritas, poderíamos dizer, mas isso não é necessariamente um problema. Há uma ética de responsabilidade weberiana. Todos mentem, mas os fascistas mentem de forma diferente, em maior quantidade. Há também uma diferença qualitativa, porque eles acreditam em suas mentiras ou creem que suas mentiras são elementos distintivos de um grupo maior. É uma propaganda técnica, extremamente demagógica, mas eles acreditam nas mentiras e estão dispostos a mentir e matar em seu nome. Isso é o fascismo.
O que acontece atualmente é que vemos líderes pós-fascistas eleitos como Bolsonaro e Trump que recorrem a esses quatro elementos que haviam sido deixados para trás pelo populismo ao longo de sua história. Já vimos isso em Vargas e Perón, mas também em Silvio Berlusconi, nos Kirchners, em Hugo Chávez. Ou seja, no populismo, da esquerda à direita, mesmo que fossem racistas, violentos ou mentissem em certos momentos, esses líderes não seriam tão protofascistas como as lideranças atuais.
‘Conservadores e setores como o Judiciário e as Forças Armadas não percebem que também serão engolidos pelo fascismo e jogam o jogo. Há um grande erro nisso.’
Então, Bolsonaro é um fascista? Para mim, ele gostaria de ser um fascista, ele é um fascista wannabe, mas ainda não chegou lá. Ele mente como um fascista – e eu escrevi isso durante sua campanha, em um artigo para a revista Foreign Policy. Como historiador do fascismo, analisando o jeito de Bolsonaro agir e fazer campanhas, ele parece saído de uma cartilha de Goebbels. Ele é como Goebbels, nesse sentido de glorificar a violência – com esse gesto horrível de apontar uma arma, usando a bandeira e a camiseta do Brasil, com a promessa de que a violência é uma fonte de regeneração para o país. Isso é tipicamente fascista.
Você tem a mentira – que se tornou ainda mais trágica durante a pandemia com o “é só uma gripezinha” –, o racismo e, por fim, a violência. Mas falta a ditadura. Nesse sentido, Bolsonaro foi muito explícito sobre querer estar nessa situação. Como historiador do fascismo e do populismo, diria que Bolsonaro é o líder populista que mais se aproximou do fascismo em toda a história. A questão é: isso é um processo? Não sabemos como isso acaba. Acredito que cabe aos brasileiros decidirem – na minha visão, interrompê-lo. Ele gostaria de ser um fascista? Sim. Os brasileiros permitirão que ele faça isso ao não defender a imprensa livre e a democracia? Isso também se aplica à direita e ao centro no Brasil. O antifascismo não era um movimento de esquerda, e sim uma aliança entre grupos conservadores, de centro e de esquerda contra o ataque à democracia que o fascismo representa.
Portanto, não é um momento de política normal no Brasil e nos Estados Unidos. É hora de defender a democracia. Se estamos falando de algo que se aproxima do fascismo, então não podemos falar nos termos da política habitual. Precisamos de algo mais do que isso para defender a democracia.
Muitas pessoas comparam Trump e Bolsonaro, mas negligenciam as diferenças entre eles e entre as democracias no Brasil e nos Estados Unidos. Você poderia falar sobre essas diferenças?
Acredito que ideologicamente eles são iguais: populistas que gostariam de se aproximar ao máximo do fascismo. Jason Stanley e eu abordamos isso em um artigo há algumas semanas, afirmando que há algo estranho em Bolsonaro. Ele faz o que Trump gostaria de fazer, mas não consegue. Bolsonaro escuta Trump, inclusive celebra essas falas sobre curas falsas e coisas do tipo. Mas Trump, em um país tão descentralizado, não tem condições de fazer o que Bolsonaro pode fazer. De certa forma, Trump funciona como o inconsciente de Bolsonaro, mas Bolsonaro diz o que vai entregar. Trump observa as ações de Bolsonaro e às vezes tenta se descolar dele Bolsonaro – que é muito extremo inclusive para Trump. Se Bolsonaro e Trump se aproximam do fascismo, certamente Bolsonaro está mais próximo.
O fascismo tenta ou quer destruir a democracia desde dentro, não apenas quando está no poder, mas também quando as pessoas são apáticas em relação a isso – quando dizem que as instituições não as defendem e acreditam que podem montar no cavalo do fascismo. Conservadores e setores como o Judiciário e as Forças Armadas não percebem que também serão engolidos pelo fascismo e jogam o jogo. Há um grande erro nisso. Em alguma medida, podemos dizer o mesmo em relação à esquerda. Na ascensão do nazismo, o Partido Comunista Alemão via que o problema não eram os nazistas, mas o que eles acreditavam ser o social-fascismo – que na verdade era a social-democracia – e não perceberam que o verdadeiro inimigo de todos era o fascismo.
