Ernest Hemingway, divino e humano, por Urariano Mota

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“Tentar escrever algo de valor permanente é tarefa de tempo integral, mesmo que só algumas horas por dia sejam gastas com a escrita em si”

Por Urariano Mota, compartilhado de Jornal GGN




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Ernest Hemingway, divino e humano *

Em 21 de julho de 1899, nasceu o escritor Ernest Hemingway.

Ele foi um escritor que, ao lado da sua genial literatura, teve uma imensa fama de beleza física, força e aventura másculas. Seria como uma extensão dos seus belos textos, como se a virilidade entrasse no terreno da literatura. Esse equívoco merece um sério reparo, quando o vemos na sua humanidade cotidiana. Vale a pena ler o que o seu neto John Hemingay publicou no blog,
em http://johnhemingway.blogspot.com/2010/11/all-man.html

“Muitas pessoas ainda pensam em Ernest Hemingway em termos exagerados. Cinquenta anos depois de sua morte, ele é o Lord Byron do século XX, um gigante literário hipermacho, bebedor de rum, guerreiro e armado com pistolas, que se casou quatro vezes, teve inúmeras amantes e definiu o que era e, em muitos casos, ainda é ser um homem americano. É um retrato confortável e bem usado e, em parte, como eu mesmo o imaginava quando era garoto em Miami durante os anos 60 e 70. A imagem maior do que a vida e as façanhas do homem eram certamente mais empolgantes do que as de muitos outros escritores. Ele era escandalosamente real (“macho demais para ser verdade”, como meu pai costumava dizer) de uma forma exagerada, do tipo Quentin Tarantino. É claro que, anos mais tarde, quando escrevi Strange Tribe, descobri que Ernest não era a pessoa que eu pensava que fosse e que talvez tivesse mais em comum com meu pai, seu filho mais novo transexual, do que com os pescadores, soldados e toureiros de quem era amigo. Mas, mesmo com esse conhecimento e com a publicação de meu livro, as velhas ideias não morrem. Estou inclinado a acreditar que os mitos são imortais e que o papel exagerado que Ernest desempenhou na cultura americana após a Segunda Guerra Mundial teve muito a ver com a forma como o “papai” foi embalado pelas revistas pulp (revistas populares, de papel barato, vendidas em bancas e jornais) dos Estados Unidos….

O que foi irônico, pelo menos para mim, ao ler o livro All Man, de David M. Earle, foi ver como Ernest passou de representante da Geração Perdida e seus temas antimilitaristas e anticonformistas para alguém cuja imagem foi usada pela América corporativa para ajudar os veteranos de guerra que retornaram da Segunda Guerra Mundial a se conformarem com seus papéis de maridos e pais suburbanos em uma nação conservadora e agressivamente capitalista. Na verdade, os retratos de macho-alfa de Hemingway preencheram uma necessidade cultural, diz Earle, de reafirmar a masculinidade do país em uma época de “crise de gênero profundamente enraizada”. As mulheres haviam mudado durante a guerra, assumindo os trabalhos que os homens costumavam fazer, e nunca mais seriam tão submissas quanto antes. O passado de Ernest como veterano ferido e seu estilo de vida glamoroso em Cuba”.   

Quando se procuram os pés de barro em um ídolo, a gente sempre os encontra. Pude notar no meu próximo romance, inédito:

“O negro, o criado negro de Hemingway que carrega os fardos do Senhor caçador na savana. O negro que escuta os diálogos em inglês do caçador Hemingway, que corre os maiores riscos na caçada ao leão, mas que nessa literatura não tem voz nem fala”.  

Mas muito acima dos pés de barro, a eternidade de Hemingway está na sua literatura. Na melhor entrevista do livro “As entrevistas da Paris Review” (volume 1), onde encontramos alguns dos mais famosos escritores do século XX, recebemos estas lições, que se tornaram os segredos da profissão revelados para todos os escritores:

“Hemingway: – Você escreve até chegar a uma situação em que ainda dispõe de boa veia, e sabe o que vai acontecer depois….

