Publicado na Agência Patrícia Galvão –
Nesta terça-feira (31), o movimento social de mulheres foi surpreendido pela aparição pública da ex-deputada Fátima Pelaes, anunciada como nova secretária de Políticas para Mulheres do governo federal. A indicação e nomeação de Pelaes são consideradas incompreensíveis, um desrespeito e uma afronta na opinião de especialistas, pesquisadoras e ativistas feministas ouvidas pela Agência Patrícia Galvão. Elas ainda apontam o desmonte das políticas públicas de garantia de direitos na área e a interferência ilegal de crenças e dogmas no Estado.
Apesar de ainda não nomeada oficialmente, em reunião do presidente interino Michel Temer com secretários de Segurança Pública de todo o país, no Ministério da Justiça, à frente de Pelaes foi colocada placa que a identificava como secretária da área. Pelaes já se pronunciou publicamente contra a interrupção voluntária da gravidez, mesmo em caso de estupro, um dos raros permissivos da legislação brasileira, e se diz contra a distribuição da contracepção de emergência pelo Sistema Único de Saúde.
Confira:
“A nomeação de Fátima Pelaes para a Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres é absolutamente inaceitável, é indignante! Vai contra toda a linha dos movimentos de mulheres, é um desrespeito a nós, mulheres.”
Silvia Pimentel, advogada e representante do Brasil no CEDAW/ONU (Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher da ONU) e Cladem (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher).
“Conheci Fátima Pelaes e a respeitava muito, como ser humano ainda a respeito. Mas, após o acidente que sofreu, passou a trabalhar com outros valores. Ela foi uma aliada do movimento de mulheres no passado, mas após este triste evento na vida dela, passou a pensar, agir e, enfim, ser uma pessoa diferente. A primeira pessoa que conheci, eu comemoraria estar à frente da pasta. Mas a segunda…, quero tudo de bom para ela, mas ela não deve estar à frente de qualquer instância governamental que lute pelos direitos das mulheres.
O Estado moderno democrático, que há centenas de anos estamos buscando, é um estado laico. Um Estado que respeita as várias religiões, mas não se mistura com uma delas. E é um verdadeiro retrocesso se ela tiver sido indicada precisamente por um grupo religioso, no sentido de opor-se às nossas bandeiras, das mulheres.
Temos avançado nas políticas para mulheres, mas o núcleo duro da questão está nos direitos reprodutivos. É onde deve estar nossa resistência e também é onde estão os ataques dos que querem fazer retroceder direitos. E indicar uma pessoa, que respeito, mas que explicitou uma opinião contrária em relação ao nosso ponto chave, o nosso direito de decidir, é uma agressão direta contra as mulheres. É uma afronta. E eu não esperava isso de um governo de transição, por ser um governo de transição, interino. As coisas estão muito piores do que imaginávamos. Muito piores.”
“Acho incompreensível que uma pessoa com este tipo de opinião assuma uma pasta em um governo laico e secular. A Fátima Pelaes tem todo o direito de ter sua opinião. Entretanto, ela não pode deixar que uma opinião de foro íntimo, ligada a sua crença religiosa, interfira em políticas de saúde das mulheres.”
Jacqueline Pitanguy, socióloga, cientista política e coordenadora da ONG CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação.
“Existem princípios universais de direitos humanos: o direito à saúde e o direito à saúde reprodutiva. E existe também um outro princípio universal: a violência contra a mulher, inclusive a violência sexual, constitui violação dos direitos humanos. Temos aí princípios fundamentais. O direito à saúde e o reconhecimento de que crime sexual é violação e requer remédios, tanto punitivos – punir o agressor –, quanto remédios no sentido de atendimento à vitima, e isso se dá fundamentalmente em saúde. E, por essa razão, são raríssimos os países no mundo que não reconhecem o direito da mulher de interromper a gestação em caso de estupro, se assim desejar.
Quanto ao fato de Pelaes ser contra a contracepção de emergência, me lembra a questão enfrentada por Galileu Galilei. Está comprovado que a contracepção de emergência não é abortiva porque opera antes da nidação [implantação do óvulo no útero]. Dizer que não é abortiva é como dizer que a terra gira em torno do Sol: está comprovado cientificamente. A Declaração Universal dos Direitos Humanos garante o direito ao acesso aos progressos da ciência. E isso não pode ser negado em nome de um dogma religioso. Ser contra o acesso à contracepção de emergência é negar o acesso à ciência.”
