Como a extrema direita conseguiu fisgar tanta gente da terceira idade através de suas narrativas? Em seu livro Anatomia da destrutividade humana, filósofo marxista alemão explica detalhadamente por que a violência grupal em meio a uma “guerra santa” contra inimigos imaginários é tão excitante para pessoas depressivas que tem uma vida pacata com rotinas entediantes.
Por Rudá Ricci, compartilhado de Jacobin
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Pesquisa divulgada em 11 de janeiro último, realizada pelo Instituto Datafolha, indicava que 64% dos brasileiros acreditavam que o presidente Lula conseguirá controlar as ações terroristas como as que ocorreram no dia 8 de janeiro em Brasília. Outros 29% não acreditavam que os atos de vandalismo conseguirão ser contidos.
O dado se aproxima da divisão que persiste na sociedade brasileira desde 2015: ao redor de 30% dos brasileiros mantêm-se pessimistas em relação ao futuro do Brasil ou alinhados com princípios e valores da extrema direita.
Quando inquiridos a avaliar se o governo federal agiu corretamente no enfrentamento aos atos terroristas em Brasília, apenas 14% reprovaram, índice que sobe para 32% entre eleitores de Jair Bolsonaro.
Indo à direita
Há algo movendo a cultura política popular no Brasil. Ensaio publicado por Pedro Henrique Marques intitulado “Dimensão e Determinantes do Pensamento Ideológico entre os Brasileiros” indicava que 29,1% dos brasileiros se autodefiniam como de esquerda e 21,9% se caracterizavam como direita. Os dados trabalhados são de 2017, base do levantamento realizado pelo Projeto de Opinião Pública da América Latina.
A despeito do alto índice de brasileiros que se autodefinem ideologicamente, uma leitura mais apurada realizada por Marques revelou que apenas 23% deles mantinham coerência entre a autodefinição e opiniões compatíveis em relação à política econômica, papel do Estado e pauta de costumes. Com efeito, 24% dos autolocalizados à esquerda apresentavam mais opiniões antagônicas do que congruentes. No caso da direita, 61% apresentavam valores absolutamente incompatíveis em relação à pauta moral.
Esta dificuldade de identificação nítida com princípios ideológicos dos brasileiros parece ter sido superada gradativamente nos sete anos seguintes ao levantamento.
Já em 2018, pesquisa Datafolha indicava que 30% dos que se definiam como pardos preferiam Jair Bolsonaro como governante do país, o mesmo em relação a 21% dos que recebiam até dois salários-mínimos. Parte da imprensa internacional sugeria que no Brasil se formava uma nova coalizão política, resvalando na extrema direita. O bolsonarismo mais popular aliava inúmeras pautas, do liberalismo empreendedor – com promessas de autossuficiência dos moradores que se sentem marginalizados e humilhados por políticas assistenciais – ao moralismo religioso ou ufanismo patriótico.
“O que a fake news procurava explorar era o rosto angelical de uma avó entre os detidos para provocar uma comoção social entre os extremistas.”
Pesquisa mais recente produzida pelo Instituto Datafolha em maio de 2022, indicava que 34% dos brasileiros se identificavam como de direita. Uma outra pesquisa sugeria uma situação ainda mais grave. Pesquisa sobre “Polarização Política no Brasil” realizada em novembro de 2022 pelo Instituto Locomotiva a pedido da ONG Despolarize revelou que 18% dos brasileiros se dizem de “extrema direita”.
É perceptível um deslocamento de brasileiros para o ideário extremista de direita.
O perfil dos detidos após os atos terroristas e de vandalismo em Brasília, indica algo ainda mais relevante sobre este deslocamento ideológico.
O perfil dos detidos após os atos terroristas
Apartir da lista divulgada na manhã do dia 11 de janeiro sobre os detidos em Brasília por cometer atos de vandalismo contra o patrimônio público e se envolver em ações contra a ordem democrática, foi possível traçar um perfil inicial da base fanática deste extremismo de direita.
Da lista de 667 pessoas detidas (que duplicaria no final daquele dia), 249 eram mulheres e 418 homens. Onze mulheres não apareciam com data de nascimento definida, sendo excluídas do levantamento que apresentaremos a seguir.
