Envelhecimento, precariedade e Covid-19: em Copacabana, crônica de uma catástrofe anunciada

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Por Bruno Meyerfeld, compartilhado de Carta Maior – 

Todos os ingredientes foram reunidos para tornar o famoso bairro do Rio em terreno fértil para a pandemia. A imperícia do governo Bolsonaro acelerou ainda mais as coisas. E as ruas outrora glamorosas se transformaram no epicentro da crise sanitária. Como uma parábola da situação do Brasil

(VINCENT CATALA/FOTOGRAFIA PARA A REVISTA DO LE MONDE)
Créditos da foto: (VINCENT CATALA/FOTOGRAFIA PARA A REVISTA DO LE MONDE)

Em setembro de 2019, instalei-me em Copacabana para lá viver. Não esperava, em apenas alguns meses, ver o bairro morrer. Morar nesse lugar lendário do Rio de Janeiro, para mim, franco-brasileiro, foi antes de tudo fruto de um acaso. A árdua busca por um apartamento pela cidade maravilhosa me levou a este pequeno quarto e sala da rua Santa Clara. A gente se sentia bem, perto do posto 3 da praia e muito perto do bucólico Bairro Peixoto, onde é tão bom sonhar acordado à sombra de amendoeiras e flamboaiãs.

Mas Copacabana, esse “arco do amor”, querido por Vinicius de Moraes, doce pai da bossa nova, permanecia e permanece para mim um sonho, um objeto de desejo. Porém, neste mês de junho, quando a pandemia causada pelo coronavírus varre o Brasil, o poeta reconheceria sua amada praia? Com quase 200 vítimas e 1.700 casos registrados oficialmente, Copacabana é hoje o bairro do Rio mais afetado pela epidemia, com as maiores taxas de morte e contaminação da cidade.




A praia, irreconhecível

Depois de São Paulo, seu eterno rival, o Rio se tornou o segundo epicentro do Covid-19 no Brasil. Quase 5.000 mortes e 40.000 casos positivos foram aí registrados (para 40.000 mortos e 800.000 infectados no Brasil, que se tornou um dos principais centros da pandemia no mundo). Diante da tragédia em andamento, as autoridades locais reagiram tardiamente e, sobretudo, parcialmente, fechando locais culturais, igrejas, jardins e comércios não essenciais … mas recusando-se a tornar obrigatório o confinamento da população.

Então aqui jaz Copacabana. Bem-vindo a “Copacorona”. Vamos começar com o óbvio: a praia. Durante nossa última visita, no final de maio, estava irreconhecível. A prefeitura proibiu por semanas o acesso à água e à areia, quiosques e lojas foram fechados, estacionamento proibido e vendedores ambulantes expulsos. Sob o lindo sol, a “princesa do mar” parece um deserto. “Até um cemitério!”, exclama Alonso Igual, 62 anos, um velho lobo do mar que mantém para turistas há mais de dez anos um castelo esculpido em areia à beira-mar.

Tony, em 29 de maio, se instala todos os dias em horas quentes em “seu” banco de praia. Em Copacabana, um em cada três habitantes tem mais de 60 anos. VINCENT CATALA/FOTOGRAFIA PARA A REVISTA DO LE MONDE

Boné desbotado, barba cor mostarda, pele bronzeada pelo sol, Alonso em silêncio dá uma baforada no Marlboro, com os olhos perdidos na calçada de mosaicos pavimentada em preto e branco, em forma de onda. No passado (apenas três meses atrás), todo o Rio desfilava [pela praia] devagar, imperialmente, de sunga vermelha. Agora, inquietos, os cariocas caminham rapidamente com bocas e narinas mascaradas. “É triste ver isso. Ninguém ousa parar no meu castelo. Não ganho nenhum real por dia! Todo mundo tem medo …” ruminou Alonso antes de cuspir no passeio.