“Estamos voltando um século para trás com esta indicação. Realmente não entendo como, em pleno século 21, se indica uma pessoa com uma posição tão retrograda e atrasada. Vivemos em uma República laica e leiga e não podemos ter à frente das políticas para as mulheres uma pessoa que queira impor suas crenças religiosas. É um contrassenso!”
Eva Blay, socióloga, professora titular sênior da Universidade de São Paulo e conselheira do Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero/USP.
“Praticamente todas as religiões permitem a interrupção da gestação em caso de estupro. Não sei o que aconteceu com o Temer. Ele é uma pessoa avançada, com quem compartilho ideais. Fundei a primeira Delegacia da Mulher no Brasil com ele. Deve ter sido enganado. Eu espero que ela [Fátima Pelaes] caia logo!”
“Acho que o impacto da Fátima Pelaes assumir a Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres será o mesmo que o Golpe tem para a política pública como um todo. A nomeação dela é a cara do Golpe!”
Jurema Werneck, médica, coordenadora da organização feminista negra Criola e integrante do Grupo Assessor da Sociedade Civil Brasil da ONU Mulheres.
“O Golpe foi dado contra os direitos das mulheres, das mulheres negras e contra políticas sociais. Assim, não é surpresa para nós ela assumir este lugar. É lamentável que uma mulher se posicione ao lado do Golpe, contra as mulheres e contra as mulheres negras. Mas, apesar de profundamente lamentável, é esperado. Este Golpe foi dado contra nós. A única saída para nós, mulheres, é vencer o Golpe e restabelecer a democracia, não há outra janela que não colocar os golpistas para fora do Executivo. Eles estão sentados em uma cadeira que não pertence a eles. São esses, os mesmos que estão ao lado da violência contra LGBTs, perseguições a religiões de matriz africana, à frente desse tipo de coisa.
Temos atos e mobilizações nas ruas e nossa opção é ser contra o grupo todo, não contra essa mulher. Somos contra tudo o que significa esse golpe de homens brancos, heterossexuais – que se dizem heterossexuais – e cristãos. Somos também contra Marta Suplicy, tanto quanto contra Fátima Pelaes. Somos contra todos!”
“Eu acho um retrocesso gravíssimo defender o fim do aborto em caso de estupro. É querer voltar atrás em uma lei de 1940 que prevê uma das raras possibilidades de aborto legal. Essa postura do Temer é um verdadeiro escárnio com as mulheres e com as lutas feministas deste país.”
Heloísa Buarque de Almeida, antropóloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre
Marcadores Sociais da Diferença do Departamento de Antropologia da FFLCH/USP e coordenadora do programa USP Diversidade.
“É um momento assustador, em que vários retrocessos aparecem juntos, muitos vêm como proposta do Legislativo, e que agora se combinam a um Executivo sem mulheres nos Ministérios. Junto também vem a postura de que não devemos falar de gênero nas escolas. Não vamos conseguir resolver essa desigualdade de gênero que gera violências se não pudermos falar de gênero nas escolas, para as crianças, desde muito pequenas.
E muitos desses retrocessos vêm “em nome da religião”, atacando direitos constitucionais, garantidos pela Constituição e promovidos por órgãos internacionais, inclusive por meio de acordos dos quais o Brasil é signatário. É importante destacar que ninguém é contra a religião, as pessoas têm direito à religião, mas o Estado não pode ter isso como paradigma.
Quem é contra o aborto em caso de estupro, por exemplo, que não faça a interrupção, se isso acontecer. Mas essa pessoa não pode tirar o direito a esse atendimento das demais mulheres. Defender o Estado laico quer dizer que cada um tem direito a sua religião, mas que a religião de um grupo não pode ser imposta para restringir direitos de um país todo. Afinal, não é justamente por isso que o Estado Islâmico é criticado?”
Foto da capa: Marcelo Camargo/ Agência Brasil