Essequibo, Guiana e Venezuela para além das manipulações midiáticas

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Quando se fala em “noticiário internacional da grande imprensa”, também se fala em “manipulação pró-interesses imperialistas”. Quando se fala em “Venezuela”, em especial, temos mais manipulações ainda

Por Francisco Fernandes Ladeira, compartilhado da Revista Fórum




Mapa da América do Sul com a região do Essequibo destacada.Créditos: Agencia Brasil

Em meio ao genocídio do povo palestino por parte do Estado de Israel e a posse de Javier Milei como presidente da Argentina, a grande imprensa brasileira encontrou espaço em suas coberturas internacionais para noticiar os desdobramentos do referendo realizado na Venezuela, no domingo (3/12), em que a população do país votou pela criação de um novo estado, na região de Essequibo (território pertencente à vizinha Guiana, mas alvo de uma disputa que remete ao período colonial).

Como sabemos, quando se fala em “noticiário internacional da grande imprensa”, também se fala em “manipulação pró-interesses imperialistas”. Quando se fala em “Venezuela”, em especial, temos mais manipulações ainda. Daí surgem todos aqueles clichês, maniqueísmos, tipificações e falsas narrativas: “o ditador Maduro”, “a ditadura bolivariana”, “populismo”, “venezuelanos estão comendo cachorros”, “um país em constante estado de caos”, “caudilho”, “chavismo é sinônimo de bolsonarismo” e por aí vai.

Na imprensa hegemônica brasileira, o discurso predominante aponta que o referendo sobre Essequibo foi um factoide criado pelo “ditador” Nicolás Maduro, para tentar mobilizar a população e fustigar a oposição, um ano antes da eleição presidencial (em um momento em que ele se sente enfraquecido no cenário interno), pois a “disputa territorial entre Venezuela e Guiana pelo controle de Essequibo (supostamente) já estaria resolvida há mais de um século”. Nessa lógica, em artigo publicado no Uol, Reinaldo Azevedo escreveu que “por petróleo, Maduro faz da Guiana as suas Malvinas” (em referência ao território reivindicado pela Argentina, ironicamente, também usurpado pelo imperialismo britânico).

No entanto, “Essequibo” é um assunto muito mais complexo do que um minuto e meio no Jornal Nacional, duas páginas da Folha de São de Paulo ou um comentário de Ariel Palácios na GloboNews.

Como todo (bom) “Manual de manipulação da grande imprensa” sugere, é preciso ocultar os principais acontecimentos históricos, necessários para se entender uma determinada questão geopolítica. Assim, quanto mais o público desconhece a historicidade por trás de um conflito, mais fácil a adesão à narrativa midiática.

Em meados do século XVIII, o território de Essequibo, pertencente à então Capitania-Geral da Venezuela (distrito administrativo colonial do Império Espanhol), começou a ser ocupado por colonos britânicos. Na época, “coincidentemente” foram descobertas reservas de ouro na região.

Quando a Venezuela se tornou um país independente, em 1811, reivindicou o Essequibo junto a Londres, que já havia anexado ilegalmente a região às suas possessões coloniais na América do Sul. Para tanto, Caracas evocou o preceito jurídico internacional do uti possidetis iuris, que “reconhece e aceita como fronteiras internacionais, na data da sucessão colonial, tanto as antigas delimitações administrativas estabelecidas dentro de um mesmo império colonial como as fronteiras já fixadas entre colônias pertencentes a dois impérios coloniais distintos”.

Após décadas de disputas, em 1899, a decisão de uma Corte Arbitral, instalada em Paris, composta por um russo (“coincidentemente” amigo pessoal da rainha da Inglaterra) dois britânicos e dois estadunidenses (que “representaram” o lado venezuelano), decidiu que Essequibo pertencia à Inglaterra (para a surpresa de “zero pessoas”). Os venezuelanos, evidentemente, não aceitaram a decisão.

