Espaços de Sociabilidades e lazer na Porto Alegre de outrora

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Por Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite* – 

O sarau se constituiu, por muito tempo, num hábito frequente do porto-alegrense, quando a família se reunia para escutar estórias ou algum trecho de leitura de algum sucesso literário. Neste período, os hábitos noturnos eram quase que inexistentes, e locais de diversão eram tidos como suspeitos, exigindo discrição dos frequentadores.




  Os saraus

Com a iluminação a gás (1874), a noite passou a ser mais atrativa.  Nos saraus, com a presença de convidados, declamavam-se sonetos ao som de boa música.  Durante o encontro era oferecido chá ou licor, doces e biscoitos. A peça fundamental era o piano, no qual se tocavam valsas, havaneiras, shotings, czardas, polcas e o velho minueto. Os convidados dançavam e conversavam alegremente, durante essas reuniões que ocorriam, geralmente, às quintas e aos sábados, segundo José De Francesco, no livro Reminiscências de um artista, p. 13. Durante longo tempo, esses saraus fizeram parte do lazer do porto–alegrense.

Na virada do século 20, se o piano ocupava o lugar de honra na casa, nas ruas a primazia era do violão. Nas alamedas da Praça da Harmonia, caminhavam os seresteiros, dedilhando violões e, algumas vezes, causando alarido.  As serenatas acabaram por serem proibidas, por Barros Cassal (1858-1903), nos primeiros tempos da República. Neste período a cidade contava com 316 tavernas, 38 botequins, cafés e restaurantes, 10 quiosques, conforme registra a Enciclopédia dos municípios brasileiros na p. 68.

 Os Cafés

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Café América

Os Cafés surgem na Europa nos fins do século 18, popularizando-se no século seguinte. Nesta ambiência do primeiro mundo se trocam ideias e realizam-se negócios variados. Os Cafés no velho continente, vão a encontro das novas exigências de uma sociedade . moderna e logo se fariam presentes em nossa urbe.

De acordo com Achyles Porto alegre (1848-1926), em seu livro Flores entre ruínas na p.19, o mais antigo Café da nossa cidade era o Fama fundado em 1870, localizava-se na Rua Nova (atual Andrade Neves). Nosso cronista narra que o local era frequentado por quem não prezava a própria fama. Com o passar do tempo, surgiram inúmeros cafés, atraindo a clientela masculina mais endinheirada que discutia negócios e preocupava-se com as questões políticas do estado. Surgiram, assim, o Java, Roma, América e o Guarany. Nestes cafés as mesas eram disputadas, pelos frequentadores, como afamados pontos de encontros.

Havia também os cafés-concerto, nos quais se podia beber, fumar e assistir a números musicais e de variedades, como Café Pátria, que, em 1895, exibiu com sucesso o grupo de Eduardo Moccia, apresentando zarzuelas que são peças espanholas, parte falada e outra cantada; uma espécie de ópera cômica. No mesmo estilo, despontou o café – concerto O Sol Nasce Para Todos de Paulino Bernardi.

Chalé da Praça XV
Chalé da Praça XV

Local de encontro e lazer dos porto-alegrenses, o Chalé da Praça XV foi construído no ano 1885, na Praça Conde d’Eu, atual Praça XV, visando à venda de sorvetes e bebidas. Este foi demolido, sendo construído, em 1911, no mesmo local, outro em estilo “Art-Nouveau”. Ser fotografado, pelos antigos lambe-lambes e encontrar com os amigos, constituía-se numa prática do cotidiano desse local. O Chalé da Praça XV, até os dias atuais, faz parte da tradição e do cenário central da cidade.

  A Praça dos poetas e intelectuais

A atual Praça Brigadeiro Sampaio (antiga Praça da Harmonia) representou no passado um importante espaço de sociabilidades, no qual namorados, boêmios  poetas, escritores e jornalistas transitavam. O lugar foi também cemitério e local de enforcamentos. Já na condição de Praça, a partir de 1878, o espaço se tornou ponto de recreação com a instalação de um rinque de patinação.  Além de um chafariz, importado da Europa, havia um quiosque para cervejadas.

