Publicado em El País –
Kirk Douglas lembra em um livro a realização do filme de Stanley Kubrick
No prólogo de Eu sou Espártaco!, o ator George Clooney escreve algo que sempre é bom lembrar: a verdadeira natureza de um homem – sua grandeza ou, ao contrário, sua miséria – se manifesta não pelos princípios que diz ter, mas pelos que realmente tem quando o que está em jogo são seu sustento, seu meio de vida e o de sua família. “Nesses momentos é que se compreende do que cada um é feito”. Clooney escreve para lembrar um dos episódios mais corajosos da história de Hollywood. O dia que marca o fim das listas negras provocadas pela caça às bruxas do Comitê de Atividades Antiamericanas. Foi no dia 19 de outubro de 1960, data da estreia de Espártaco, de Stanley Kubrick, que graças ao empenho de seu produtor e protagonista, Kirk Douglas, foi colocado nos créditos da super-produção o nome de seu verdadeiro roteirista, Dalton Trumbo, oculto até então em pseudônimos que perpetuavam a hipocrisia em que estava instalada a indústria do cinema desde que o inquisitorial medo do macartismo se instalou em sua plácida vida.
“I am Spartacus! Making a Film, Breaking the Blacklist” é a memória que o nonagenário Kirk Douglas (Amsterdam, estado de Nova York, 1916) publicou em 2012. Eleito o melhor livro de cinema editado em 2013 na França, detalha tudo que aconteceu durante os 14 enlouquecidos meses que durou a produção do filme. Espártaco custou 12 milhões de dólares, mais do que o dobro do previsto, e seu fracasso implicava o fim da produtora de Douglas, Bryna (nome dedicado a sua mãe russa) e sua própria carreira de ator. Mais de cinquenta anos depois daquela aventura, este patriarca da velha Hollywood dedica a seus netos um relato comovente, para que nunca se esqueçam que no mesmo lugar onde hoje desfrutam de uma vida privilegiada, foi instaurado o terror de um sistema doente. Ajudado por uma equipe de documentaristas, usando seus arquivos e lembranças, Douglas conta aquele vergonhoso capítulo histórico.
“O que me proponho a contar neste livro é como foi a produção do filme Espártaco durante outro período de enfrentamento interno na história de nosso país”, escreve. “A década de 1950 foi uma época de medo e paranoia. Naquela época, o inimigo eram os comunistas. Agora, o inimigo são os terroristas. Os nomes mudam, mas o medo permanece. Os políticos exageram ainda mais o medo e os meios de comunicação o exploram. Eles se beneficiam de nos manterem atemorizados. O primeiro presidente norte-americano em quem votei foi Franklin Roosevelt. Ele disse: ‘A única coisa que devemos temer é o próprio medo’”.
Douglas nunca foi um ativista político. Mas não conseguiu se manter indiferente. Ele atribui isso à ousadia da juventude, a certa ira inata que o faz lembrar da pior cara de seu pai alcoólatra e a um senso de justiça onde o profissionalismo e o trabalho estão acima de outras questões. “Hoje em dia ainda há quem continue tentando justificar as listas negras. Dizem que eram necessárias para proteger os Estados Unidos. Dizem que as únicas pessoas prejudicadas foram nossos inimigos. Mentem. Homens, mulheres e crianças inocentes viram suas vidas arruinadas por causa desta catástrofe nacional. Eu sei. Estava lá. Vi como aconteceu.”
Hollywood se aproveitava de seu talento, mas sem reconhecer seus direitos. Não podia nem pisar num estúdio, nem ir a nenhuma festa ou às filmagens
Dalton Trumbo não era amigo de Douglas, nem se conheciam, mas o contratou simplesmente porque achava que era o melhor roteirista de Hollywood. Trumbo tinha ganhado o Oscar de melhor história por A Princesa e o Plebeu (1953) sob o pseudônimo de Robert Rich. E, três anos depois, o de melhor roteiro porArenas Sangrentas. Obviamente, nem pôde receber as estatuetas e nem seu nome foi falado em nenhuma premiação. A hipocrisia moral era absoluta. Depois de passar pela prisão e se exilar no México, onde fez parte de uma colônia de roteiristas perseguidos, vivia modestamente com sua mulher e sua filha em uma pequena casa de Los Angeles. Escrevia sem parar, sempre protegido por falsas identidades. Hollywood se aproveitava de seu talento, mas sem reconhecer seus direitos. Não podia nem pisar num estúdio, nem ir a nenhuma festa ou às filmagens. Em 1947, tinha se negado a testemunhar no Comitê de Atividades Antiamericanas. Usando a Primeira Emenda, foi um dos chamados Dez de Hollywood, que se negaram a declarar em um tribunal que violava os direitos de liberdade de expressão e de livre associação. Nem confessou ser comunista nem delatou companheiros. Em um combate verbal que exasperou o juiz, Trumbo gritou: “Este é o começo, nos Estados Unidos, de um campo de concentração para roteiristas!”. Foi tirado da sala à força. Sua firmeza, ao contrário da de outros companheiros, não fraquejou. Antes morreria de fome. “Ele era uma espécie de para-raios da divisão do país”, escreve Douglas. “Depois de ter passado quase um ano na prisão continuava na lista negra dos estúdios de cinema: a instrução de ‘não contratar determinadas pessoas’ estava vigente há mais de uma década”.
