O decênio decisivo: livro do professor Luiz Marques mostra, sem meias palavras, o tamanho do desafio, mas também aponta os caminhos para uma política de sobrevivência
Por José Eustáquio Diniz Alves, compartilhado de Projeto Colabora
na foto: No centro de Manaus, a instalação Eggcident, do artista holandês Henk Hofstra, alerta para os riscos do colapso socioambiental que ameaça o planeta. Foto Suamy Beydoun/AGIF via AFP
As mudanças climáticas e a degradação ambiental não são meras possibilidades que eventualmente podem ameaçar as gerações futuras. O desequilíbrio ecológico é uma dura realidade que afeta o cotidiano nos níveis local, nacional e global. A crise já está presente no dia a dia. Ninguém está isento desse impacto. Portanto, não podemos mais ignorar ou minimizar o fato de que estamos enfrentando uma emergência climática e ambiental, a qual tem desencadeado uma série de desastres simultâneos, que têm o potencial de ser mais letal nas próximas décadas, caso não tomemos as medidas adequadas.
Os dados são inequívocos. Os últimos nove anos (2014 a 2022) foram os mais quentes do Holoceno (últimos 12 mil anos) e a temperatura em 2023 deve superar em muito todas as marcas anteriores. O mês de julho de 2023 foi o mais quente já registrado e o mês de setembro de 2023 apresentou a maior anomalia mensal da temperatura, chegando em torno de 1,8º Celsius, acima da média do período 1850-1900.
Nos primeiros 9 meses de 2023 houve 86 dias com temperaturas acima de 1,5º Celsius, e o corrente ano pode, de forma inédita, ultrapassar o limite mínimo estabelecido no Acordo de Paris. Estudo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostrou que o número de dias com ondas de calor passou de 7 para 52 em 30 anos no Brasil. Nos dias 17 e 18 de novembro de 2023 as anomalias diárias da temperatura global atingiram perigosamente o limite superior, de 2º C, do Acordo de Paris.
A Organização Meteorológica Mundial divulgou um novo relatório em 15 de novembro de 2023, mostrando que a concentração média de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera atingiu 418 partes por milhão (ppm), em 2022, chegando pela primeira vez a um índice 50% acima da era pré-industrial. A última vez que a Terra registou uma concentração de CO2 comparável ao nível atual foi entre 3 e 5 milhões de anos atrás. Naquela época, a temperatura estava entre 2 e 3° C mais quente e o nível do mar era de 10 a 20 metros mais alto do que o atual.
O artigo “Assessing the size and uncertainty of remaining carbon budgets”, publicado recentemente na Nature Climate Change (30/10/2023), mostrou que sem reduções rápidas nas emissões de CO2, o mundo tem 50% de probabilidade de ultrapassar definitivamente um aquecimento de 1,5°C até 2030, pois está prestes a ultrapassar o orçamento de carbono.
O orçamento global de carbono é a quantidade líquida de dióxido de carbono (CO2) que os humanos podem emitir, mantendo o aquecimento global abaixo de um determinado limite, tendo em conta o efeito de outros fatores climáticos de origem antropogênica. Portanto, restam menos de 7 anos para a humanidade evitar o descontrole climático e garantir um espaço seguro para a sobrevivência dos seres humanos e das demais espécies vivas da Terra.
Artigo publicado na prestigiosa revista acadêmica The Lancet (Romanello et al, 14/11/2023) mostrou que as mortes de pessoas com mais de 65 anos relacionadas ao calor extremo já aumentaram 85% desde a década de 1990 e o número de pessoas que correm o risco de morrer devido aos efeitos do calor extremo pode aumentar em cinco vezes até 2050.
Não são apenas os seres humanos que estão ameaçados. A situação do mundo natural é crítica. Um estudo publicado na revista Nature, em outubro de 2023, concluiu que quatro em cada dez espécies de anfíbios correm risco de desaparecer por conta da destruição crescente de seus habitats e dos efeitos das mudanças climáticas ao redor do mundo, acelerando o processo da 6ª extinção em massa das espécies. A humanidade já superou a capacidade de carga da Terra e a Pegada Ecológica global está 71% acima da Biocapacidade global.
Artigo publicado na revista Science Advances, em setembro de 2023, mostra que seis das nove fronteiras planetárias foram ultrapassadas, o que significa aumento dos riscos de desastres naturais e que o planeta está entrando em um estado novo, perigoso e muito menos estável. A ultrapassagem das fronteiras planetárias desde o espaço seguro até as zonas de alto risco é um indicativo de que amplas áreas da Terra estão ficando inóspitas. A habitabilidade da Terra está se deteriorando rapidamente e a sobrevivência dos seres vivos do planeta, no longo prazo, é uma questão a ser decidida na atualidade e não pode ser procrastinada.
O decênio decisivo
Conhecer a dinâmica da crise climática e ambiental é fundamental para a tomada de medidas de mitigação e de adaptação à nova realidade do sistema planetário. É essencial utilizar a ciência para estabelecer políticas de longo prazo para evitar o colapso ecológico. O desafio é enorme.
