Por Márcio Augusto Paixão, publicado em Justificando –
Sobre o atual momento do Supremo Tribunal Federal, uma das hipóteses para avaliação é pela promoção de um corte, representado por uma linha a dividir duas fases que parecem claras: a era Peluso e a era Barroso. Juiz de carreira e discreto, Cezar Peluso assumiu a cadeira no STF em 2003, conjuntamente com Ayres Britto e Joaquim Barbosa. Com votos e decisões muito pouco estudadas pelo meio acadêmico, meu acompanhamento dos julgados da Corte me permitiu constatar, nele, uma grande capacidade de influenciar seus pares em prol das interpretações que propunha – em nível comparável, talvez, ao da capacidade de convencimento possuídas por Celso de Mello e Sepúlveda Pertence.
Em minha opinião, a era Peluso, por relevante influência desse ministro, tem duas características, dentre outras: (i) os significativos avanços na jurisprudência em matéria penal e processual penal, em prol do devido processo legal e da proteção de demais direitos fundamentais; (ii) o autocontrole no ativismo da Corte, com um grande respeito à autocontenção.
Sobre o primeiro ponto, citando apenas alguns casos, foi durante a dita era Peluso que o Supremo Tribunal Federal:
(i) publicou a Súmula Vinculante 11, que impede o uso indiscriminado de algemas;
(ii) publicou a Súmula Vinculante 24, que impede a instauração de ação penal por crime de sonegação, antes da consolidação definitiva do crédito tributário em sede administrativa-fiscal;
(iii) publicou a Súmula Vinculante 14, que garante o acesso do advogado aos autos do inquérito policial e de expedientes sigilosos;
(iv) deliberou em sentido oposto à interpretação versada na Súmula 330 do STJ – firmando a tese de que o fato de a denúncia estar calcada em inquérito policial não dispensa a formalidade do art. 514 do CPP, quanto a crimes funcionais (primeiro julgado no HC 89.686, da 1ª Turma, precedente do qual Peluso não participou – mas esse entendimento foi consolidado por meio da 2ª Turma, posteriomente);
(v) reconheceu a atipicidade, por insignificância, em crimes praticados contra a Administração Pública (HC 112.388);
(vi) declarou a inconstitucionalidade de preceitos que vedadam a liberdade provisória para suspeitos da prática de crimes de porte de arma (ADI 3112) e de tráfico de drogas (HC 104.339), consagrando o entendimento de que a ordem constitucional não permite prisão ex lege;
(vii) permitiu a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, para tráfico privilegiado (HC 97.256);
(viii) iniciou a discussão sobre se a majoração da pena poderia ser motivada na existência de inquéritos e processos criminais sem decisão condenatória transitada em julgado (HCs 94620 e 94680, Peluso pediu vista porque, aparentemente, pretendia votar pela inconstitucionalidade da agravante da reincidência, mas se aposentou antes);
(ix) obstou a execução provisória da pena, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória (HC 84.078).
Com o ingresso de Barroso no Supremo, há uma guinada nessas duas linhas. Por influência dele, a jurisprudência que promovia uma maior proteção de direitos fundamentais em matéria penal começa a refrear diante de um julgador que concede um número minúsculo de habeas corpus.
O ativismo da Corte é acelerado por sua provocação, gerando resultados hermenêuticos extravagantes – como a evidente negativa de vigência ao art. 283 do Código de Processo Penal, dispositivo que expressamente impede a execução da pena antes da irrecorribilidade da decisão condenatória. Esse ativismo, em que o conteúdo normativo da lei é relegado a segundo plano e/ou é substituído pelo desejo do juiz, atua tanto em prol de bandeiras conservadoras e repressoras em matéria criminal (como no caso da execução provisória da pena, e na proposta de reavaliar a majoração da pena criminal em razão de inquéritos policiais em andamento, capitaneada por ele), quanto em temas progressistas (descriminalização do porte de maconha e da prática de interrupção de gravidez até o terceiro mês de gestação).
Barroso, em artigo publicado (intitulado A Americanização do Direito Constitucional e seus Paradoxos, disponível na internet), deixa transparecer uma grande admiração pela Corte Warren (Suprema Corte dos EUA entre 1953 e 1969), talvez a composição mais ativista na história das Cortes Supremas ao redor do mundo. Entretanto, causa espécie que o Ministro ignore que a marca maior da Corte Warren consistia no ativismo em favor de direitos e garantias fundamentais, e não contrário a eles. Em outras palavras: o Ministro Barroso é admirador do ativismo judicial, mas não necessariamente do ativismo progressista – matriz de pensamento verdadeiramente responsável pelo mundial reconhecimento da Corte Warren.
Devo dizer que não concordo com todas as posições históricas de Cezar Peluso – lembro de três casos: (i) o voto contrário à permissão para aborto de anencéfalos; (ii) o voto na operação Hurricane, em que ele permitiu a obtenção de prova por meio de ingresso secreto à noite, em domicílio profissional; e (iii) o voto no caso Cesare Battisti, em que o Ministro parecia estar excessivamente imbuído de impulsos político-ideológicos.
No entanto, a era Barroso, em que o conteúdo dos preceitos legais pode ser substituído por critérios de bom senso dos juízes (muitas vezes surpreendentes), não me inspira a menor confiança; promove grande insegurança jurídica em diversos campos do direito e me faz ter grandes saudades da era Peluso. Esse pequeno texto, com a sugestão de um corte temporal que alude a seu nome, serve como uma homenagem a esse juiz.
Já quanto à nova era vivenciada, em que o STF adota rumos inesperados e guinadas súbitas na jurisdição, municiados pelo crescente ativismo liderado por Barroso, o nível de confiança que tenho por nossa mais alta Corte equipara-se hoje ao que nutro pela presidência da República e pelo Congresso Nacional.
Pela perspectiva da institucionalidade política, não se poderia escolher um momento pior na história para o emprego de um ativismo judicial desse calibre e com esse teor – com inovações extravagantes na hermenêutica constitucional. Em minha opinião, a era Barroso faz do Supremo Tribunal Federal um importante ingrediente para a crise política – e, a não ser que haja uma séria correção de rumos, minha expectativa é que essa era termine o mais brevemente possível.
Márcio Augusto Paixão é advogado graduado na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), sócio do escritório Márcio Paixão e Adriano Beltrão Advogados Associados.