Entrevistador:

– É necessário estabilidade emocional para escrever bem? Uma vez o senhor me disse que só conseguia escrever bem se estivesse apaixonado. Pode falar um pouco mais sobre isso?   

Hemingway:

– Que pergunta! Nota dez para a tentativa! Você pode escrever em qualquer ocasião, se as pessoas o deixarem sozinho e não o interromperem. Ou melhor, se você for bastante implacável a respeito. Mas a melhor escrita se dá quando você está apaixonado. S não se importa, prefiro não falar mais sobre isso.  

Entrevistador:

– E quanto à segurança financeira? Pode ser um empecilho para escrever bem?

Hemingway:

– Se ela vier muito cedo, e se você amar a vida tanto quanto ama o trabalho, então vai precisar de muito caráter para resistir às tentações.

Entrevistador:

– Que exercício intelectual o senhor consideraria o melhor para o aspirante a escritor?

Hemingway:

– Digamos que ele deva enforcar-se, por descobrir que escrever bem é difícil a ponto de ser impossível. Então ele deve ser retirado da forca impiedosamente, e forçado por si próprio a escrever o melhor que possa para o resto da sua vida. Pelo menos terá, como ponto de partida, a história do enforcamento….

Tentar escrever algo de valor permanente é uma tarefa de tempo integral, mesmo que só algumas horas por dia sejam gastas com a escrita em si. Pode-se comparar um escritor a um poço. Existem tantos tipos de poços quanto de escritores.

Entrevistador:

– Qual é o grau de completude, na sua mente, da concepção de um conto? O tema, o enredo ou um personagem podem mudar à medida que vai escrevendo?

Hemingway:

– Às vezes você já conhece a história. Às vezes vai montando-a à medida que escreve, sem fazer a menor ideia do que será o resultado. Tudo muda enquanto se move. É isso o que faz o movimento que faz o conto. Às vezes é um movimento tão lento, que nem parece mover-se. Mas sempre há mudança, e sempre há movimento….

“As verdes colinas da África” não é um romance, mas foi escrito como a tentativa de escrever um livro absolutamente verdadeiro. Depois de escrevê-lo, escrevi dois contos, “As neves do Kilimanjaro” e “A vida breve e feliz de Francis Macomber”. Foram histórias que escrevi a partir do conhecimento e da experiência que adquiri na mesma longa expedição de caça cujo relato verdadeiro pretendi escrever em “As verdes colinas da África”.

Entrevistador:

– O senhor poderia dizer alguma coisa acerca do processo de transformar um personagem da vida real em ficcional?

Hemingway:

– Se eu explicasse como isso é feito, às vezes, o resultado seria um manual para advogados de acusação.

Entrevistador:

– O senhor faz distinção – como E.M. Forster – entre personagens ‘planos’ e ‘redondos’?

Hemingway:

– Se você descreve uma pessoa, o resultado é plano, como uma fotografia, e, do meu ponto de vista, é um fracasso. Se você a modela a partir do seu conhecimento, todas as dimensões estarão presentes.

Entrevistador:

– Quando não está escrevendo, o senhor permanece como um constante observador, sempre em busca de algo que lhe possa servir.

Hemingway:

– Com certeza. Se um escritor parar de observar, está acabado. Mas ele não precisa observar conscientemente, nem pensar de que modo isso lhe poderá servir. Talvez isto seja verdade no início. Mas, depois, tudo o que ele vê vai para a grande reserva das coisas que ele conhece ou viu. Se é que serve para alguma coisa saber disso, sempre escrevo a partir do princípio do iceberg . Há sete oitavos submersos, para cada parte que aparece.

O Velho e o Mar poderia ter mais de mil páginas e conter todos os todos os personagens da aldeia e todos os processos de como eles ganhavam a vida, nasceram, foram educados, tiveram filhos, etc. Outros escritores já fizeram isso muito bem. Eu tentei aprender a fazer outra coisa. Primeiro, tentei eliminar tudo o que era desnecessário para transmitir a experiência ao leitor, de modo que, depois que ele ou ela ler, isso se se torne parte de sua experiência e pareça ter realmente acontecido. Isso é muito difícil de fazer e eu me esforcei muito para isso.

