Esquivel: ‘Democracia não é só pôr o voto na urna. É igualdade’

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Publicado em RBA – 

“Sobrevivente de uma época”, argentino vencedor do Nobel da Paz aponta retrocessos políticos e sociais, defende Lula e recorda histórias com o cardeal Arns. E diz que Estados Unidos nunca serão “aliados”

Adolfo Perez Esquivel“Depois das ditaduras, entramos em processos democráticos, mais formais do que reais”, diz Esquivel

São Paulo – “Não é muita ganância os argentinos terem Messi e o Papa ao mesmo tempo?”, pergunta Juca Kfouri a seu convidado, o argentino Adolfo Pérez Esquivel, que abre os braços e esboça um sorriso, dizendo: “Há que aceitar as coisas. Creio que ninguém escolhe essas coisas, e a vida é feita de surpresas…” O craque Lionel Messi, que atua no Barcelona da Espanha (e jogará na Copa em junho), e o Papa Francisco são compatriotas de Esquivel. Em seguida, o jornalista quer saber ele é hincha do Boca Juniors ou do River Plate, os eternos rivais do país vizinho, mas ele se declara torcedor do Independiente, el diablo de Avellaneda, e lembra de um amigo eterno, o escritor uruguaio Eduardo Galeano. Este talvez seja o único momento mais descontraído da conversa para o programa Entre Vistas, da TVT, exibido na noite desta terça-feira (13).

Entre Vistas pode ser visto no canal digital 44.1, além dos canais da TVT no Youtube e no Facebook. A íntegra também é publicada pela RBA. O programa foi exibido na TV Bahia, na Rede Minas e na TV Universidade Federal de Goiás.




Com a presença da professora de Direito Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carol Proner, organizadora de um livro com textos de juristas sobre o impeachment (A Resistência ao Golpe de 2016), o Entre Vistas teve muito debate sobre América Latina, democracia e direitos humanos. Além do processo contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem Esquivel visitou durante sua passagem pelo Brasil, duas semanas atrás. O Nobel da Paz de 1980 defendeu a indicação de Lula para o prêmio, por suas ações de combate à pobreza (“A fome é um crime”), e disse que querem tirar o ex-presidente da disputa eleitoral “acusando-o de um delito inexistente”.

“Democracia é igualdade para todos, não é só pôr o voto na urna”, afirmou Esquivel. “Para mim, democracia significa direitos iguais. Não se ganha, se constrói”, diz o escultor, artista plástico e ativista, apontando uma “violência estrutural” na região, simbolizada pela pobreza, e defendendo a democracia participativa. “Estamos nesta luta permanente.”

Aliados? Nunca

É, de novo, como nos anos 1960, a “mão grande” dos Estados Unidos na América Latina?, quer saber Juca.

“Devemos levar em conta que os Estados Unidos implementaram bases militares em todo o continente. Eles não estão aí para cuidar de nós, estão aí para dominar. Por isso eu insisto que os Estados Unidos nunca serão aliados e solidários com a América Latina. Nunca”, enfatiza. Nem com Barack Obama. “Muito menos”, diz Esquivel, contando que recebeu uma “carta extensa, quase três páginas”, do ex-presidente norte-americano, em que o mandatário dizia concordar com vários pontos, como fechar a prisão de Guantánamo, levantar o bloqueio a Cuba, aproximar-se com a América Latina. Mas, na correspondência, afirma também que não podia fazer certas coisas, que dependeriam do Congresso dos Estados Unidos. E depois veio Donald Trump, que está levantando o “muro da infâmia”, querendo separar os povos.

“A América Latina é um continente diverso, de muitos contrastes, de lutas sociais. Não é só um continente dominado pelas grandes potências, principalmente pelos Estados Unidos, mas também pelo grande capital”, diz Esquivel. “É um continente riquíssimo, de recursos naturais e humanos, porém violentado. Há uma violência social e estrutural, e isso viola os direitos dos povos.  Depois das ditaduras, entramos em processos democráticos, mais formais do que reais. Devemos compreender que as democracias não são dadas. Não basta colocar o voto numa urna e dizer que vivemos em uma democracia. Democracia é direito e igualdade para todos e todos. Esse é o espaço que temos de gerar.”

Ele fala das várias violações de direitos humanos na região – e direitos dos povos. “Muitas vezes em que se fala de direitos humanos, fazem unicamente referência a uma pessoa, o que também é importante, mas se esquecem dos direitos da população. Direito ao meio ambiente, a uma vida digna, ao trabalho.”