‘A questão que fica é a necessidade de uma ampla coalizão contra quem ataca democracia.’
Em resumo, quando o Judiciário, as Forças Armadas e outros segmentos do estado não defenderam a lei, a democracia e a justiça, e acompanharam o líder; quando a imprensa foi atacada e suprimida, e não defendida; e quando as pessoas não votaram ou não participam o suficiente em protestos e outras formas de oposição aos ataques à democracia, o fascismo venceu. A questão é o que está acontecendo nos Estados Unidos e no Brasil e se há condições de Bolsonaro vencer. Há dimensões otimistas e pessimistas disso.
Até agora vimos comportamentos distintos entre os militares dos dois países. Nos EUA, diferentes membros das Forças Armadas se expressaram recentemente contra as tentativas de Trump de dominar os militares, digamos, como os nazistas fizeram. No Brasil, você não vê isso. Podemos dizer que se vê algo mais próximo do que aconteceu no caso nazista. Os chefes militares ou não estão fazendo nada, ou inclusive apoiam o regime. O Judiciário é outra questão em aberto. Mas, no Brasil, por exemplo, há muitos protestos, e a imprensa está, em grande medida, cumprindo o papel de apresentar fatos para que os cidadãos tomem suas decisões. É por isso que os fascistas odeiam a imprensa. Para eles, seria melhor que as pessoas acreditassem em mentiras e propaganda.
Vimos algo similar com pessoas em universidades apoiando medidas autoritárias. Essa ideia de que tudo é engolido pelo líder não pode implicar que havia atores passivos. As pessoas concordaram com aquilo, ou não fizeram nada a respeito. Essa é a lição que as pessoas que defendem a democracia deveriam aprender com as vitórias do fascismo. Mesmo quando chamo isso de antifascismo, a questão é defender democracia. A questão que fica é a necessidade de uma ampla coalizão contra quem ataca democracia. Eu sei que há um debate sobre isso no Brasil, e penso que se analisarmos a história do fascismo, esta não é a hora de pequenas ou grandes divergências entre aqueles que defendem a democracia no Brasil. Não é o momento de focar nos erros do passado.
Não sei o quão estranho isso vai soar no Brasil, mas vejo que as diferenças entre Fernando Henrique Cardoso e Lula não são tão grandes quanto as que existem entre eles e Bolsonaro. Eles foram presidentes democráticos. Bolsonaro foi eleito democraticamente, mas busca destruir a democracia. Por mais problemática que seja essa relação, há mais pontos em comum entre Dilma, Lula e Cardoso do que entre eles e Bolsonaro.
Você acredita que é importante construir uma coalizão de forças democráticas?
Este não é um momento para a política tradicional. A democracia está sob ataque. Se a democracia diz respeito a divergências e deliberações, aqui há alguém que quer destruí-la. Paradoxalmente, no entanto, precisamos de mais acordos.
Como você sabe, é muito difícil construir esse debate no Brasil hoje por conta de ressentimentos em relação ao passado – que são legítimos.
Há muito rancor, mas não é hora disso. O mesmo acontece aqui nos Estados Unidos. Antigos membros do governo Bush atualmente são contrários a Trump. Eles deveriam ser bem-vindos numa coalização democrática, o que é o caso para Joe Biden. Penso que ele seria apoiado por conservadores, pela esquerda e pela direita, porque não há outra opção.
Você poderia falar mais sobre o aspecto genocida de Bolsonaro? É um assunto que você tem debatido. É possível dizer que Bolsonaro é um político genocida? Essa é uma expressão muito popular no Brasil. Você acredita que é uma noção precisa para classificar Bolsonaro?
Depende de como entendemos o que é um genocida. Se formos técnicos – a destruição de um grupo étnico –, acredito que não. Se pensamos em genocida pelo que caracteriza um fascista – que mata pessoas porque acredita em suas próprias mentiras e propaganda –, então nos aproximamos de um entendimento sobre o que Bolsonaro está fazendo, da mesma forma que os nazistas decidiram exterminar os judeus porque eles seriam contagiosos e espalhariam doenças – o que era uma grande mentira. Mas os nazistas os colocaram em guetos e campos de concentração onde essas mentiras se tornaram realidade. Os judeus não recebiam comida, eram colocados em condições sanitárias horríveis e, consequentemente, acabavam sem higiene e doentes. Mas isso é uma das menores dimensões do fascismo: a tentativa de fazer com que mentiras se tornem realidade. Isso foi o que os nazistas fizeram, e é isso que Bolsonaro está fazendo.