Praça da Harmonia / atual Brigadeiro Sampaio
Praça da Harmonia / atual Brigadeiro Sampaio

A Praça da Harmonia se chamou também Martins de Lima, vereador responsável pelo primeiro plano de arborização da cidade, tendo esse local recebido as primeiras mudas de árvores. Frequentaram a Praça da Harmonia nomes famosos, como Alceu Wamocy (1895-1923), Eduardo Guimaraens (1892-1928), Alcides Maya (1877-1944), Álvaro Moreira (1888-1964) Felipe de Oliveira (1890-1933), Dionélio Machado (1895-1985), entre outros.

    A eletricidade: um novo olhar

Ao adentrar o século 20, ocorreram muitas novidades no campo das artes, na moda ou no modo de desfrutar a vida; além de valorizar o lazer noturno.  Ao iniciar o Ano Novo, o Porto Alegrense encantou-se ao ver, na chaminé da Fiat Lux, o letreiro Salve o século XX se iluminar com a eletricidade.  Surgia o esboço da modernidade cosmopolita do porto alegrense que adentrava o século 20.   Quando se acenderam as lâmpadas elétricas nas ruas, já havia os hábitos noturnos que se expandiram na proporção que a cidade se iluminava, tornando mais seguros os percursos. Assim, Porto Alegre conquistou de forma definitiva o tempo noturno na belle époque dos gaúchos.

    A moda feminina

O público feminino, de acordo com Athos Damasceno Ferreira (1902-1975), frequentava a Confeitaria da Alfândega, exibindo o figurino francês que predominava à época. O chapéu, símbolo de elegância, era adornado com flores, fitas ou frutos, sendo adquiridos no Magasin de Modas ou Au Bom Marché. A grande meta do público feminino, por meio do uso do espartilho, era possuir uma cintura de 42 centímetros, sendo um ideal de beleza uma pele branca e transparente. Somente as proletárias usavam lenço na cabeça ou pequenos chapéus.

  A eterna Rua da Praia

O footing feminino era costumeiro, na Rua da Praia, após o chá das cinco.   Ao escurecer, assistia-se na mesma rua o trottoir de lindas mulheres, com a pecha de “má reputação”, às quais a imprensa da época denominou de “horizontais”.  Estas eram as musas dos jovens que frequentavam as novas faculdades nos intervalos noturnos.  A boemia era um estilo assumido. A origem da palavra é imprecisa; porém, no ano de 1830, em Paris, já aparece com o atual significado.

Nosso poeta Zeferino Brasil (1870-1942) foi um reconhecido boêmio da cidade, como registra a dissertação de mestrado Espaços de sociabilidade e memória: fragmentos da “vida pública” porto-alegrense entre os anos de 1890 e 1930, de Luiz Antônio G. Maronese, defendida em 1992.

 Na última década do século 19, em Porto Alegre já existiam bares, cafés e frequentadores considerados boêmios. Segundo Souza Júnior (1896-1945), a influência do livro “Cenas da vida boemia” de Henri Murger (1822-1861), no meio intelectual da época, foi marcante, influenciando num certo alcoolismo romântico associado a um “estilo de vida”.

Apesar das campanhas moralizantes e da presença da repressão policial, o lazer noturno continuou a crescer. O porto–alegrense seguiu se divertindo pelos botequins, quiosques, e bailes populares.  Para aqueles de gosto mais apurado, havia as soirées da Sociedade Esmeralda, da Germânia ou da Vittorio Emanuelle, além dos banquetes no Grande Hotel e no Clube do Comércio.