É isso que se passa atualmente na América Latina, acrescenta Esquivel, respondendo à pergunta inicial de Juca. “Tivemos uma força muito importante, de governos democráticos, que foi se perdendo, como o de Hugo Chávez, o caso de Cuba, Brasil com Lula, Correa no Equador, na Argentina dos Kirchner, Pepe Mujica no Uruguai, Fernando Lugo no Paraguai. Depois veio uma avalanche de imposições de golpes de Estado mascarados, aos moldes de ditaduras militares, apenas para citar o golpe em Honduras, que retira Manuel Zelaya e pratica muitas violações de direitos humanos e direitos dos povos. O assassinato de (Berta) Cáceres e de muitos outros líderes dos agricultores, mais de 100 jornalistas exilados, presos ou assassinados. Parece que o problema em Honduras não foi mostrado pela grande mídia. Fica mais centrado na Venezuela, em o que foi com Hugo Chávez e o que é com Maduro. E no caso do Brasil, como vocês bem sabem, o golpe de Estado contra Dilma Rousseff, e agora toda essa campanha, essa situação, na qual todo o continente fica preocupado com o fato de tentarem impedir a participação de Lula nas eleições, acusando-o de um delito inexistente, de setores que querem impedir que o Brasil seja fonte de inspiração e trabalho social.”

Prisão e solidariedade

Sobre o Nobel recebido em 1980, ele lembra que tinha acabado de sair da prisão e recebeu a notícia com surpresa. “Meu trabalho não é de uma pessoa, é compartilhado por milhares de indígenas, de camponeses, homens e mulheres, favelados.” Homens e mulheres pobres, que lutam por um mundo melhor, e em nome dessas pessoas Esquivel diz tentar manter a coerência até hoje. Ele conta que, juntamente com a Universidade de Buenos Aires, está formando a Casa dos Prêmios Nobel Latino-americanos.

Ele fala do movimento Clamor, um grupo criado no final dos anos 1970 para ajudar perseguidos políticos do Cone Sul e que ajudou a recuperar, no Chile, as duas primeiras crianças argentinas sequestradas durante a ditadura.

Esquivel recorda a convivência com “muitos irmãos e irmãs solidários com a vida do povo”, como Dom Paulo Evaristo Arns, que sempre recebia refugiados de países do continente. Lembra de um encontro “tenso, doloroso, duro”, no ano da morte sob tortura do jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, em 1975. Naquele ano, ele e outros estavam organizando um encontro de bispos latino-americanos. O argentino foi preso ainda no aeroporto. “Então me levaram, me encapuzaram, puseram gravações com gritos de torturados, não nos permitem nem encostar na parede…” Queriam que ele denunciasse opositores do regime. Foi tirado da prisão por Dom Paulo.

Em 1981, nova prisão no Brasil. Ele iria participar de uma palestra na seção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio de Janeiro. “Falei sobre impunidade e mandaram me prender. Mas eu havia mudado minha passagem de avião, eles foram me prender no aeroporto do Rio e me encontrei com Leonardo Boff, que disse que iria naquele voo, e pediu que mudasse o meu para viajarmos juntos. E eu fiz isso. Então, como não puderam me prender no Rio, foram me prender em São Paulo.” Novamente, Dom Paulo promoveu uma manifestação e foi libertá-lo.

“Havia um senador… Passarinho…”, diz, ao que Carol e Juca exclamam “Jarbas Passarinho!”, citando um dos expoente políticos do regime autoritário. “Dom Paulo disse que a democracia no Brasil era apenas para um passarinho”, diz o argentino, recordando um trocadilho do religioso brasileiro. “Nós trabalhamos muito, ficamos muito próximos.”

Entrevista com Esquivel

Político, não partidário

Criado pelos franciscanos, ele lembra que até usa a saudação dessa ordem: Paz e bem. E diz que o Evangelho tem de ser “concreto”, voltado para o povo, para o amor ao próximo, à humanidade, à mãe Terra. “A partir daí, sempre busquei de participar nos bairros, nas organizações populares, nas paróquias, um trabalho essencialmente político. “Nunca militei em partido político”, observa Esquivel, que enfatiza a “atividade política, não partidária, justamente para ter liberdade para poder atuar nos momentos que julgamos necessário”. E recorda a amizade com “um homem maravilhoso”, Dom Hélder Câmara.

Juca pergunta sobre a relação com o Papa e cita acusações de que o pontífice teria sido complacente com a ditadura argentina. “Sim, houve muitos ataques”, lembra Esquivel, contando que estava na Itália quando Francisco foi escolhido Papa. “Foi quando a BBC ligou e eu neguei isso, que Francisco sempre foi um homem solidário, trabalhava com os mais pobres, nas favelas, no trabalho social. Ajudou gente durante a ditadura. Mas houve um problema com dois sacerdotes (Francisco Jalics e Orlando Yorio), que diziam em uma carta que as ações do Papa não haviam sido suficientes. Mas eles conseguiram ser retirados da prisão em cinco meses. Fiquei preso por mais de dois anos, e ninguém conseguiu me tirar da prisão. Passei por tortura, pelos chamados ‘voos da morte’, sou um sobrevivente dessa época. Francisco ainda não era bispo, era um superior na comunidade jesuíta, e tratou de ajudar-nos nisso. E podemos ver no mundo a obra que está fazendo como Papa. Ele tem também uma visão não só religiosa do Evangelho, mas política, assim como Dom Paulo Evaristo Arns, Fragoso, Dom Hélder Câmara.”

