Eu nadava na sala com a minha irmã. Éramos muito pequenas, ainda não estávamos na escola, e essa era uma das brincadeiras que fazíamos na sala. Nos jogávamos no chão e dávamos braçadas, lutando contra monstros marinhos, fugindo de bandidos, nos escondendo de tubarões debaixo do sofá.
Por Eleonora de Lucena, compartilhado de Tutaméia
Os quadradinhos do parquê ainda tinham aquele perfume de novo, de madeira. Talvez fosse a cera que a mãe passava com a enceradeira de vez em quando. Faz uma semana que tudo isso está debaixo d’água.
Fico pensando na lama tomando conta do espelho quadrado logo na entrada da casa. Lembro que uma carroça puxada por um cavalinho magro trouxe a peça embrulhada em papelão. O pai reclamou, não era o que ele tinha encomendado, não era bisotado. Lá foi o espelho de volta para a carroça. Um outro, bisotado, chegou no final do mês na mesma carrocinha.
Era o início dos anos 1960. Ali no Menino Deus casas térreas e predinhos de dois andares, com largas calçadas, foram tomando conta dos terrenos baldios da nossa quadra. Era bom: muitas crianças chegavam e tinha muita gente para brincar de esconde-esconde e jogar sapata. Éramos filhos de engenheiros, professores, advogados, funcionários públicos: a classe média em ascensão naqueles breves anos de desenvolvimentismo. Em Porto Alegre, quem puxava o processo era o Brizola, que era o prefeito da cidade quando eu nasci. Toda aquela urbanização foi pensada por ele, que já previa um imenso parque às margens do Guaíba. As ruas recebiam calçamento de pedras e a lama ia desaparecendo.
Principalmente, havia a escola. Foi o que motivou a minha mãe e o meu pai a comprar um lote lá. A Escola Presidente Roosevelt estava a 50 metros de casa. Tinha sido inaugurada havia pouco tempo pelo Brizola. No fundo do terreno, já estava construída uma expansão de madeira pintada de azul para os alunos do colegial. Na mesma quadra, uma ampla praça, com balanços e um bom espaço para andar de bicicleta. O mercadinho da outra rua, onde a gente fazia pedidos no balcão, crescia e, mais tarde, ganhou prateleiras de supermercado. A padaria começava a fazer pães diferentes, sonhos com recheio de goiabada e de creme amarelo, mil folhas.
Quando a gente mudou, o rio batia quase na Praia de Belas. Lembro da minha felicidade em morar ali, perto da água. Do carro atopetado de tralhas da mudança, vi uma moça sentada num galho de um chorão naquele banhado que margeava o Guaíba. Para nós, que vínhamos do alto da Demétrio Ribeiro, aquela paisagem era muito diferente, refrescante, bucólica. Nunca consegui entrar no rio naquele ponto, onde prevalecia um emaranhado de vegetação e lodo. Praia mesmo, só em Ipanema, a quilômetros dali, para onde íamos em excursões de final de semana levando sanduíches de tatu com ovo cozido.
Volta e meia a rua enchia. A gente torcia para encher mesmo e convencer a mãe a nos deixar mergulhar naquele córrego marrom em frente de casa. Ela nunca deixou. Uma vez o pai até colocou sacos de areia no jardim para evitar que a água entrasse na casa. Não foram usados. A água parou no portão. Nunca ameaçou de verdade a casa.
O tempo foi passando, o rio foi ficando mais longe. Veio a continuação da Borges de Medeiros, o shopping, o parque. Na Mauá, no caminho do trabalho do pai, surgiu o muro, a proteção. Bombas foram colocadas e a enchente de 41, sempre lembrada pelo meu avô, saiu da conversa. Hoje, todo o Menino Deus e os bairros próximos estão inundados, na escuridão. Vi os vídeos dos botes passando em frente de casa e também na rua ao lado, onde moravam meus avós. Ali, a gente chegou a criar galinhas e vender ovos para a vizinhança.
Deixei o Menino Deus há 45 anos. De lá trago a alegria de andar de bicicleta, de ir à escola, de jogar sapata. Tristeza e raiva me invadem agora. Não sei o que sobrará quando as águas baixarem. Estarão salvas as fotos da família? Penso no esgoto, na lama, no lixo tomando a sala, os quartos, o quintal. O sonho desenvolvimentista foi soterrado por uma avalanche de neoliberalismo colonizado, tacanho, individualista, narcisista.
A cidade deu um cavalo de pau. Lembro do Lutzenberger, do pioneirismo da luta ambiental, da feira ecológica, do movimento contra o fedor da Borregaard. Lembro do Fórum Social Mundial, do orçamento participativo, do movimento nas vilas por calçamento, transporte, trabalho. Lembro do debate cultural, dos cinemas, das artes efervescentes. Lembro do surgimento dos assentamentos ao redor da cidade, da produção orgânica.
Tudo isso parece submerso pela visão absurdamente retrógrada do governador e do prefeito, personagens plastificados que encarnam um modelo elitista, predatório e excludente para a imensa maioria. Personagens responsáveis pela tragédia. Personagens que planejaram a destruição. Planejaram a destruição ao privatizar, abandonar, negligenciar, afrouxar regras, negociar nacos do patrimônio público, ignorar alertas, mentir. Personagens submetidos à lógica da depredação do agronegócio, da especulação imobiliária, do saque aos bens coletivos, da concentração de renda.
A socialização das perdas veio a galope. É a maior tragédia em uma região metropolitana da América do Sul. Antes de a água baixar, os números já são colossais. Afetam o PIB, a inflação, a dívida, dizem as manchetes. A cicatriz da tragédia vai demorar para começar a fechar. Centenas de milhares estão fora de casa. É possível que haja um êxodo, que a depressão tome conta, que as doenças disparem, que o caos e o medo aumentem.
Mas é possível também que haja um movimento de mudança. Que recupere a história coletiva e criativa do lugar e enxote os responsáveis pela catástrofe. Está nas mãos dos porto-alegrenses, dos gaúchos, dos brasileiros.