A pandemia surpreendeu o Rio em pleno inverno: o carioca sente frio, fecha portas e janelas (faz 20 graus). Com este vento frio (relativo), o silêncio relaxa, estica seus braços e pernas pesadas nas 78 ruas, 5 avenidas, 6 travessas e 3 ladeiras de Copacabana. Não há mais conversas animadas entre vizinhos. Chega de rir. Não há mais música saindo dos bares. Os principais eixos de circulação se esvaziaram. Nós só saímos para fazer compras no supermercado. O asfalto pertence a moradores de rua solitários, vestidos com cobertores e sacolas plásticas. O dia é assombrado por gangues de pombos e a noite pela máfia das ratazanas, esses terríveis ratos cariocas, do tamanho de pequenos felinos.

Copacabana Palace fechado

O Copacabanense (ou Copacabanais), estudei-o por meses: é um mamífero ultrassocial de sangue quente que vive nu durante três quartos do ano. Agora ele é forçado a colocar uma máscara protetora e manter distância de seu próximo. “As pessoas mudaram, não é mais o mesmo bairro”, diz Sandro Aurélio, farmacêutico de 29 anos que faz entregas ao longo de toda a orla. “Antes, conversávamos muito com os clientes. Alguns até me abraçavam! Hoje, eles mal abrem a porta ou se atrevem a digitar o código do cartão do banco … e só falam sobre o coronavírus. ”

Em “Copacorona”, a rua é metálica: caminha-se entre cortinas de ferro. Muitos lugares, abertos 24 horas por dia por décadas, as baixaram. É o caso do Pavão Azul, famoso “pé sujo”, inaugurado em 1957, onde até recentemente era possível beber entre amigos sob luzes de neon engorduradas cervejas geladas, cortadas com milho ruim. O mesmo destino atingiu o libanês Baalbeck e suas esfihas de espinafre, a portuguesa Adega Perola e suas sardinhas assadas, La Trattoria e seu risoto de trufas, o Galeto Sat’s e seus corações de galinha para mordiscar ou ainda o Cervantes e seu incomparável sanduíche de abacaxi, queijo e peru.

Mas o mais famoso dos recintos é obviamente o Copacabana Palace, símbolo da praia e farol da “Copa”. Neste mês de junho, o suntuoso hotel de cor creme me dá a impressão de uma grande pannacotta congelada. Inaugurado em 1923, fechou portas e piscinas pela primeira vez em um século. Os 550 funcionários foram mandados para casa e os 225 quartos estão vazios (com exceção de um, ocupado pelo cantor Jorge Ben Jor, que lá mora o ano inteiro). Na entrada, uma dúzia de bandeiras de países de todo o mundo tremulam ao vento. Só por formalidade. Tudo correu tão rápido, ninguém teve tempo de se preparar.

O Copacabana Palace (em primeiro plano), fechado desde o início da pandemia, no Rio de Janeiro, em 31 de maio. VINCENT CATALA/FOTOGRAFIA PARA A REVISTA DO LE MONDE

Tomemos a pequena rua arborizada Domingos Ferreira, paralela à praia: na fachada preta adornada com ondulações amarelas do teatro Sesc Pompeia ainda estão colados os pôsteres dos shows do mês de março. Igrejas, templos e sinagogas desistiram de seu programa semanal: o culto acontece agora online no YouTube. No extremo sul da praia, o forte militar de Copacabana, convertido em museu, reencontrou sua vocação de bunker, seus velhos canhões apontados em vão para o Pão de Açúcar, inúteis na batalha travada em terra firme.

Uma geração que desaparece

Os porteiros de prédios (invariavelmente da região Nordeste) atuam como soldados. “Estamos na linha de frente”, diz Carley, que desembarcou há duas décadas de Hidrolândia, muito, muito longe no Ceará. “No meu prédio, todos se confinam, há pessoas que não vejo há meses. Temos duas senhoras, de 94 e 99 anos … Para elas, faço de tudo: compras, saques em dinheiro, organizo consultas médicas. Elas se sentem muito sozinhas, conversamos frequentemente ao telefone ou pela janela, para passar o tempo. Eu me sinto muito responsável. É como se eu fosse da família delas.” Carley quer nos tranquilizar: “Até agora, não tivemos nenhuma morte.”