O modelo burguês europeu do “bem viver” era reproduzido nos espaços de lazer da cidade, como as sociedades, as confeitarias, os cafés, os hipódromos, as sessões de cinematógrafo e o tradicional “footing” da Rua da Praia.   Considerada a mais antiga e tradicional rua da cidade, nela os “cidadãos de bem” passeavam, exibindo o vestuário da moda. Quanto à sua importância o viajante Annibal Amorim registrou entre 1907/1908:

 “Em Porto Alegre cada rua tem dois nomes: um popular outro municipal. É uma confusão diabólica para o recem vindo. A dos Andradas é a mais importante. É mesmo a via publica da moda.“ [1]

O famoso fotógrafo Virgílio Calegari
O famoso fotógrafo Virgílio Calegari

As transformações que mudaram o visual citadino e o comportamento dos porto-alegrenses, sob a influência do positivismo, foram registradas pela lente de um dos grandes nomes da arte de fotografar: o ítalo-brasileiro Virgílio Calegari (1868-1937).  Seu famoso atelier se localizava na Rua da Praia, entre a Caldas Júnior, antiga Payssandu, e a Gen. João Manoel, conhecida como a quadra dos italianos. Frequentar seu estúdio era símbolo de status. Suas fotografias ilustram revistas importantes que circulavam à época, como a Máscara, Kodak e a Revista do Globo.

     A Ópera e o Teatro São Pedro

Theatro São Pedro
Theatro São Pedro

O hábito de frequentar o Teatro São Pedro, fundado, em 1858, para assistir às companhias líricas, era sinônimo de status e elegância. O professor e pesquisador, Décio Andriotti, profundo conhecedor desta temática no Estado, registrou  no seu artigo A Música no Rio Grande do Sul / Uma síntese Crítica: “… da metade do século 19 até a metade do século 20, a ópera foi o gênero preferido do gaúcho”.  Em seus garimpos históricos, ele descobriu, em 1994, na Biblioteca Pública do Estado, a partitura da Ópera Carmela, apresentada em 1902, da autoria do compositor gaúcho Araújo Vianna (1871-1916).

Importante que se destaque, também, os espetáculos teatrais encenados por grupos que vinham do exterior. Na virada do século, apresentou-se no Teatro São Pedro a Empresa Dramática Portuguesa. Nela se encontrava a grande Lucília Simões, atuando em Francillon de Alexandre Dumas filho (1824-1895), assim como  Christiano de Sousa no espetáculo Casa de Bonecas de Henrik Johan Ibsen (1828-1906).  Ao mesmo tempo, A Tosca e a Dama das Camélias eram anunciadas, pela Companhia de Zaira Pieri Tiozzo, no Polytheama, sendo que muitos atores eram oriundos de Buenos Aires, como registrou o Jornal do Comércio de 10 de janeiro, 06 de fevereiro e 13 de março de 1900 editado em Porto alegre.

      O Carnaval

Nos primórdios do nosso Carnaval, o Entrudo de origem açoriana era uma brincadeira na qual os foliões lançavam entre si limões de cheiro, água das seringas e até farinha. Diante do aumento populacional, o que era simples diversão tornou-se causa de desavenças e ferimentos entre os foliões e os passantes.

O entrudo / litogravura de Araújo Guerra  / Jornal O século de 1880
O entrudo / litogravura de Araújo Guerra / Jornal O século de 1880

Além desse Carnaval vivenciado pela maioria da população e reprimido pela polícia , existiam os blocos e corsos das grandes sociedades que representavam a elite da cidade. A passagem do Entrudo para o Carnaval, “bem comportado”, ocorreu dentro de um modelo que reproduzia a festa europeia.

 Os festejos de Momo, em seus primórdios, eram vivenciados pela classe média e alta nos cafés, teatros, confeitarias, clubes e associações. Nas ruas ocorriam jogos de confete, batalhas de flores, o lança-perfume e o corso de automóvel nas vias principais, a exemplo da Rua dos  Andradas,  conhecida como Rua da Praia devido à  proximidade das águas do Guaíba. As camadas mais pobres da população eram excluídas dos festejos, embora houvesse a circulação de mascarados, que tocavam tambores e zabumbas de origem africana em diversos pontos da cidade.

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Colônia Africana em torno de 1915

Com o tempo, nosso Carnaval de rua passou aglutinar tradições populares de origem europeia e africana, fundindo culturas e hábitos que se misturavam nos dias de Momo nos espaços de resistência cultural da população afrodescendente, considerados o berço do samba, a exemplo da Colônia Africana, Areal da Baronesa e a Ilhota.  Nestes locais surgiu uma série de blocos carnavalescos.