Da mesma forma que há negação do Holocausto, Bolsonaro nega a ciência, nega a doença. Essa ideia de gripezinha, que não é preciso proteger as pessoas nem adotar medidas sanitárias tem uma implicação clara: você pode dizer que ele é um genocida. Mas só metaforicamente, no sentido de que muitos brasileiros serão mortos e particularmente os pobres. Houve muitos debates quando surgiu o conceito de genocídio. O argumento que acabou vencendo é o de destruição de um grupo étnico. Mas inicialmente havia argumentos de que se deveria incluir a possibilidade de uma classe ser objeto de um genocídio. E claro que isso não era uma opção, porque a União Soviética rejeitou. [Eles não queriam que classe fosse objeto do conceito.] Bolsonaro tenta destruir e matar os pobres, espalhando mentiras, mas isso pode ser enganoso. Bolsonaro se aproxima mais de Hitler. Entendo por que o termo genocida é tão poderoso nesse sentido, mas eu diria que ele é um estudante de Hitler e que sua violência se aproxima da violência fascista.
Quando se lê os principais pensadores radicais de esquerda desde os anos 1920, sabemos que uma forma de mobilizar as pessoas é através do caos. Você pensa que a pandemia é uma oportunidade para mobilizar as massas?
Bolsonaro tenta seguir o estilo fascista de política. Apresenta-se como um agente da lei e da ordem, enquanto provoca caos e desordem. Cria uma situação violenta para se mostrar como a pessoa capaz de resolver o problema. Ele tenta esse jogo. Ele representa a maioria das pessoas? Acredito que não. Essas mentiras são óbvias para todo mundo? Em outras palavras, o “rei Bolsonaro” estaria nu? Ele nega a doença, e as pessoas estão morrendo no Brasil em números elevados. Ele diz que as pessoas não precisam ser protegidas, promove curas fantasiosas e coisas do tipo. A questão então é: quando seus seguidores vão começar a enxergar que ele é um mentiroso?
Aconteceu o mesmo com os nazistas. Alguns dos mais fanáticos, quando suas casas eram bombardeadas, começaram a parar de acreditar que Hitler era tão bom e que eles venceriam a guerra em qualquer cenário. Quando casas são bombardeadas ou se morre de uma doença, mesmo os mais fanáticos se dão conta das mentiras. Mas é claro que pode ser tarde demais – já é tarde demais. Muitos brasileiros morreram por causa de Bolsonaro.
Qual é o limite desses regimes? Quando, como e por que eles perdem sustentação? É possível entender como eles conseguem mobilizar pessoas, por alguns anos, usando o caos e mentiras, mas imagino que isso não seja sustentável a longo prazo.
Não é. O fascismo é uma estratégia contraproducente, que em algum momento termina, mas muitas pessoas morrem por conta disso. Mas não estamos falando disso no Brasil, onde ainda há democracia e eleições. Isso poderia durar mais se fosse uma ditadura. E aí você entende por que Bolsonaro pode ser tão atraente num sentido ditatorial. “Se você me permitir fazer o que eu quero, posso fazer um golpe de estado ou coisa do tipo.” Isso é extremamente problemático. Mas não estamos numa situação fascista no Brasil, felizmente. A história de quando o fascismo não ganhou se dá quando o povo e as instituições o impedem. Um bom exemplo disso é que a nossa conversa será publicada. Numa ditadura isso não seria permitido por quem está no poder e por seus atos mortíferos.
Tivemos ditadores em nossos países, muitos de nós sabemos o que é isso. No caso argentino, a ditadura esteve próxima do fascismo – escrevi um livro sobre as origens ideológicas da “guerra suja”. No caso do Brasil, podemos especular o que aconteceria se Bolsonaro estabelecesse uma ditadura. Acredito que seria pior, mais radical e próxima do fascismo. Isso é extremamente assustador. A democracia precisa ser defendida, e não estamos lá ainda. Com sorte, não chegaremos lá e isso será impedido – deve ser impedido.
Por que as pessoas acreditam em mentiras?