No bairro, no entanto, há uma geração que desaparece, levada pelo Covid-19. Há João Lourenço dos Santos, conhecido como “Maguila”, professor muito querido de futevolei de praia, que morreu aos 70 anos, mas também Luiz Alfredo Garcia-Roza, famoso autor policial, inventor do romance noir de Copacabana, que partiu aos 83 anos. Nos hospitais do bairro também morreram várias glórias cariocas, como o pai da arte cinética, Abraham Palatnik, 92 anos, ou Lourdes Catão, 93 anos, apelidada de “Locomotiva”, antiga glória da beleza glamourosa das décadas de 1950 e 1960, no auge do Rio e de Copabana.

Conheço alguém que viveu essa época de ouro: minha tia Antonieta, que na família é chamada carinhosamente de “Tatá”. Era um verdadeira copacabanense da gema, independente, chique e orgulhosa. Tatá fumava cigarros americanos, servia o almoço em porcelana francesa e se exercitava na praia, treinada por uma professora alemã. Ela frequentava o cinema Roxy, adornado por uma bela colunata vermelha, na avenida Nossa Senhora [de Copacabana], fazia suas compras na luxuosa galeria Menescal (Art Deco) e jantava crustáceos à beira-mar no restaurante Fiorentina. Em seu prédio, o Edifício Bagdá, na rua Edmundo-Lins 28, a entrada era decorada com o esplendor de grandes tapetes vermelhos, reproduzindo o luxo fantasmático de palácios orientais.

Sinônimo de luxo, glamour e modernidade

Em seu auge, Copacabana era sinônimo de luxo, glamour, modernidade e dava o tom a todo o país. Algumas décadas antes, porém, era uma praia simples. Um sertão distante e exótico, separado do Rio de Janeiro por picos de granito preto cobertos de florestas virgens. O local era habitado por um punhado de pescadores e marinheiros: peruleiros, retornando do Peru e da Bolívia, que construíram ali uma pequena capela onde reina a imagem de uma virgem, celebrada nas margens do lago Titicaca, do outro lado do continente: Nossa Senhora de Copacabana. Confere seu nome a esta baia incógnita.

Desde o início, a futura “Copacorona” é considerada o suprassumo da higiene, mas também da modernidade e da elegância. (…) Desde a década de 1930, Copacabana é a “princesinha do mar”, uma marca que se destaca e atrai os mais importantes.

Mas não permanecerá por muito tempo. No final do século XIX, o Brasil dá um salto em direção à modernidade. A escravidão é abolida, a República proclamada. A capital, Rio de Janeiro, sente-se apertada na Baía de Guanabara. Exige uma nova fronteira. Seu olhar se volta para o sul, para o oceano e as praias do Atlântico. Já em 1892, a via é aberta, com a inauguração de um primeiro túnel (hoje apelidado “túnel velho”), perfurado sob a colina da Saudade. Um Novo Rio começa.

Enche-se rapidamente: em 1920, o distrito contava 17.000 almas. Na virada do século, o banho do mar se torna moda, supostamente exterminando vírus de todos os tipos. Formadas por poderosas correntes oceânicas, as águas frescas de Copacabana são conhecidas por sua limpeza e atraem toda uma pequena fauna de jovens médicos, jornalistas, advogados, industriais, que desejam água salgada e acima de tudo luz. Essa nova aristocracia, a elite praiana, constrói chalés, pequenas casas e bangalôs, depois pequenos palácios excêntricos no modelo daqueles de Biarritz ou Long Island e, finalmente, esplêndidos edifícios Art Deco, com estacionamento incluído para estacionar o Porsche e o Cadillac.