De todo modo, pulando a maneira como se faz isso, tive uma sorte incrível  dessa vez e pude transmitir a experiência completamente, de uma maneira que antes tinha feito. A sorte foi que eu tinha um bom homem e um bom garoto, e, ultimamente, os escritores têm se esquecido de que essas pessoas ainda existem. Além disso, o mar é tão digno de escrever sobre ele quanto sobre o homem. De modo que tive sorte em tudo. Eu tinha visto o acasalamento do agulhão, conheço bem a respeito. Então, deixei isso de fora. Tinha visto um rebanho (ou bando) de mais de cinquenta cachalotes naquela mesma região marítima, e uma vez arpoei um que tinha uns dezoito metros de comprimento, mas o perdi. Deixei isso de fora. Deixei de fora todas as histórias que conheço da aldeia de pescadores. Mas o conhecimento é o que forma a parte submersa do iceberg.     

Entrevistador:

– O senhor já disse, creio eu, que a escrita maior advém de um senso de injustiça. Considera importante que um romancista seja dominado deste modo – por algum senso que o compele/

Hemingway:

 – Um escritor sem um senso de justiça ou de injustiça estaria melhor editando o anuário de uma escola para crianças excepcionais do que escrevendo romances. O dom mais essencial para o bom escritor é um detector de merda, embutido e à prova de choque. É o radar do escritor, e todos os grandes escritores tiveram o seu”.      

A frase de Hemingway nessa entrevista ao falar que “sempre escrevo a partir do princípio do iceberg”, e aplicando sua teoria à obra-prima O Velho e o Mar a frase “Deixei de fora todas as histórias que conheço da aldeia de pescadores. Mas o conhecimento é o que forma a parte submersa do iceberg”  tem gerado as maiores simplificações e equívocos. Virou autoajuda literária. Má literatura à revelia da intenção de Hemingway. Só falta medirem a temperatura do gelo de um texto. Quem for agora ao Google, verá 1.020.000 resultados para a busca hemingway iceberg (dados de 20.07.2023). No primeiro deles, a wikipédia informa qie “A teoria do iceberg ou teoria da omissão é uma técnica narrativa elaborada pelo escritor estadunidense Ernest Hemingway. Como jovem jornalista, Hemingway teve que concentrar suas reportagens em eventos imediatos, com pouco espaço para contexto ou interpretação. Quando se tornou contista, manteve seu estilo minimalista, concentrando-se nos elementos superficiais sem discutir profundamente camadas subjacentes”(!!!!!!!). É claro, não foi  isso a que o escritor se referiu ao falar sobre seu método de escrita.  

Agora, imaginem o que seria de um escritor que jogasse fora, “jogasse ao mar” o seu maior conhecimento sobre a vida, pessoas e o mundo.  Imaginem, portanto, o tipo de literatura produzida assim: falha, fria e falsa. Na verdade, o escritor narra o seu melhor conhecimento, a sua experiência absoluta da vida, a sua dor e mágoa, e isso é impossível de largar submerso, entre sombras do purgatório. Não. O que ele quis dizer, de um modo sintético, é que não se pode contar tudo, todos os fatos sobre as pessoas em conto ou romance. Ou no conjunto de romances, um feito que nem o gênio de Balzac conseguiu com sua imensidão sobre a história e sociedade francesa, porque afinal, a vida é curta. Se assim é, o que ocorre? Todo o mundo sabe que ao contar uma história deve-se escolher o que contar. Uma seleção de acontecimentos, imaginados ou tidos. Eu não posso falar de Maria contando o que ela comeu em 20 de julho, o que bebeu, o que defecou, o que suspirou, o que amou e sofreu nesse dia e tudo junto. Seria tedioso e impossível. Então, o que se faz? Ao se contar um certo dia da personagem, ou muitos dias, escolhe-se o que é significativo da sua história, o que está no futuro da escrita que se quer narrar. E nessa ênfase, “elimina-se” o que não interessa contar, mas o autor sabe o que elimina, ele sabe quem é Maria, ele sabe a sua cor, a sua estatura, o seu bairro, o seu tempo. Ele sabe, mas escolhe o que deseja. E o que ele sabe dá substância e matéria ao espirito de Maria. Aí está o iceberg quente, de altíssima temperatura. O autor monta os fatos de Maria que lhe interessam. Assim posta, Maria não está na superfície, ela está inteira em sua dor quando faleceu sem dar à luz o filho. Esta é Maria!      