A tarefa de destrinchar os números, modelos e tendências foi realizada de maneira exemplar pelo professor Luiz Marques no livro “O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência”, publicado pela Editora Elefante, em maio de 2023. Com profundo rigor científico, o livro apresenta um diagnóstico detalhado dos principais pontos de inflexão globais e elabora “oito propostas para uma política de sobrevivência”.
Luiz Marques é professor livre-docente aposentado e colaborador do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ele se tornou uma referência nos estudos ambientais, articulando de maneira rigorosa os princípios da ciência, a divulgação científica e a defesa de políticas públicas de caráter ecossocial.
O livro “O Decênio Decisivo” é uma obra que sistematiza de maneira didática o estado da arte dos estudos ambientais e climáticos e as consequências econômicas e sociais da superação dos limites das fronteiras planetárias, pois diversos componentes de larga escala do sistema Terra já foram ultrapassados ou estão em vias de transpor pontos de não retorno em direção a estados de equilíbrio mais hostis às sociedades humanas e à toda a vida da comunidade biótica.
O livro foi finalizado em setembro de 2022 e não poupa palavras para revelar que “estamos diante de um colapso ambiental de proporções gigantescas” e que as crises climática e ambiental apresentam indicadores de aceleração, por isto mesmo “temos pouco tempo para agir antes que a situação fique ainda pior do que indicam esses graves prognósticos”.
Um ano depois de enviar o livro “O Decênio Decisivo” para a gráfica, a realidade tem se mostrado mais traumática do que indicavam as previsões mais sombrias. Com a formação do fenômeno El Niño, em junho de 2023, os meses seguintes bateram todos os recordes anteriores e superaram as médias históricas por larga margem. O Rio Grande do Sul foi atingido, de forma inédita, por diversos ciclones extratropicais que provocaram enchentes, grandes prejuízos econômicos e a morte de dezenas de pessoas.
A Amazônia, bioma com a maior bacia hidrográfica do mundo passa pela sua seca mais severa, com uma vila sendo destruída pelo fenômeno das “terra caídas”, com as comunidades ribeirinhas ficando isoladas e sem água potável para beber, com o ar irrespirável em Manaus e com mais de 100 botos mortos pela alta temperatura e baixa oxigenação das águas do lago Tefé, no médio Solimões.
As altas temperaturas estão acelerando o degelo nos polos, na Groenlândia e nos glaciares. O degelo do Himalaia ameaça a segurança hídrica de mais de um bilhão de asiáticos. O Ártico pode ficar sem gelo no verão já na próxima década. E a perda de gelo na Antártida tem assustado os cientistas que nunca viram a perda de mais de 2 milhões de km2 do gelo marinho. O degelo aumenta a retroalimentação do calor, pois o albedo do oceano é menor, o que significa que as águas escuras absorvem mais energia solar em vez de refleti-la.
Se a realidade climática e ambiental tem se mostrado ainda mais dramática do que se imaginaria no ano passado, o diagnóstico de que o destino das sociedades se define neste decênio é, indubitavelmente, preciso. Como afirmou o eminente químico e climatologista Will Steffen (1947-2023): “Estamos agora numa bifurcação. Não teremos outra década para hesitar como fizemos na década passada”.
A verdade que ficou evidente de 2022 a 2023 é que, de fato, estamos no decênio decisivo. Por conseguinte, em conformidade com os estudos científicos mais consolidados, o professor Luiz Marques diz sem rodeios: “Se a presente trajetória não se alterar significativamente no presente decênio, se continuarmos a viver na ilha da fantasia do ‘crescimento sustentável’, o que teremos será o que a ciência há decênios vem predizendo com precisão: um futuro no qual os impactos serão cada vez maiores e mais sistêmicos, tornando nossas possibilidades de adaptação cada vez menores”.
O autor mostra também que um futuro pior é agora inevitável, mas ações políticas imediatas para atenuar a piora redundarão em possibilidades crescentes de reversão de tendências, de atenuação dos impactos, de adaptação e, portanto, de sobrevivência. No fechamento do livro, são apresentadas oito propostas para uma política de sobrevivência em um mundo mais inóspito e com crescentes áreas de uma Terra, proporcionalmente, mais inabitável.
Propostas para uma política de sobrevivência
Desta forma, no capítulo final do livro é apresentada uma arquitetura de referência de um programa de ação política concreta que caberá às sociedades, coletivamente, formular e desenvolver. Essa moldura não será realizada, obviamente, neste decênio crucial, mas, se até 2030 não tivermos avançado significativamente em sua direção, teremos, com toda a probabilidade, perdido o último decênio para agir de modo a evitar o pior.