Um edifício com entrada Art Déco, típico da época em que o Rio ainda era a capital do Brasil (até 1960), rue Duvivier, no coração de Copacabana. VINCENT CATALA/FOTOGRAFIA PARA A REVISTA DO LE MONDE

Desde o início, a futura “Copacorona” é considerada o suprassumo da higiene, mas também da modernidade e da elegância. Você chega de bonde, carro ou até em aeronaves, que no início do século aterrisam na areia fina. As ruas são pavimentadas e iluminadas pela fada da eletricidade. O primeiro cinema do Brasil foi lá inaugurado em 1909, depois o primeiro fast food, o primeiro shopping center, os primeiros arranha-céus. Por lá, o brasileiro prova seus primeiros sorvetes e engole seus primeiros cachorros-quentes. Desde a década de 1930, Copacabana é a “princesinha do mar”, uma marca que se destaca e atrai os mais importantes.

O culto ao corpo musculoso, bronzeado e nu

No Copacabana Palace, o mármore é de Carrara, o cristal da Boêmia e os móveis são franceses, é claro. Todas as estrelas lá desfilam, como em um filme: Edith Piaf, Ray Charles, Nat King Cole e Marlene Dietrich cantam no Golden Room, onde Orson Welles bebe até não mais poder e Ginger Rogers dá aulas de dança. Nos quartos, Joséphine Baker e Le Corbusier vivem um breve caso, Sartre e Beauvoir experimentam um luxo bem burguês. À beira da piscina, Mick Jagger e Janis Joplin fazem discretas temporadas (esta última será expulsa manu militari da piscina por ousar nadar sem nenhuma roupa).

O bairro adormece durante o dia na praia e acorda ao anoitecer. Aqui playboys, jet-setters e outras socialites vivem o “grande mundo” (le grand monde). Encontra-se cinemas, teatros, clubes de música e, especialmente, boates heterossexuais e gays, onde os jovens ficam bêbados, dançam e cantam em voz alta sob os efeitos do lança perfume, esse spray com odor à base de éter e clorofórmio que se inala profundamente por seus efeitos eufóricos. “Copa” é a “capital proibida do amor”, segundo uma canção de sucesso da década de 1950, local de transgressão, onde tudo é exposto e reinventado, começando pelo corpo: deve ser musculoso, bronzeado e especialmente nu.

Chega de tecido de algodão: o lugar agora é do traje de banho sintético, que adere à sua pele e gradualmente revela braços, pernas, ombros, depois seios e, finalmente, nádegas. Em Copacabana, deitado nesta pequena baía de luz, o brasileiro é um narciso feliz. Ele se contempla e se ama. Torna-se um herói do cinema de ação, um super-brasileiro, “super-homem”, “super bacana”, “superflit”, “superist”, como Caetano Veloso cantou em seu Superbacana de 1968. Em Copacabana, o Brasil é perfeito, confortável em suas contradições: ao mesmo tempo natural e moderno, aristocrata e boêmio, frenético e preguiçoso, nu e elegante, acabado e infinito. Pela primeira vez, é universal. Obviamente, isso não vai durar.

Uma densidade de mais de 20.000 pessoas por m2

Limitado pelas montanhas ao norte e pelo oceano ao sul, o pequeno bairro não pode se estender além de um pequeno quilômetro de largura por quatro de comprimento. Resultado: Copacabana está rapidamente saturado. Entre 1920 e 1970, a população aumenta 1.500% (hoje ultrapassa 160.000 almas)! Em Copacabana, conta-se mais de 20.000 seres humanos por quilômetro quadrado: quatro vezes a densidade média do Rio e quase cinquenta vezes a de Brasília, que em 1960 ganhou o título de capital da “cidade maravilhosa”.

Compensa-se a falta de espaço pela altura e a falta de tempo pela feiura. Desde os anos 1950, um frenesi de construção toma conta de Copacabana, que abandonou qualquer estilo arquitetônico. Os últimos chalés são derrubados ou abandonados. Abrem caminho para tristes blocos de cimento e gaiolas de coelho. Um edifício simboliza a transformação do bairro, o duzentão, na rua Barata-Ribeiro 200: uma baleia de concreto cor salmão degradada, superlotada e em ruínas, com 507 apartamentos (45 por andar).