“Estamos diante de uma militância extremista com idade avançada, algo pouco usual nas mobilizações de extrema direita mundial.”
As idades mínimas e máximas estão no intervalo de 19 a 72 anos, sendo que 84,5% das pessoas nasceram entre 1960 e 1990 e 64,3% nasceram entre 1960 e 1980. O mais impressionante é que a idade média das mulheres é de 49 anos e dos homens de 44 anos.
Não foi aleatório que uma das peças de fake news mais disseminadas após a prisão foi a da morte de uma senhora idosa que supostamente estaria entre os presos. O que a fake news procurava explorar era o rosto angelical de uma avó entre os detidos para provocar uma comoção social entre os extremistas e suas áreas de influência e, assim, desqualificar as prisões.
Estamos diante de uma militância extremista com idade avançada, algo pouco usual nas mobilizações de extrema direita mundial.
O que teria levado idosos a se engajarem em atentados contra a ordem democrática?
Erich Fromm explica
Ofilósofo marxista alemão Erich Fromm dedicou um longo estudo aos impulsos destrutivos da humanidade, aos traços de caráter que ativam esta tendência e as formas de motivação social que a alimenta. Trata-se de um denso ensaio sobre o tema que merece atenção. Em seu livro Anatomia da destrutividade humana, o autor sustenta que a destrutividade e a crueldade, não são pulsões instintivas, mas paixões enraizadas na existência humana, principalmente naquela parcela da humanidade que possui caráter sádico, aguardando uma oportunidade para se comportarem sadicamente.
Mas, o impulso à destrutividade não envolveria apenas sádicos.
Em seu livro, Fromm destaca o quanto a violência grupal é excitante. Sustenta a emoção que a guerra causa, mesmo frente aos riscos de vida. No caso de vivências entediantes e rotineiras, carentes de aventuras, o envolvimento com atos coletivos ofensivos a grupos adversários ou inimigos – mesmo imaginários – “deve ser compreendida como um desejo de pôr fim à rotina maçante da vida cotidiana”. Segundo o autor:
As observações da vida diária mostram que o organismo humano, assim como o organismo animal, tem necessidade de um certo mínimo de excitação e estimulação, do mesmo modo que ambos sentem necessidade de um certo mínimo de repouso. Observamos como os homens reagem avidamente à excitação e como a procuram.
Também é comum que o estímulo ativador da violência seja tão-somente uma fuga ao tédio. Talvez aqui tenhamos uma pista para entendermos parte da atração pelo fanatismo bolsonarista ou o engajamento nos atos de extrema direita na paisagem política brasileira desde 2015, que envolvem pessoas da terceira idade.
“Algumas delas, vivem numa situação de depressão endógena psicótica; outras, em depressão crônica. Muitas delas se jogam em formas extremas de destrutividade.”
Muitas pesquisas realizadas em eventos de massa que pregaram o ódio e o fechamento político do país indicavam que tais manifestações eram compostas majoritariamente por pessoas acima de 50 anos de idade, que se jogaram na aventura do ataque sem tréguas a um inimigo inexistente. “Parece que o consumo de compensação de tédio oferecido pelos canais normais de nossa cultura não preenche a sua função adequadamente”, sugere Fromm, “daí, outros meios de alívio de tédio serem procurados”.
Essa relação tédio-violência como fuga envolve comumente pessoas que se apresentam frias, congeladas em suas emoções, cujo mundo se apresenta como cinzento. Algumas delas, vivem numa situação de depressão endógena psicótica; outras, em depressão crônica. Muitas delas se jogam em formas extremas de destrutividade.
Embora numa dimensão muito mais amena que a que envolve os sádicos, muitos militantes extremistas da terceira idade sentem uma sensação de onipotência ao se envolverem com a turba que ataca o inimigo imaginário. Trata-se, no caso, de sujeitos que se comportam como “aleijados psíquicos”, muitas vezes em conflito entre uma orientação sensível à vida e uma orientação destrutiva ou capturada por uma aventura extrema.