- Redução emergencial das diversas desigualdades entre os membros da espécie humana;
Em um mundo onde as atividades antrópicas já ultrapassaram a capacidade de carga da Terra não se pode contar com o crescimento infinito em um planeta finito. O meio para acabar com a pobreza, a fome e a exclusão social não será via crescimento desregrado da produção de bens e serviços, da exploração de recursos naturais e da poluição do solo, da água e do ar. O pleno emprego e o trabalho decente, junto com a redução das desigualdades sociais podem garantir o bem-estar humano e ambiental, desde que realizado conjuntamente com a mudança do modelo de produção degradador da natureza.
- Diminuição do consumo humano de materiais e de energia;
A humanidade já ultrapassou a capacidade de resiliência da Terra. O montante da pegada ecológica é superior à biocapacidade do planeta. Neste contexto, a permanência da civilização humana depende da diminuição do montante de consumo de materiais e de energia, pois a ECOnomia é um subsistema da ECOlogia e é impossível a primeira ser maior do que a segunda.
- Extensão da ideia de sujeito de direito às demais espécies, à biosfera e às paisagens naturais;
A ideologia antropocêntrica considera que todo o mundo natural pertence ao bel-prazer da humanidade. Mas o planeta não é um “recurso” a ser dominado e explorado pela economia, mas sim, o lugar de habitação comum de seres vivos interdependentes e sujeitos de direitos intrínsecos. Nenhuma espécie vive sozinha, pois o mundo é, naturalmente, ecocêntrico. O ecocídio é também uma forma de suicídio.
- Restauração e ampliação das reservas naturais e das reservas indígenas, a serem consideradas como santuários inacessíveis aos mercados globais;
A atual interferência humana sobre o mundo não-humano é excessiva e a situação está piorando aceleradamente. Para reverter este quadro, as florestas, assim como os demais biomas terrestres, os oceanos e demais ambientes de água doce, precisam urgentemente adquirir um estatuto jurídico de proteção muito mais efetivo e no âmbito de um direito internacional mandatório. Além de garantir o direito inalienável dos povos originários e de suas culturas.
- Desmantelamento da economia global e transição para uma civilização descarbonizada;
O mundo precisa abandonar a energia fóssil e fazer uma transição para uma economia descarbonizada. O sol e o vento são recursos naturais abundantes e renováveis, mas, indubitavelmente, não podem fazer milagres e nem evitar o imperativo do metabolismo entrópico, como ensina a escola da economia ecológica. As energias renováveis não são suficientes para manter a expectativa do número crescente de consumidores ávidos por um padrão de consumo conspícuo e insustentável. Ao invés de uma economia globalizada em constante crescimento, caberia experimentar um estilo de vida com base nos princípios da Simplicidade Voluntária.
- Fim da globalização do sistema alimentar e sua transição para uma alimentação baseada em nutrientes vegetais;
A crise climática e ambiental tem afetado o preço da comida e a crescente produção de alimentos tem contribuído com cerca de 30% das emissões globais de gases de efeito estufa. O preço dos alimentos atingiu um pico no triênio 1973-1975 (em decorrência da guerra do Yom Kippur e do consequente choque do preço do petróleo). Mas, nas últimas duas décadas do século XX, os preços caíram e atingiram o nível mais baixo na virada do milênio. Todavia, nos anos 2000, tem ocorrido uma elevação significativa, sendo que o preço dos alimentos no triênio 2021-2023 superou o nível de 50 anos atrás e tende a se manter em alto patamar nas próximas décadas. Desta forma, construir um sistema alimentar baseado em nutrientes vegetais, produzidos por uma agricultura orgânica, local, de baixo preço, variada e respeitosa dos habitats selvagens, constitui uma tarefa premente.
- O arcabouço jurídico internacional vigente deve superar o axioma da soberania nacional absoluta em benefício de uma soberania nacional relativa;
O arcabouço jurídico da soberania nacional não tem dado conta de resolver os problemas gerados pela crise ecológica global, pois a natureza não tem fronteiras e os desafios exigem soluções conjuntas e de caráter holístico. A governança internacional tem falhado na implementação das metas do Acordo de Paris e na implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030 da ONU. O Estado-nação tem sido uma estrutura disfuncional diante das ameaças de natureza global.
- A aceleração da transição demográfica aumenta as chances de sucesso das rupturas acima enunciadas.
A transição demográfica (diminuição de altas para baixas taxas de mortalidade e natalidade) tem se constituído no fenômeno de comportamento de massa mais importante da história da humanidade. Todo país com alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) passou pela transição demográfica que é uma condição necessária para a redução da pobreza e da fome e para a elevação do bem-estar social e ambiental.
Esta modesta resenha não faz jus à riqueza das contribuições do livro “O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência”. O objetivo aqui é apenas estimular a curiosidade das pessoas e incentivar a leitura de um livro que é decisivo para compreender e enfrentar a crise climática e ambiental, para afastar a ameaça existencial que aflige a humanidade, para defender a justiça social e para garantir a continuidade da vida na Terra, em toda a sua riqueza e biodiversidade.
Referência:
Luiz Marques. O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência, editora Elefante, abril de 2023 https://editoraelefante.com.br/produto/o-decenio-decisivo/