Jane di Castro, 73 anos, é uma das grandes figuras do bairro. “Eu conheci o tempo em que as ruas estavam cheias dia e noite: ninguém queria voltar para casa!, lembra-se essa travesti de cabelos loiros, cantora profissional (e cabeleireira em seu tempo livre). Mas o Drink, a “boate” onde ela cantou tantas vezes, fechou, como tantos outros clubes famosos, como as butiques de luxo, como quase todos os cinemas e teatros, substituídos por igrejas evangélicas (agora tão numerosas quanto as católicas).

Jane di Castro, estrela da cena transexual do Rio de Janeiro, sempre viveu no bairro. VINCENT CATALA/FOTOGRAFIA PARA A REVISTA DO LE MONDE

A água do mar, antes tão pura, está contaminada pelos esgotos. As avenidas semelhantes a rodovias estão poluídas pela passagem diária de dezenas de milhares de carros. “O glamour se foi”, suspira Jane di Castro, que acusa os recém-chegados. “A partir das décadas de 1980 e 1990, com a chegada do metrô, pessoas dos bairros populares, menos educadas, começaram a desembarcar em massa aqui e se instalar. As pessoas elegantes e chiques se foram, agora, na orla, há apenas barrigudos em calção de banho!”, diz ela assumindo desprezo de classe.

Os boêmios e os mais ricos fugiram

A aristocracia da praia abandonou o navio na primeira viagem. O último grupo de socialites e playboys vive recluso no edifício Chopin da Avenida Atlântica, colado ao Copacabana Palace e convertido em verdadeira fortaleza de luxo. Lá, após longas e caóticas negociações pelo WhatsApp, finalmente conseguimos um encontro com a muito excêntrica Narcisa Tamborindeguy. Aos 53 anos, essa grande mundana, herdeira de uma rica família basco-portuguesa, recebe o visitante em sua sala de estar, com vista para o oceano, cheia de espelhos e pinturas à sua imagem, que ela percorre nervosamente de salto alto e vestido vermelho forte, digno de uma imperatriz de túnica.

“Copacabana não é mais o centro do mundo. Tornou-se uma espécie de subúrbio em uma cidade da província”. Ana de Hollanda, ex-Ministra da Cultura

A título de entrevista, recebemos quatro folhas A4 brancas, com respostas para nossas perguntas pré-escritas em rosa fluorescente. Extraímos uma frase vagamente melancólica: “Este bairro, para mim, continua sendo a “princesa do mar”, faz parte da minha vida, nasci aqui, sou a ele apegada, só o deixo para sair do Brasil “.

Narcisa deve se sentir bem sozinha. A Boemia fugiu para o norte, para Laranjeiras e Santa Teresa, o mais ricos migraram para o oeste, em direção a Ipanema, Leblon e Barra da Tijuca. Com exceção de alguns nostálgicos, há muito poucos no bairro que ainda afirmam em alto e bom som serem copacabanenses. Uma das raras exceções é Ana de Hollanda, ex-ministra da Cultura, irmã do cantor Chico Buarque. “Copacabana não é mais o centro do mundo. Tornou-se uma espécie de subúrbio em uma cidade da província. Aqui, pelo menos, as pessoas não são afetadas, a falta de elegância é assumida. Então, sim, existem buracos na calçada, um em cada dois postes de iluminação pública funciona … mas eu gosto dessa decadência!”, conta ela, em sua pequena sala de estar, onde se destaca, pendurado na parede cor de areia, um poema autografado, escrito à mão pelo poeta Vinicius de Moraes, amante de “Copa “.

