Especialista em ciência política explica o conflito Israel-Palestina

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Mestre em ciência política pela Unicamp, Reginaldo Nasser fala o que o momento pode significar para a geopolítica global

Por Andrea DiPClarissa LevyRicardo Terto, compartilhado de A Pública




Na madrugada do dia 7 de outubro, o Hamas atacou a região sul de Israel deixando mais de mil mortos, inúmeros feridos e 200 pessoas sequestradas — segundo os números divulgados pelo Ministério da Saúde de Israel. Em contra ofensiva, nos dias seguintes, Israel direcionou seu poder militar para a região de Gaza, lançando mais de 6 mil bombas na Faixa de Gaza, onde vivem mais de um milhão de palestinos. No dia 27 de outubro, o Ministério da Saúde local informou que o número de mortes na Faixa de Gaza era de 7.326 pessoas, sendo 41% dessa quantidade crianças.

No episódio 94 do podcast Pauta Pública, o professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Reginaldo Nasser, explica o que o momento pode significar para a região e para a geopolítica global. Na entrevista, Nasser fala sobre a relação dos países vizinhos de Israel — Egito, Jordânia e Arábia Saudita — com a guerra, os Estados Unidos e a pressão popular por um cessar-fogo. 

Ao falar sobre a Faixa de Gaza, Nasser lembra das sanções econômicas que são feitas além do uso de armas, e de seus resultados em vidas humanas. Ele lembra que, além da política, é necessário resgatar a questão humanitária, que sofre os impactos da violência e da escassez seja durante a guerra, seja após.

Confira os principais pontos da entrevista e ouça o podcast na íntegra abaixo.

[Clarissa Levy] Eu quero começar pedindo para contar sobre o contexto dos atores desse conflito nos últimos anos. Como é que se deu o fortalecimento do Hamas na região, e como estavam as relações entre Israel e as autoridades palestinas? Como chegamos aqui? 

Para falar do Hamas, temos que falar de Gaza. A base do Hamas é em Gaza, o Hamas cresceu em Gaza, apesar de que, ao longo dos anos, ele passou a ter simpatizantes e apoiadores também na Cisjordânia, mas nunca muito consistente. O Hamas surgiu em 1987, era uma organização islâmica que se construiu em cima do assistencialismo e caridade. Ele passou a adquirir notoriedade no início da década de 1990, quando houve a intifada — em árabe quer dizer revolta popular, mobilização — e essa intifada foi a primeira grande mobilização genuinamente palestina.

A intifada se deu num contexto onde toda a autoridade nacional palestina, a única que os representava originariamente, era a Organização para a Libertação da Palestina. Esse foi o primeiro grupo, criado no final da década de 1960, sobre a liderança de Yasser Arafat. Então, a intifada trouxe um duplo movimento, que era um basta contra a ocupação de Israel, mas também expressava um descontentamento com os encaminhamentos que eram dados pelo Fatah, que era o grupo majoritário. 

O Hamas começou a aparecer como alternativa ao que estava caminhando, com o acordo de Oslo e os acordos anteriores à ele. [O Hamas] começa a aparecer para as gerações mais jovens como alguém que não faz concessão, não obtém vantagem. O Hamas canalizou isso daí, de um lado, mas por outro, hoje há informações, documentos muito consistentes, mostrando que o grupo teve um grande apoio de Israel. 

Como a Autoridade Nacional Palestina e o Fatah eram fortes, Israel começou a abrir uma divisão dentro do grupo, em um movimento de apoiar [grupos] islâmicos contra a esquerda, e o Hamas cresceu baseado nisso.

No final da década de 1990, o Hamas começou a ganhar mais visibilidade, saindo da rota de movimento popular e começou a praticar atentados suicidas, uma série de atentados dentro de Israel com muitos mortos, e isso foi nesse momento que Israel começou a se preocupar com o Hamas. 