Jogador Tesourinha
Jogador Tesourinha

Considerado, oficialmente, o primeiro jogador negro a integrar o quadro do Grêmio, em 1952, Osmar Fortes Barcellos (1921-1979), o “Tesourinha”, participava do bloco “Os Tesouras”, donde se originou o seu apelido.  Este, a exemplo dos “Prediletos”, “Embaixadores do Ritmo”, “Ai-vem-a Marinha”, “Namorados da Lua”, entre tantos outros, era oriundo da Colônia Africana.

Uma característica dos blocos da cidade era a presença majoritária até os anos 50 e 60 de foliões masculinos. Os grupos femininos, dos quais se recorda a nossa velha-guarda , foram  “As Fazendeiras”, “As Japonesas”, “As Fuzileiras”,  “ As Iracemas” e “As Heroínas da Floresta” da Sociedade Floresta Aurora.

 Já no Areal da Baronesa foi coroado  Adão Alves de Oliveira (1925-2013), o seu Lelé, primeiro Rei Momo Negro da capital, entre 1949 e 1952. Neste local também surgiram os “Ases do Samba”,  “Seresteiros do Luar”, “Nós os Democratas”, “Viemos de Madureira”, “Tô com a vela”, entre outros. Neste local também surgiram os primeiros coretos populares de bairro.

Rei Momo Lelé
Rei Momo Lelé

Na antiga Ilhota nasceu Lupicínio Rodrigues (1914-1974), carinhosamente chamado de Lupi. Ainda menino, ele fugia de casa para participar das rodas de samba que ocorriam no local.  Aos 14 anos, aquele que, mais tarde, ficaria conhecido, em todo o Brasil, como “O Rei da dor de Cotovelo”, criou sua primeira música para o Cordão “Os Prediletos”, cujo título era “Carnaval”.

Lupicínio Rodrigues
Lupicínio Rodrigues

Aos poucos, os blocos superaram em quantidade as tradicionais sociedades carnavalescas. A Sociedade Esmeralda Porto-Alegrense e a Sociedade Venezianos, fundadas em 1873, competiam , entre si, nos concursos do  Carnaval da cidade. Fundada por alemães, em 1855,  havia também a Germânia, a mais antiga sociedade recreativa da cidade.   A Sociedade Floresta Aurora foi criada por negros alforriados, em 1872, e segue até a atualidade com suas atividades..

Em torno de 1900, a importância do Carnaval para a nossa cidade foi descrita pelo viajante Frank Bennett: “O Carnaval é um dos maiores eventos realizados no ano e todo mundo participa ativamente dos festejos, conquanto, cada classe social faça-o de maneira iferente (…)”.  

    Assim o porto-alegrense festejou, divertiu-se e celebrou a vida nos primeiros decênios do século 20… Como diria o nosso querido poeta Mário Quintana (1906 – 1994): “ Cidadezinha cheia de graça..”

Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite é pesquisador e coordenador do setor de imprensa do Musecom*

 

 Bibliografia
FORTINI, Arquimedes. O Passado através da Fotografia. Porto Alegre: Editora Gráfica Papelaria Andradas, 1959.
FRANCO, Sérgio da Costa, ROZANO Mário (org.) Porto Alegre Ano a Ano/ Uma cronologia histórica 1732/ 1950. Porto Alegre: Letra & Vida, 2012.
FRANCO, Sérgio da Costa. Gente e Espaços de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora Universidade / UFRGS, 2000.
GUIMARAENS, Rafael. Rua da Praia / Um passeio no tempo. Porto Alegre: Libretos, 2010.
MARTINI, Cyro. A Cidade Risonha de Aquiles Porto Alegre / Porto Alegre Séc. XIX. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2013.
PORTO ALEGRE, Achyles.  História Popular de Porto Alegre. Porto Alegre: Prefeitura Municipal, 1940.
SOUZA, Célia Ferraz de; MÜLLER, Dóris Maria. Porto Alegre e sua Evolução Urbana. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2007.

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