Posteriormente, na década de 1940, Severo Mallet-Prevost, um dos advogados estadunidenses que integrou a “defesa” da Venezuela na arbitragem em Paris, em memorando publicado no The American Journal of International Law, revelou a farsa do parecer emitido na capital francesa. “[A decisão] foi injusta e despojou [a Venezuela] de um território muito extenso e importante, sobre o qual a Grã-Bretanha não tinha, na minha opinião, a menor sombra de direito”, escreveu Mallet-Prevost.

A revelação do complô arquitetado por Washington e Londres deu mais fôlego para a Venezuela seguir em sua histórica reivindicação territorial. Em 1966, com a autonomia da Guiana em relação à Inglaterra, o país recém-independente reconheceu ser Essequibo uma área em litígio, ou seja, em disputa com a Venezuela, numa questão passível de ser debatida/decidida diplomaticamente.

Recentemente, em 2015, a companhia estadunidense ExxonMobil, com aval do governo guianense, descobriu campos de petróleo no litoral de Essequibo, passando a explorar esta riqueza mineral (na velha lógica da América do Sul como “quintal de Washington”). Porém, como explicou o advogado venezuelano Jesús David Rojas, em entrevista ao Brasil de Fato, a exploração unilateral de recursos em territórios não delimitados, como é o caso de Essequibo, não está permitida pelo direito internacional.

Portanto, Maduro não reacendeu uma disputa territorial enterrada há séculos, exclusivamente com “fins eleitoreiros”, como capciosamente insinuam os discursos da grande imprensa. O referendo do último dia 3 de dezembro não ocorreu no “vácuo”.

Além disso, a presença do imperialismo estadunidense, por meio de uma de suas principais petroleiras, numa área de fácil acesso ao litoral venezuelano, é um alerta à própria segurança e integridade territorial da nação bolivariana. Não por acaso, como adverte Andrew Korybko, no livro “Guerras híbridas – das revoluções coloridas aos golpes”, uma das principais estratégias imperialistas para desestabilizar e/ou derrubar governantes considerados “hostis” está, justamente, na presença econômica e na cooptação dos países vizinhos. Logo, a Guiana está mais para “Ucrânia” do que para “Malvinas”.

Como se pôde constatar no decorrer deste texto, o governo venezuelano possui respaldo histórico e jurídico para reivindicar a região de Essequibo como parte constitutiva de seu território. Claro que é passível de questionamento a forma como Maduro tem acelerado o processo de criação de um estado em Essequibo, o que foi feito, inclusive, pelo governo brasileiro. Nesse sentido,durante a Cúpula do Mercosul, em referência à crise entre Venezuela e Guiana, Lula afirmou que “não queremos guerra na América do Sul”.

Desse modo, qualquer jornalismo minimamente honesto, objetivo, plural e com direito ao contraditório, deveria levar em conta não apenas o lado guianense, mas também os argumentos de Caracas para reivindicar Essequibo. Concordar ou não com as atitudes de Maduro após o referendo, é outra questão.

Evidentemente, este não é o caso do oligopólio que domina a comunicação de massa no Brasil, haja vista que as linhas editoriais de seus noticiários internacionais são voltadas exclusivamente para atender aos interesses das grandes potências, sobretudo dos Estados Unidos. Assim, no que depender da mídia hegemônica, a América do Sul seguirá como “quintal” de Washington, como bem ilustra a exploração de petróleo em Essequibo.

Por outro lado, qualquer ator ou movimento político que represente o mínimo empecilho para dominação imperialista na região (a exemplo de Maduro e do chavismo) serão alvos privilegiados das narrativas caluniosas dos maiores jornais, revistas, sites, estações de rádio e emissoras de televisão do país. Trata-se, em síntese, de uma prática típica de um jornalismo subserviente, vira-lata e contrário às aspirações dos povos ditos “subdesenvolvidos”.

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