Em 2005 Ariel Sharon, o primeiro-ministro de Israel, fez o desengajamento e tirou os colonos de Gaza. A extrema-direita ficou contra Sharon, mas a comunidade internacional viu isso com bons olhos, e até o Hamas o apoiou. Na sequência houve eleições livres na Palestina para a formação de um parlamento sob supervisão da comunidade internacional e tendo como resultado: 65% das cadeiras foram eleitos para membros do Hamas. Os Estados Unidos e Israel protestaram sobre o resultado das eleições.

Em 2007, começou o bloqueio à Gaza em terra, mar e ar, que foi um divisor de águas que nós conhecemos até hoje.

Reginaldo Nasser

Professor de relações internacionais da PUC-SP e mestre em Ciência Política pela Unicamp

De lá para cá, com Gaza cercada e sem comunicação, o Hamas só cresceu e administra Gaza desde então. Se pararmos para analisar os conflitos entre o Hamas e Israel, do início até hoje, há uma repetição, mas com duas diferenças: a forma que o Hamas saiu do confinamento e entrou no Estado de Israel, e a intensidade da ação do Hamas na mortalidade de civis israelenses.

Por fim, aconteceu um evento importante, mas que é pouco comentado: entre 2018 e 2019, houve uma mobilização popular muito grande em Gaza, sem o Hamas, foi uma movimentação espontânea, uma multidão foi para as cercas e foram mortos 170 palestinos, com centenas e milhares de feridos. Esse evento é importante, porque não teve a participação do Hamas, mas tendo mortes ou não, a justificativa é a mesma, sempre é o Hamas.  

[Andrea Dip] É uma situação extremamente complexa e delicada, mas a geopolítica não se move apenas baseada na preocupação com os direitos humanos. Então, como os países, sobretudo os que são afetados pelo conflito de alguma forma, mas também potências, como os Estados Unidos, têm se posicionado? Algo mudou? Quais são esses interesses envolvidos?

Veja só, nesse momento há um apelo no Conselho de Segurança, e eles estão tentando passar uma resolução que diz respeito ao direito internacional humanitário, que é o mínimo. Este direito é diferente dos direitos humanos: o direito internacional humanitário é pragmático, ele estabelece um mínimo de regras para minimizar a barbárie da guerra. 

Em Gaza, particularmente, não há controle. Na geopolítica, como você comentou, há equilíbrios de poder político e militar — se o mais fraco não tem [algum desses poderes] ele se alia a outro, para tentar fazer o equilíbrio, são os ‘’jogos’’. Nessa situação não tem ‘’jogo’’, porque nenhum Estado árabe vai entrar nesse conflito, nenhuma grande potência, ninguém vai entrar nesse conflito. Então, desde o final da Guerra Fria, a questão da Palestina foi se descolando dos Estados e se isolando, nesse aspecto. 

Agora, os países árabes, apesar de não entrarem militarmente, entram politicamente. Por causa da chamada ‘’Rua Árabe’’, os países Egito, Jordânia, Arábia Saudita — que sempre maltrataram os palestinos — têm lutado pelos direitos desse povo. Isso porque estão sendo pressionados, não querem ter problema com a sua população. É o exemplo do Marrocos, que é um dos países mais próximos a Israel e onde 500 mil pessoas se reuniram na rua [para protestar contra a guerra]. Há uma pressão popular em função desses massacres.

Nos países do Golfo Pérsico (Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes), há bases militares americanas. Poderia se considerar a Arábia Saudita em um ‘’recanto’’ dos Estados Unidos, mas antes da Guerra da Ucrânia o país começou a se distanciar dos EUA e se aproximar da Rússia e da China. Com a Guerra da Ucrânia, paradoxalmente, os países se aproximaram mais ainda. E agora, com a questão da Palestina, isso não se reverteu, pelo contrário: a Arábia Saudita emitiu a nota, até agora, mais dura contra Israel. E no momento que o Netanyahu foi a Nova York, porque os Estados Unidos estavam querendo trazer a Arábia Saudita, tanto para Israel como para um grande projeto de disputa com a China.