Douglas lembra algumas histórias terríveis. Suicídios frente à impotência de ver truncadas promissoras carreiras, a pobreza em que terminavam muitas famílias, a aversão de colunistas como Hedda Hopper, que de sua tribuna de fofocas apontava sem piedade os supostos culpados ou quem lhes dava trabalho. Com pena e emoção, o ator evoca Carl Foreman, o roteirista de Matar ou Morrer: por medo de represálias, os produtores tiraram o nome dele do filme. Foreman não tinha pertencido ao Partido Comunista, mas se negou a delatar qualquer um. Fugiu para a Inglaterra. Ficou sem trabalho e sem amigos, sua mulher o abandonou. “Converteu-se em um apátrida”, lembra Douglas. Em um encontro em Londres, Foreman insinuou que para seu bem era melhor que não fossem vistos almoçando juntos. Douglas não dava crédito, morto em vida, tinha ficado totalmente sozinho.
Espártaco estava baseada em uma obra que Howard Fast, popular autor de romances históricos, e ele escreveu enquanto esteve preso por seu apoio a um grupo antifranquista espanhol, o Joint Anti Fascist Refugee. O Comitê de Atividades Antiamericanas queria saber o nome dos simpatizantes e Fast se negou a revelá-los. Terminou na prisão. Ali começou a criar o romance que um tempo depois acabou nas mãos de Douglas. A história do escravo da Trácia que dirigiu a rebelião mais importante contra a República romana era esse personagem épico que a incipiente estrela precisava.
A filmagem se completou com Trumbo escrevendo insone e escondido. Se os estúdios soubessem que ele era o roteirista, o projeto poderia acabar na lata do lixo ou vítima de uma debandada dentro da equipe. Anos antes, quando Frank Capra sentiu que por trás de A Princesa e o Plebeu poderia estar a mão de um escritor da lista negra, foi claro: não se arriscaria: O clima era tóxico: Elia Kazan acabava de jogar a toalha para se somar ao veneno delatando oito companheiros.
No relato de Douglas há muitas cenas reais que superam a melhor ficção. Como no dia em que, finalizada a filmagem, Dalton Trumbo entrou com ele e Stanley Kubrick no restaurante da Universal depois de anos sem poder pisar um estúdio. Todos os olhares se voltaram para eles, alguns até começaram a apontar com o dedo. O garçom, atônito, entregou o menu a Douglas e este passou ao roteirista: “Vamos começar pelo meu amigo. O que você quer tomar, senhor Trumbo?”. Trêmulo e um pouco cabisbaixo, o escritor respondeu: “Você terá que me dar uns minutos. Faz muito tempo que não venho aqui.”
Até 2011, o nome de Dalton Trumbo não apareceu nos créditos de A Princesa e o Plebeu. Em 1971, o escritor dirigiu o filme sobre seu perturbador discurso antibelicista de 1939, Johnny Vai à Guerra. Morreu em 1976. Douglas afirma que Espártaco não acabou com as listas negras, mas com “as listas da hipocrisia”. Trabalhar com Trumbo foi uma lição de vida que este honorável ancião não quer que seja esquecida. Suas palavras sobre ele não podem ser melhores: “Dalton foi fiel a suas ideias até o final, mas jamais se ofendia quando alguém duvidava delas. Tinha uma estranha mistura de segurança em si mesmo aliviada também por uma grande distância de si mesmo. Levar o trabalho muito a sério sem se levar muito a sério constitui um dom muito incomum que nele era abundante… Ele me ensinou muito sobre valentia e elegância. E espero que este livro contribua para que Dalton Trumbo seja lembrado como o autêntico herói norte-americano que foi.”
De ostras, caracóis e Franco
Kirk Douglas soltou várias pérolas da filmagem de Espártaco. Desde as violentas grosserias de Stanley Kubrick por não ter todo o controle do filme (que sempre renegou) à famosa censura feita sobre uma cena homossexual entre Crasso (Laurence Olivier) e seu escravo Antoninus (Tony Curtis) na qual Olivier tenta seduzir Curtis enquanto este lava as costas no banho.
O diálogo chega em seu ponto culminante quando Olivier pergunta para Curtis se ele gosta de comer tanto “ostras” quanto “caracóis”, em clara alusão ao sexo feminino e masculino.
– Questão de gosto, não?
– Sim, amo.
– E o gosto não é a mesma coisa que apetite, e portanto não se trata de uma questão de moralidade, não é?
– Pode ser visto dessa forma, amo.
– É suficiente. Minha toga, Antoninus… Meu gosto inclui… tanto os caracóis quanto as ostras.
Os censores ficaram loucos, só autorizariam a cena se substituíssem “ostras e caracóis” por “alcachofras e trufas”. Diante de semelhante disparate, a cena, hoje recolocada, ficou de fora.
A outra joia é sobre a filmagem das cenas das batalhas. O que hoje é feito em um escritório com a ajuda de um computador, em 1960 era necessário contratar um exército disponível e barato: ou seja, o Exército espanhol. “O generalíssimo fascista Francisco Franco ordenou que seu ministro de Defesa que cancelasse o projeto quando nossa equipe chegou em Madri. Após uma série de negociações frenéticas – que, segundo soube mais tarde, incluíram um pagamento em dinheiro realizado diretamente para a organização beneficente da esposa de Franco –, a filmagem voltou a andar. Contratamos 8.500 soldados espanhóis, por oito dólares (18 reais) por dia, para que representassem o papel tanto de soldados romanos quanto de escravos rebeldes. A única ordem terminante dada por Franco foi que não autorizava nenhum de seus soldados a morrer no filme. Não é que estava preocupado com a segurança deles, simplesmente não queria que nós disséssemos como deveriam morrer. Orgulho espanhol”.