Penso que se trata de uma combinação de muitas coisas. No caso de Bolsonaro, como acontece no campo do fascismo, há elementos religiosos que entram na política. Em países como o Brasil e os Estados Unidos, cresceu o espaço da religião na política. As pessoas necessitam acreditar em suas vísceras mais do que em programas ou propostas. A política se torna uma questão de fé, em vez de uma questão de reflexão. Esses líderes oferecem mais salvação do que empregos ou direitos, por exemplo. É um tipo de política muito particular, que funciona como um culto, no qual a palavra do líder é a verdade. Quando falamos em mentiras, nesse caso, elas são entendidas como verdade, mas não como uma verdade empírica. É uma verdade da religião, da fé.
Isso funciona muito bem na vida privada de muitas pessoas, mas quando se traduz na política, os portões do autoritarismo se abrem. Porque se você não é um membro da religião ou não concorda com ela, você é considerado um infiel, um traidor. Todas essas categorias que não são gratas à política democrática. Saímos da divergência para a inquisição. Se você concorda com a palavra do líder, você está certo e está com a verdade. Isso acontece em muitas situações autoritárias.
‘Da mesma forma que há negação do Holocausto, Bolsonaro nega a ciência, nega a doença.’
É claro que parte da resposta diz respeito ao clássico estudo de Adorno e seus colaboradores sobre a personalidade autoritária. Sabemos que há uma necessidade em muitas pessoas de um líder forte. Elas querem um pai ou uma mãe, e não um representante. Desejam ser mandadas, não querem participar da democracia. Isso é contra a democracia, não é uma mentalidade democrática. Essa necessidade de ser mandado e acreditar em algo transcendental, da esfera da religião, se desloca para a política. Acredito que isso explica muito o apelo de pessoas como Bolsonaro, somado a dimensões de crises representativas e econômicas, entre tantas outras, que no caso de Trump e Bolsonaro criam a tempestade perfeita para essas ideias. E certamente há problemas no sistema político do Brasil que permitem que esse outsider se apresente como uma espécie de salvador.
Minha última pergunta é sobre como podemos combater as fake news. Qual o papel da mídia tradicional? Esses veículos não dizem “Bolsonaro mentiu”, não abordam a questão dessa forma. E qual a responsabilidade de plataformas como Facebook, Instagram e Twitter?
Há uma nova paisagem midiática que permite a esses líderes superar ou contornar a mídia tradicional, enviando mensagens diretamente às pessoas, sem serem questionados – o que é propaganda –, sem as perguntas que um jornalista faria: “Como você comprova isso?”, por exemplo. Essas plataformas integram a mídia, queiram ou não. Elas têm ou deveriam ter uma responsabilidade, como os veículos tradicionais, de distinguir mentiras de dados. Em relação aos veículos da imprensa tradicional, levou tempo para perceberem – talvez tarde demais, mas nunca é tarde. Volta e meia você lê no New York Times: “Trump diz: ‘Isso é uma cura’; especialistas discordam”. Mas não há um ponto intermediário nesse debate, as mentiras deveriam ser chamadas de mentiras.
Há essa reação padronizada em que se apresenta a visão de Trump ou Bolsonaro como uma perspectiva que se opõe a outra, a da ciência. Mas esse ponto intermediário de isenção não existe. O mesmo acontece com o racismo: há racismo e antirracismo. Na história do nazismo, chamamos as pessoas que não se posicionaram contra o racismo de racistas moderadas. Existe tolerância e intolerância. As pessoas que não se posicionam em relação à discriminação de Bolsonaro a pessoas LGBTQ, elas estão com Bolsonaro. Podem achar que não, mas são intolerantes moderadas.
A mídia precisa refletir sobre isso. Nesses extremos, não existe um ponto intermediário. Quando estamos falando de mentiras racistas ou intolerantes, elas deveriam ser noticiadas como mentiras, não há duas posições a serem reportadas. Mas eles estão melhorando. Por exemplo, a publicação da lista de mentiras de Trump. Acredito que é um debate necessário, e teremos tempo para discutir os erros da mídia tradicional que, em alguma medida, permitiram o fascínio em torno desses líderes, com uma cobertura exagerada e sem crítica sobre o que eles falam. Mas agora não é necessariamente o momento. Se eles estão se dando conta, é muito melhor. Nunca é tarde demais.
Tradução: Ricardo Romanoff
Correção, 7 de junho, 13h51
Uma versão anterior da entrevista informava que o ensaio “O líder fascista como encarnação da verdade” era um trecho da mais recente obra do historiador argentino. Na verdade, o texto foi escrito por Federico Finchelstein especialmente para a Revista serrote, publicação do Instituto Moreira Salles. A informação foi corrigida.