Nesta altura, vale muito a pena destacar a excelência de Hemingway em alguns contos, para mim, o melhor da sua obra.

“As neves do Kilimanjaro”. Poderia ser dito: – que conto!. Nele, um escritor, com a perna gangrenada, espera um avião de socorro na selva. Enquanto isso, Hemingway reflete:

“Ele havia destruído seu talento por não usá-lo, por trair a si mesmo e àquilo em que acreditava, por beber tanto que embotou a borda de suas percepções, por preguiça, por preguiça e por esnobismo, por orgulho e por preconceito, por ganchos e por trapaças. Afinal, qual era o talento dele? Era um talento, sim, mas em vez de usá-lo, ele o havia comercializado. Nunca se tratava do que ele havia feito, mas sempre do que ele poderia fazer. E ele havia escolhido ganhar a vida com outra coisa em vez de uma caneta ou um lápis”.

“Os assassinos”. Devemos dizer mais uma vez: – que conto! Nele há diálogos curtos, que cortam como quicé, num crescendo de tensão:

“— Está olhando o quê? — Max encarou George.

— Nada.

— Estava, sim. Estava me olhando.

— Talvez ele estivesse brincando, Max — admitiu Al.

George riu.

— Você não tem que rir — disse Max a George. — Você não tem que estar rindo, entendeu?

— Entendi — falou George.

— Ele pensa que entendeu. — Max virou-se para Al. — Ele pensa que entendeu. Essa é boa.

— É um pensador — ironizou Al. Continuaram comendo”.

E o que dizer de “A vida breve e feliz de Francis Macomber”? Seria um conto sobre caçada, de um safári na África, na aparência. Mas Hemingway narra uma história que se constrói sobre o dilema ético da covardia (Francis Macomber, armado, corre em pânico de um leão ferido),  e da traição de um homicídio. E mais não devo acrescentar, porque a releitura me manteve suspenso entre a raiva e o espanto diante da canalhice ao final. É um conto magistral, digamos. (Aliás, é conto preferido do neto John Hemingway, a quem cito lá no começo destas linhas.)

E chegamos então ao Velho e o Mar, a obra-prima que lhe deu o Prêmio Nobel de Literatura. No bilhete com que acompanhou o envio dos originais ao editor, ele escreveu: “Eu sei que isso é o melhor que posso escrever na minha vida toda”. Na tentativa ridícula e inútil de resumir o livro em poucas linhas, cometo o crime:  

“ ‘Lutar contra os tubarões’, disse o velho. ‘Vou lutar contra eles até morrer’.”

No fim do livro, o escritor fala:

“Em sua cabana, o velho estava dormindo novamente. O menino estava sentado ao lado dele, observando-o. O velho sonhava com os leões”.

Mas o que fica, definitivamente, de O Velho e Mar é:

“O homem não foi feito para a derrota. Um homem pode ser destruído, mas não derrotado.”

Esse grande valor de humanidade, de luta contra a fraqueza natural de todos nós, dele próprio, portanto, dá a Hemingway uma dimensão divina. Mas é um divino naquele sentido dos gregos, do mito Prometeu que desejou o máximo para a humanidade, ao buscar o que a natureza humana poderia alcançar. Não importa que Hemingway, numa crise violentíssima de depressão, de perda de memória, o que para um escritor é fatal, não importa que ele tenha enfiado uma espingarda de dois canos na boca e atirado. A sua literatura fala mais alto: ainda que destruído no corpo, Hemingway não foi derrotado.

*Vermelho https://vermelho.org.br/coluna/ernest-hemingway-divino-e-humano/

Urariano Mota – Jornalista do Recife. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”

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