“Estou exausta e doente. Você também”

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A situação de sofrimento não é bonita e nem fácil de admitir. Talvez a consciência do nosso diagnóstico possa nos levar a encontrar um remédio coletivo que nos permita bem-viver

Por Prosa Preta, compartilhado de Projeto Colabora




Todas as mulheres negras com quem eu convivo estão cansadas.  Elas podem ter ensino superior completo e pós-graduação, ou ter somente o ensino fundamental; podem ser da classe média alta ou mais pobres; podem ser de diferentes religiões e localidades do país, mais claras ou mais escuras. Independentemente da diversidade de vivências e experiências todas dizem a mesma coisa: “eu não aguento mais”. Estamos todas em situação de sofrimento e isso não é bonito e nem fácil de dizer. Estamos doentes e isso não é uma metáfora, mas um diagnóstico. Nossa saúde tem sido atacada de muitas formas e isso não é obra do acaso.

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As disparidades raciais na saúde seguem sendo preocupantes e agravaram-se desde a pandemia de covid-19. Historicamente, a população negra enfrenta significativas barreiras no acesso a serviços de saúde, refletindo cenário complexo de discriminação racial e socioeconômica que é comprovado pelas pesquisas, mas também pelo olhar cotidiano. Vivo em um bairro de classe média, majoritariamente branco, em Porto Alegre – um dos municípios mais ricos do Brasil, com renda média de R$ 3.775 mensais por habitante, segundo o Mapa da Riqueza da Fundação Getúlio Vargas. Contudo, sabemos que o número resulta de uma concentração de riqueza em alguns territórios e de uma absurda pobreza em outros – porque a capital é das mais racialmente segregadas do país.

"Como nós, mulheres negras, podemos ter saúde integral se persistentemente o racismo nos impossibilita ter bem-estar? Se estamos a todo o momento com algum aspecto da nossa saúde comprometido pelas violências que o racismo nos impõe?". Foto Freepik
“Como nós, mulheres negras, podemos ter saúde integral se persistentemente o racismo nos impossibilita ter bem-estar? Se estamos a todo o momento com algum aspecto da nossa saúde comprometido pelas violências que o racismo nos impõe?”. Foto Freepik

O bairro onde vivo é um retrato bem fiel do município: pessoas brancas, abastadas, com boas condições de moradia, transporte e saúde pública. Sim, o paradoxo do maior acesso aos serviços básicos, que o Estado tem obrigação constitucional de universalizar, se escancara onde vivo. A unidade de saúde na qual sou atendida é das mais qualificadas do país, atrelada a um hospital público de referência – e restrita a cidadãos com condições de vida que frequentemente lhes permitem dispensar a saúde pública. Ainda me choca que todas as vezes que fui ao “postinho” do meu bairro, a única pessoa negra a ser atendida era eu. A percepção concreta da desigualdade também tem me adoecido e me exaurido.

Apesar de viver no mundo dos brancos, minha renda, minhas oportunidades de trabalho, minhas preocupações e angústias são bem diferentes da minha vizinhança. Acaba que com frequência sou um peixe fora d’água em aquários distintos. De um lado, tudo a meu redor me lembra que estou emocionalmente exausta de tentar provar que mereço ter uma vida melhor, com salário digno, descanso remunerado, condições de saúde adequada, direito ao lazer, à alegria, ao gozo da vida. Direito a me realizar plenamente a partir dos meus objetivos e perspectivas. De outro, quando percebo que as barreiras que me são impostas são as mesmas para outras mulheres negras, mas que me afetam de maneira menos profunda justamente por eu viver em um território onde mais facilmente posso acessar as coisas, me constranjo em ter tantas reclamações, anseios e desesperos. Fico envergonhada de me sentir injustiçada e de reivindicar o melhor para mim. Prefiro não falar sobre minhas próprias dores porque as dores alheias sempre me parecem mais difíceis.

Estando tão complexamente desconfortável, não é de se surpreender com os muitos diagnósticos de adoecimento físico e mental. A morte e a doença estão ali, à espreita, das mais variadas formas, fortalecida por um sistema que nos quer ao chão. Geralmente quando falamos da saúde de mulheres negras nos remetemos à saúde do sistema reprodutivo. Quando se trata da mortalidade de mães negras, fatores anteriores muitas vezes não investigados ou tratados em razão do racismo institucional facilitam na ocorrência de mortes evitáveis. Mulheres negras são mais atingidas por doenças como hipertensão e obesidade, o que acaba por ocasionar maior número de gestações com desfechos desfavoráveis.

A maior prevalência de hipertensão e obesidade em mulheres negras não é obra do acaso, e se torna mais compreensível quando analisamos de forma mais ampla as causas e consequências do racismo. A humilhação racial, a falta de oportunidades, a baixa autoestima, a exposição excessiva à violência, a ausência de tratamento multidisciplinar, a desumanização de seus corpos no atendimento em saúde agravam as doenças e desestimulam o autocuidado dessas mulheres. As carências podem acabar levando ao suicídio, outro grande problema que frequentemente é desconsiderado na promoção de políticas púbicas para a saúde integral de mulheres negras. O adoecimento mental extremo ocasiona mortes prematuras que também são formas de genocídio negro. Uma forma extremamente eficaz para o Estado, porque dispensa seu aparato repressor.

Saúde não é apenas a ausência de doenças, mas sim um estado de completo bem-estar físico, mental e social. Como nós, mulheres negras, podemos ter saúde integral se persistentemente o racismo nos impossibilita ter bem-estar? Se estamos a todo o momento com algum aspecto da nossa saúde comprometido pelas violências que o racismo nos impõe? Estou exausta e doente. Você também. Talvez a consciência do nosso diagnóstico possa nos levar a encontrar um remédio coletivo que nos permita bem-viver.

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