Má reputação

Mas é um fato: hoje o distrito tem má reputação. A decadência do Rio acolhe agora os mais marginalizados da sociedade, as garotas de programa (“prostitutas”) e os sem-teto às centenas. Em Copacabana, os acertos de contas e os ataques à mão armada são regulares. Ocorrem às vezes em pleno dia e até na praia. À noite, as ruas vazias e úmidas do “negro Rio”, não cheiram mais a lança perfume, mas a emanações de água sanitária proveniente do crack. Durante a primeira noite em meu apartamento de Santa Clara, tiros foram disparados no final da rua: ainda me lembro do som das detonações, ecoando pelas fachadas; da imagem dos vizinhos do lado oposto fugindo para a área de serviço; depois daquele silêncio angustiado de que se revestira o asfalto … a cena marcou.

Acima de tudo, a “princesinha” tornou-se uma velha rainha enrugada. O bairro é hoje o mais antigo do Rio e do Brasil: um em cada três habitantes tem mais de 60 anos. Na Avenida Atlântica, além dos turistas, passam em grande número copacabanenses com cabelos brancos, bengalas ou andadores, ou mesmo em cadeiras de rodas. Para eles, tudo está previsto: academias, filas de supermercado e delegacias são reservadas aos idosos. “Não tenho nenhum amigo da minha idade por aqui. Quando saímos à noite, quase nunca é em Copacabana”, disse Yannick, 30, um jovem morador do bairro.

“Copacabana é o bairro mais antigo, mais denso, mais sujo e precário do Rio. Acrescente a isso que ele continua sendo o mais turístico, e você tem o coquetel perfeito para criar um grande centro de contágio”. Hugo Crasso Oliveira de Nascimento, médico

Os velhos arranha-céus da juventude de ouro tornaram-se casas verticais para idosos (Ehpad: Établissement d’hébergement pour personnes âgées; no original), cheios de velhos senhores e senhoras nostálgicas. Assim, a divertida Dona Augusta, 94 anos, confinada em casa, feliz por ter visita, e que recebe em pé, com um sorriso (mas sem máscara) em seu pequeno apartamento com carpete [cor] sal e pimenta. “Eu vivi a Copacabana da época de Bardot!” afirma, com os olhos brilhando, antes de fulminar: “Está tudo acabado agora, Copacabana, é este bairro vulgar, pobre e violento. Fico com medo quando saio, não tenho mais vontade de ir às ruas. Além disso, nem me lembro da última vez que fui à praia.”

Dona Augusta, 94 anos, que mora sozinha em seu pequeno apartamento na Rua Sá Ferreira, no Rio de Janeiro, no dia 26 de maio. VINCENT CATALA/FOTOGRAFIA PARA A REVISTA DO LE MONDE

O “super brasileiro” de Copacabana explodiu em pleno voo, e a pandemia acabou com um bairro moribundo. “É completamente lógico e natural que esse bairro tenha se tornado um dos epicentros do coronavírus no Brasil”, explica Hugo Crasso Oliveira de Nascimento, 31 anos, médico de família, grandes bigodes pretos escondidos sob sua máscara cirúrgica. “Copacabana é o bairro mais antigo, mais denso, mais sujo e precário do Rio e, portanto, necessariamente o mais vulnerável”, resume. “Acrescente a isso que ele continua sendo o mais turístico e, portanto, o mais exposto, e você tem o coquetel perfeito para criar um grande centro de contágio”.

Crises econômicas recorrentes

Copacabana tem seis favelas, onde vivem pelo menos 10% da população. “O coronavírus não melhorou a divisão social, pelo contrário!”, lamenta Vânia Ribeiro, dinâmica vice-presidente da associação de moradores da favela Tabajaras, que se reúne para conversar tranquilamente no telhado de um shopping center, cujas lojas estão quase todas fechadas. Em sua comunidade, “muitos trabalham no setor informal, como vendedores ambulantes na praia, por exemplo. Hoje ela está fechada e eles não têm salário, nada para comprar comida e nenhuma ajuda da prefeitura”, disse ela.