O discurso desses extremistas da terceira idade é montado a partir de uma radical simplificação do mundo, sem manter qualquer proximidade com escrúpulos intelectuais ou morais que centros disseminadores de fake news e discursos de ódio propagam. Vivem próximos de um viés de confirmação permanente, à mercê dos argumentos plausíveis dirigidos para pessoas com baixo poder de elaboração crítica.
Muitos desses personagens apresentam hesitações e se deixam levar pela onda dos acontecimentos até que eles definam um rumo por si. Uma vez definido o caminho, passam a adotá-lo com ardor, por uma vontade irracional, uma luta apaixonada alimentada por uma paixão irracional. Uma vontade, como sugere Fromm, que “arrebenta uma represa”.
“A OMS estima que em 35 anos um em cada três brasileiros será idoso. Até 2050, o número de pessoas com mais de 60 anos triplicará em nosso país.”
Erich Fromm apresenta um panorama geral dos impulsos destrutivos da humanidade, de seus traços de caráter potencializados por ambientes tóxicos em que uma liderança aciona o gatilho do narcisismo grupal ou do sofrimento mental pessoal.
Esta breve passagem sobre a análise de Erich Fromm nos auxilia a compreender os impulsos, em especial, das mulheres de terceira idade que se envolveram com os atos terroristas de 8 de janeiro.
Machismo, ressentimento e revolta na terceira idade
Além do ambiente tóxico criado desde 2015 no Brasil para disseminar uma guerra santa contra múltiplos “demônios” que rondariam a paz e a ordem conservadora do país, temos um potencial ressentimento a ser explorado em função da junção do machismo brasileiro aliado ao descaso com a população idosa de nosso país.
O machismo renega a um segundo plano a ação pública de mulheres no Brasil. Embora formem a maioria do eleitorado brasileiro (53%), em 2020, apenas 15% das pessoas eleitas eram mulheres, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Há um impedimento real à participação pública das mulheres no Brasil que são escanteadas à vida privada e quase anônima em nosso país.
A situação de exclusão se agrava com o avanço da idade. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que em 35 anos um em cada três brasileiros será idoso. Até 2050, o número de pessoas com mais de 60 anos triplicará em nosso país. O país poderá ter a sexta população idosa do planeta, ou seja, seremos considerados uma nação envelhecida.
Em 2019, o número de idosos no Brasil chegou a 32,9 milhões. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a tendência de envelhecimento da população vem se mantendo e o número de pessoas com mais de 60 anos no país já é superior ao de crianças com até 9 anos de idade. Os 7,5 milhões de novos idosos que ganhamos de 2012 a 2019 representam um aumento de 29,5% neste grupo etário.
Embora apenas 18% dessa população idosa trabalhe, 75% contribuem com mais de 50% do total da renda do domicílio. Apenas 26% receberam auxílio emergencial e 32% possuem plano de saúde, segundo levantamento realizado pelo DIEESE a partir dos dados da Pnad Contínua (3º trimestre de 2020) e Pnad Covid19 (novembro de 2020).
“Trata-se, assim, de um segmento social afetado aos apelos para a revolta pública, se jogando na arena das ações extremistas como protagonistas.”
Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde 2019 (PNS), a maioria entre a população idosa do Brasil é composta por mulheres (56,7%).
Assim, temos uma conjugação de fatores que alijam as mulheres na terceira idade da vida pública e que, com o avanço da idade, se percebem em situação progressivamente marginal, inclusive, em termos econômicos, sociais e de sociabilidade.
Trata-se, assim, de um segmento social afetado aos apelos para a revolta pública, se jogando na arena das ações extremistas como protagonistas. Ressentimento e revolta se misturam às demonstrações de força selvagem.
O Brasil precisa atualizar rapidamente sua leitura sobre tal complexidade social e suas decorrências políticas. Sem essa compreensão da natureza multifacetada, dificilmente poderemos superar a excitação diária que tomou conta do país e que jogou tantos “cidadãos de bem” numa perigosa aventura de crimes e ataques à estabilidade social e o convívio pacífico.
Sobre os autores
RUDÁ RICCI
é sociólogo e trabalha com educação e gestão participativa. Também preside o Instituto Cultiva.