A professora e jurista Carol Proner quer saber de Esquivel como o Papa percebe o momento de retrocesso na América Latina e como é a relação com o governo Macri, na Argentina.

Ele conta que tem uma “comunicação regular” com Francisco. “Sempre que viajo a Roma, nos encontramos numa salinha e falamos de muitos assuntos. Há uma grande preocupação sobre a situação latino-americana, a situação mundial, com a situação de pobreza, miséria e dor.”

Juca lembra dos protestos frequentes contra o governo Macri. “Sim, há uma resistência, principalmente pelas demissões. Há um crescente número de demissões, fechamento de escolas, de hospitais. Acontece que esse sistema neoliberal que foi proposto privilegia o capital financeiro, acima das necessidades do povo.” Ele fala do assassinato de Rafael Nahuel, um jovem mapuche baleado pelas costas por forças de segurança. “Há o caso de um policial que foi felicitado por Macri (na Casa Rosada, sede do governo) por ter assassinado um jovem. Isso deixa claro que as pessoas estão reagindo. Há protestos nos estádios de futebol, nas ruas há uma reação muito forte, com uma repressão brutal, por não se aceitar as respostas que Macri queria impor. Então, essa resistência vai crescendo.”

“No caso do Brasil, nós sofremos a interrupção do mandato presidencial por um impeachment sem crime. Portanto, um golpe, em 2016, enquanto na Argentina nós tivemos uma eleição institucional”, compara Carol, que vê uma “pequena vantagem político-moral, “porque fomos golpeados”. Macri faz reformas sob grande resistência, mas sob um marco institucional, enquanto no Brasil o governo tenta impor mudanças em um vácuo de legitimidade institucional.

Então, questiona Juca, como falar em uma verdadeira democracia quando as nossas eleições, na América Latina, são “contaminadas” pelo capital, que elege seus candidatos? Esquivel observa que, muitas vezes, os dirigentes políticos partem das divergências em vez das concordâncias. “Que tipo de programas? Para quê? Porque se forem pessoais, não servem. O problema está em ver que tipo de país querem. A busca do bem comum para uma sociedade. Creio que aí está o problema. Quais são os projetos alternativos? Por que Macri ganha as eleições na Argentina? Como se produz o golpe de Estado no Brasil que tirou Dilma Rousseff. Vocês têm um governo de fato e não um governo democrático. Temos um governo eleito pelo povo, que tampouco é democrático.”

A força vem de todos, não é de uma pessoa, insiste Esquivel, citando também a “resistência cultural” em artistas como Chico Buarque, Mario Benedetti (escritor uruguaio), León Gieco (músico argentino). Mas, para mim, o importante é a vida espiritual. Não sou apenas um homem social, político. E isso me anima permanentemente. Sempre digo: não se pode perder o sorriso da vida. Quando deixamos de sorrir é porque nos venceram”.

Lula e o Nobel

E ele volta a citar o ex-presidente. “Que apesar de tantos ataques, de tantas coisas… Vou indicar Lula ao Prêmio Nobel da Paz. Penso que ele merece por todo seu trabalho contra a pobreza e a fome. A fome é um crime.”

Carol ressalta a importância da presença de Esquivel no Brasil, em especial em um momento como o atual, e quer saber como é o trabalho dele como professor. “Já dei aulas na Faculdade de Arquitetura, nas escolas de Artes, na Faculdade de Ciências Sociais”, conta, esperando ajudar os jovens a pensar de outras maneira. “Pois neste mundo tão concentrado, da mesma forma que há monocultura, o mesmo cultivo de soja, eucalipto, milho, o cultivo mais perigoso é a monocultura de mentes. A diversidade é a grande riqueza dos povos Temos que trabalhar sobre isso, sobre a diversidade, a consciência crítica. Temos de transmitir, temos de acompanhar a nova geração. Creio que aí está a semente do pensamento filosófico, ético, de valores.”

Ao citar o Fórum Social Mundial, ele diz que outro mundo só será possível se houver capacidade de se unir e buscar um novo pensamento. “O povo não se deu por vencido, tem a capacidade de resistência. E os jovens, aqueles que nos escutam, têm de compartilhar, saber se aproximar do outro,  saber que o problema do outro é também o nosso. Essa é a forma de construir.” Esquivel observa ainda que “a paz não é a ausência de conflito”.

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