Já o Catar é um grande doador dos palestinos, sendo o maior doador para Gaza. Ao mesmo tempo, tem base americana e bom relacionamento com os Estados Unidos. Há mais outros que vieram nessa história, Egito e Jordânia, que sempre foram aliados dos Estados Unidos. O Secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, viajou para os países vizinhos e colheu as impressões. Ao voltar para Israel, saindo do avião ele não parecia bem. Conversou com Netanyahu, e a reunião durou nove horas, ou seja, a coisa está complicada, os Estados Unidos não estão conseguindo [manter o apoio a Israel]. E na votação do Conselho de Segurança da ONU — mesmo que simbólica — apenas os Estados Unidos votaram contra, com seu poder de veto. 

Indo mais longe, para além da questão humanitária, para a questão política, para negociar um cessar fogo e a liberação de reféns é preciso conversar com o Hamas, ter credibilidade com o grupo, e também conversar com Israel e Estados Unidos. E esses são: Arábia Saudita, Catar, Emirados Árabes e Egito. Então é muito interessante, como de repente vem tudo à tona e eles passam a ser um elemento chave, e não só sobre petróleo.

[Clarissa Levy] Uma das coisas que, nesse banho de sangue, parece assustar muito, é ver uma certa normalização da violência contra civis, idosos, crianças, mulheres e famílias inteiras, que nada têm a ver, seja com o grupo terrorista, seja com as políticas de Israel. Isso faz lembrar um pouco da Banalidade do Mal, de Hannah Arendt. Ela fala, especificamente do holocausto, que o massacre contra os judeus tinha sido um massacre contra toda a humanidade, que as consequências dessa desumanização são para todo mundo. Isso me vem à cabeça quando vemos essas imagens de pessoas sem qualquer dignidade e humanidade em Gaza. O que você acha que essa barbárie vai gerar? E para onde isso pode escalar?

Sobre isso, eu sou muito pessimista. Não vai para lugar nenhum, daqui uns dias vai ter um cessar-fogo, e ninguém vai lembrar de Gaza, até a próxima crise, quando voltarmos a falar de Gaza, assim como é com os outros lugares. A cerca de seis ou sete meses, mais ou menos, a Brown University dos Estados Unidos — eles têm um órgão que desde os atentados terroristas de 11 de setembro supervisiona as guerras —, faz uma pesquisa detalhadíssima com os custos da guerra: o humanitário, econômico, mortos, feridos, doenças. Eles soltaram o balanço dos 20 anos de guerra ao terror. Eu nunca imaginei a estimativa de mortes diretas e indiretas, são 4 milhões de pessoas mortas, e isso não teve impacto nenhum.  

Então, como você disse, a violência contra os civis acaba sendo naturalizada. Vemos o número de crianças mortas e um filósofo, que escreve na Folha de São Paulo, diz que ‘’crianças morrem em guerras, é triste, mas fazer o quê?’’. Há um cinismo e indignação seletivos, ao ficarem extremamente indignados com algumas coisas, mas não ligarem para outras. 

O que nós conseguimos tirar da guerra contra o terror é que o Afeganistão está em uma das piores situações humanitárias do mundo. O Biden congelou o dinheiro do governo, tem gente passando fome e ele não libera [o dinheiro], mas quer dar esse dinheiro para as vítimas do 11 de setembro. A população do Afeganistão não tem nada a ver com isso, inclusive tem familiares das vítimas do 11 de setembro que falam que se recusam a receber este dinheiro. 

Dentro disso, as sanções econômicas matam demais, como na década de 1990, quando Bill Clinton não fez guerra no Iraque, mas lançou uma sanção econômica. A Unicef estima 250 mil crianças mortas. A guerra econômica é violentíssima, Gaza sofre isso cotidianamente. Ao parar a guerra, volta a escassez de alimento e água, volta a opressão. Após o cessar fogo, ninguém olha mais, não há como reconstruir as cidades, há escassez de remédios. Então, para além da política, temos que resgatar a questão humanitária, tem que haver negociação, para só depois ser discutido questões políticas maiores, como a do Estado Palestino.

Colaboração: Ana Alice de Lima

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