Vânia já contou 9 mortes por Covid-19 e centenas de casos suspeitos na favela, construída na encosta do morro de São João, pendurada acima de um dos melhores hospitais do país, o Copa Star. Ela pode enviar os pacientes do Covid-19 para lá? “Claro que não ! É um hospital particular, que apenas acolhe a elite, totalmente inacessível para nós,” responde Vânia. “Ele se recusa a nos receber, mesmo para uma consulta de rotina. Apesar da pandemia e do fato de os hospitais públicos estarem sobrecarregados, é impossível fazê-lo mudar de idéia.”

A decadência de Copacabana é, em última análise, a do Rio. “Mas, para nós, os copacabanenses, o declínio foi mais acentuado, porque partimos de muito, muito alto”, observa Katia Vieira Amorim, 65 anos, cuja loja atemporal, Perucas Lady, na Barata Ribeiro, oferece há cinco décadas perucas artesanais em um cenário de teatro. Ela também experimentou sua queda. “No passado, tínhamos 11 lojas em todo o Rio, que tivemos que fechar uma por uma … Também tínhamos uma bela fachada toda em bronze. Fomos obrigados a desmontar. (…) Ladrões vinham à noite para cortar e revender”, continua Katia.

Crises econômicas recorrentes, incluindo a que está ocorrendo desde 2014, arruinaram a maior parte das lojas históricas do bairro. Nem o crescimento da brilhante década de Lula, nem as Olimpíadas de Verão organizadas em 2016 ajudaram a reverter a tendência e revitalizar esse bairro já quase sem fôlego, abandonado ao seu destino e aos turistas.

Um score plebiscitário para Jair Bolsonaro

Katia dirige sua cólera aos sucessivos governadores do Rio de Janeiro, quase todos com passagens pela prisão por casos de apropriação indébita de fundos públicos. “Esses políticos corruptos e incompetentes deixaram esse bairro maravilhoso e animado deteriorar-se ano após ano!”.

Vista do alto do anoitecer na Avenida Atlântica, com os motivos míticos de sua calçada, Rio de Janeiro, em 27 de maio. VINCENT CATALA/FOTOGRAFIA PARA A REVISTA DO LE MONDE

É esse sentimento de rebaixamento social, esse orgulho ferido, que levou os copacabanenses a se jogarem nos braços de Jair Bolsonaro? Nas eleições presidenciais de 2018, ele obteve a maioria dos votos já no primeiro turno e um score plebiscitário de 61% no segundo. A Avenida Atlântica, antes estimada pelos intelectuais de esquerda, tornou-se o ponto de encontro dos manifestantes de extrema direita, exigindo o fim das medidas de contenção e o retorno da ditadura militar. “Não somos mais muito bem vistos na área”, reconhece Mathias Bidart, argentino simpático e afável, guitarrista no bar Bip-Bip, último bastião de esquerda da praia, decorado com bandeiras do Movimento dos [Trabalhadores] Sem Terra e do Partido dos Trabalhadores. “Em novembro de 2019, quando comemoramos a libertação de Lula da prisão, os vizinhos jogaram ovos contra nós”, lembra ele.

Empobrecimento, explosão da desigualdade e violência, evangelização, desculturação, envelhecimento e agora a extrema direita e o coronavírus … Copacabana acompanhou e até antecipou, todas as mudanças profundas no Brasil. Poderá reinventar seu futuro ou tocou sua última canção? Apenas algumas semanas antes da chegada do Covid-19, deixei Copacabana. Nem enojado nem cansado. Talvez um pouco decepcionado. Antes de sair do bairro, apenas para “matar a saudade”, como dizemos no Brasil, voltei à rua Edmundo-Lins 28, uma última vez. “Tatá” também se foi há muito tempo, em 2008, na idade canônica de 96 anos. Na entrada do Edifício Bagdá, os grandes tapetes vermelhos foram removidos e instalada uma feia grade de metal. O grande espetáculo de Copacabana parece realmente ter chegado ao fim.

*Publicado originalmente em ‘Le Monde

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