Por Fábio de Oliveira Ribeiro, publicado em Jornal GGN –
Uma das coisas mais interessantes na história do Brasil é a forma como a propriedade da Língua Portuguesa desempenhou um papel fundamental na apropriação do espaço geográfico. Ela unificava os colonos em face dos índios e, depois, dos escravos. Os “outros”, ou seja, aqueles que não eram portugueses, falavam uma miríade de dialetos o que impedia que eles se entendessem entre si e de se fazer entender diante do conquistador.
Do ponto de vista dos índios que almejavam se aliar aos colonos e dos negros que desejavam viver um pouco melhor servindo docilmente seus proprietários a posse da Língua Portuguesa provavelmente era considerada como uma fonte de poder. Aprendê-la possibilitava entender os colonos e se fazer entender diante deles. Ignorá-la poderia resultar tanto em sofrer violências quanto necessitar de um interlocutor.
A construção e expansão da nação brasileira se deu pela força bruta, mas ela se consolidou pela sedução linguística. Mas no momento em que a esmagadora maioria dos brasileiros passaram a falar português o poder simbólico da língua se desvaneceu. Uma nova fonte de poder teve que ser construída pelos herdeiros dos colonos. E foi assim que uma variante do português (a língua considerada culta) passou a ser mais valorizada, depreciando-se os dialetos da língua portuguesa (o português errado, degenerado) falados nos sertões, nos grotões e nas favelas.
Falar correto se tornou fonte de poder como falar português havia sido no passado. A gramática substituiu o arcabuz, mas o efeito político e repressivo foi o mesmo: a naturalização das diferenças e hierarquias sociais. Com o passar do tempo, porém, o poder simbólico da gramática da Língua Portuguesa também e desgastou por força da universalização da educação. É neste ponto em que nos encontramos nesse momento.
A crise política em que o Brasil se encontra pode de certa maneira ser descrita como a crise de uma língua culta cuja propriedade não é mais exclusiva e, portanto, deixou de ser fonte de poder de uma classe social. Tucanos e petistas usam a mesma língua com a mesma eficiência comunicativa e política e isso abala as hierarquias naturalizadas ao longo de cinco séculos de predomínio no espaço geográfico e político por alguns proprietários da Língua Portuguesa.
Duas soluções se apresentaram então no imaginário daqueles que se julgam donos do poder simbólico e, portanto, do país e de tudo que existe nele (aí incluídas as consciências das pessoas que pensam de maneira diferente). A primeira foi desvalorizar a Língua Portuguesa em face de uma língua estrangeira (que pode ser o francês ou o inglês). Quem fala outra língua é proprietário de algo mais do que quem se comunica apenas em português culto. Um exemplo notável desta distinção foi dado pela imprensa, que elogiava FHC porque ele falava em francês com os governantes franceses ao contrário de Lula que precisava de um interprete.
A reação negativa da elite brasileira ao programa Ciência sem Fronteiras encontra aqui sua principal explicação. O que será de nossos filhos que falam outra língua se os filhos dos pobres também tiverem acesso à essa nova fonte de poder político? Jesse Souza descreve o golpe como fruto do ódio ao pobre. Talvez ele possa também ser explicado pelo medo do pobre, sentimento que encontra sua raiz mais antiga no medo dos índios e dos escravos negros (que sempre estiveram em maior número do que os colonos, mas que não podiam fazer valer sua força porque eram incapazes de unificar seus propósitos utilizando uma só língua).
A outra solução está sendo colocada em prática pelo governo Michel Temer com apoio de alguns líderes do partido criado por FHC: reverter a próxima geração de brasileiros pobres à mais abjeta ignorância pela redução dos investimentos em educação. A desvalorização da Língua Portuguesa está sendo transformado num instrumento político a serviço de um projeto neocolonial.
O sucesso da difusão e da expansão da Língua Portuguesa pelo território nacional se transformou num entrave político ao exercício do poder de maneira tradicional, ou seja, com a exclusão mais ou menos consentida dos “outros”. O projeto de país colocado em prática pelo golpe de 2016 é o mesmo, mas sua estratégia é extremamente perigosa. Para recolonizar o Brasil no momento em que nossa maior riqueza nacional e fonte de coesão cultural (a difusão de uma única língua por todo espaço geográfico) ameaçou a desnacionalização do petróleo a elite decidiu arriscar tudo.
Se esse projeto de país não for interrompido o resultado é previsível. À medida que a unidade linguística enfraquecer, a do território nacional também começará a deixar de ser uma realidade imaginária. Para ver o futuro do Brasil basta prestar atenção ao que ocorreu na Ucrânia, onde a convivência de populações que falam línguas distintas se tornou politicamente impossível no exato momento em que um grupo tentou subjugar totalmente o outro.
A imprensa grita menos Estado, faz propaganda da redução de investimentos em educação e aplaude as iniciativas irracionais dos defensores da Escola sem Partido. Duvido muito que os jornalistas saibam exatamente o que eles estão fazendo a si mesmos e aos netos deles. Por isso, creio que o PT poderia usar a próxima eleição para se construir como um verdadeiro partido da Escola Pública e, o campeão pelejador em defesa da preservação da Língua Portuguesa.