Do R7 , publicado no Portal Geledés –
Brenda Myers-Powell conta como retomou sua vida e abriu uma ONG para ajudar meninas
Brenda Myers-Powell foi entrevistada pelo programa da BBC Outlook. O documentário Dreamcatcher, dirigido por Kim Longinottowill, será transmitido no Reino Unido em outubro.
“Desde o começo, a vida foi me dando limões e eu fui tentando fazer a melhor limonada que eu podia.
Eu cresci nos anos 60 em Chicago. Minha mãe morreu quando eu tinha seis meses. Ela tinha apenas 16 anos e eu nunca soube de que ela morreu — minha avó, que bebia mais que todos, não me disse. A explicação oficial era a de que tinha sido por ‘causas naturais’.
Mas eu não acredito. Quem morre aos 16 anos de causas naturais? Gosto de acreditar que Deus estava pronto para ela. Já me disseram que ela era linda e tinha um ótimo senso de humor. Sei que isso é verdade porque eu também tenho.
Foi a minha avó que me criou. E ela não era uma pessoa má. Na verdade, ela tinha um lado incrível. Ela lia para mim, me fazia bolos e preparava as melhores batatas-doces. Ela apenas tinha um problema com a bebida.
E ela trazia seus parceiros de bebedeira do bar para casa e, depois que estava bêbada e desmaiada, esses homens faziam coisas comigo.
Isso começou quando eu tinha uns quatro ou cinco anos e depois se tornou algo corrente. Eu tenho certeza de que minha avó nunca soube de nada disso.
Ela trabalhava como empregada doméstica nos subúrbios. Ela levava duas horas para ir ao trabalho e duas para voltar. Eu usava uma chave no pescoço e, no fim da tarde, ia sozinha do jardim de infância para casa. E os molestadores sabiam disso — e se aproveitavam.
Eu via mulheres com o cabelo glamouroso e com vestidos brilhantes nas ruas. Não tinha ideia do que elas estavam fazendo. Eu só achava que elas brilhavam. E, como uma garotinha, tudo o que eu queria era usar roupas brilhantes também.
Um dia, eu perguntei para minha avó o que aquelas mulheres estavam fazendo. ‘Elas tiram a calcinha e os homens lhe dão dinheiro’. E lembro de dizer para mim mesma: ‘Eu provavelmente vou fazer isso, porque os homens já estão tirando minha calcinha’.
Elvis imaginário
Olhando para trás, posso ver que lidei com a situação surpreendentemente bem. Sozinha naquela casa, eu tinha amigos imaginários para me fazer companhia. Eu cantava e dançava com um Elvis Presley imaginário, com uma Diana Ross imaginária e com os Supremes imaginários.
Eles me ajudaram a lidar com as coisas. Eu era uma menina extrovertida — e dava muita risada.
Mas, ao mesmo tempo, eu estava sempre com medo. Não sabia se o que estava acontecendo era culpa minha ou não. Eu achava que talvez houvesse algo errado comigo.
Apesar de ter sido uma criança esperta, eu deixei a escola. E, no começo dos anos 70, me tornei o tipo de garota que não diz ‘não’.
Se os garotos do bairro dissessem que gostavam de mim ou me tratassem bem, eles conseguiam o que queriam comigo.
Quando completei 14 anos, eu já tinha duas filhas, duas bebês. Minha avó então começou a dizer que eu precisava trazer algum dinheiro para casa para sustentar as crianças, porque não havia comida — não tínhamos nada.
Então uma noite, na verdade era Sexta-Feira Santa, eu fui para as ruas. Coloquei um conjunto de saia e blusa de US$ 3,99, um sapato de plástico barato e um batom laranja que eu achava que me fazia parecer mais velha.
Eu tinha 14 anos e chorei o tempo todo. Mas eu aguentei. Eu não gostei. Mas os cinco homens com quem eu saí naquela noite me mostraram o que fazer. Eles sabiam que eu era nova e pareciam ficar excitados com isso.
Eu consegui US$ 400 e dei a maior parte para minha avó — ela não perguntou onde eu tinha conseguido aquele dinheiro.
No fim de semana seguinte, fiz a mesma coisa, e minha avó parecia contente por eu estar trazendo dinheiro para casa.
Cafetão
Mas, na terceira vez, dois caras armados me colocaram no porta-malas de um carro. Eles me pegaram porque eu não tinha um ‘representante’ nas ruas.
Primeiro eles me levaram para o meio do nada e me estupraram. Depois eles me levaram para um quarto de hotel e me trancaram em um armário.
— Eu voltava sozinha da escola e ficava sozinha em casa. E os molestadores sabiam disso.
Esse é o tipo de coisa que um cafetão faz para quebrar o espírito de uma menina. Eles me mantiveram lá por um bom tempo. Estava com fome, então implorei para eles me deixarem sair. Eles toparam, desde que eu trabalhasse para eles.
Então eles foram meus cafetões por uns seis meses, eu não podia voltar para casa. Tentava fugir, mas quando me pegavam, apanhava muito. Depois, fui traficada para outro homem. O abuso físico era terrível, mas o abuso mental era pior — as coisas que eles diziam não dá para esquecer.
Cafetões são ótimos torturadores, são ótimos manipuladores. Alguns te acordam no meio da noite com uma arma na cabeça. Outros fingem que você tem algum valor para eles e então você pensa: ‘Eu sou a Cinderela e ele, meu príncipe encantado’. Eles te dizem que você precisa fazer apenas mais uma coisa e depois será recompensada.
E você pensa: ‘Minha vida já está tão difícil, por que não fazer um pouquinho mais’. Mas é claro que a parte boa nunca chega.
Quando as pessoas descrevem prostituição como algo cheio de glamour, meio como no filme Uma Linda Mulher, bem, não tem nada a ver com isso. Uma prostituta às vezes dorme com cinco estranhos por dia. No fim do ano, são 1.800 homens com quem ela teve relações sexuais. Não são relacionamentos, ninguém te traz flores, acredite em mim. Eles usavam meu corpo como um banheiro.
Baleada
E os clientes são violentos. Tomei cinco tiros, foi esfaqueada 13 vezes. Não sei por que esses homens me atacavam. Tudo que eu sei que é a sociedade fazia com que eles se sentissem confortáveis fazendo isso. Eles sabiam que podiam fazer o que quisessem com uma prostituta, já que a polícia nunca a levaria a sério.
Mas, na verdade, me considero muito sortuda. Conheci lindas garotas que foram assassinadas.
Depois de uns 15 anos me prostituindo, comecei a usar drogas. Depois de um tempo, você já usou todos os truques que tem para aguentar alguém colocando uma arma na sua garganta. Você precisa de algo para te dar coragem.
Eu fui prostituta por 25 anos e, durante todo esse tempo, nunca consegui ver uma alternativa. Mas em 1º de abril de 1997, quando eu estava com quase 40 anos, um cliente me jogou para fora do carro.
Meu vestido prendeu na porta e eu fui arrastada por seis quarteirões, arrancando toda a pele do meu rosto e da lateral do meu corpo.
Fui para o hospital e, na emergência, chamaram um policial. Ouvi ele dizendo: ‘Ah, eu conheço ela. É só uma prostituta. Ela provavelmente pegou o dinheiro de alguém, então ela mereceu’. Eu ouvi as enfermeiras rindo e me deixaram na sala de espera, como se eu não valesse nada.
‘Deus foi rápido’
E foi naquele momento que comecei a pensar em tudo que havia acontecida na minha vida. Eu me lembro de olhar para cima e dizer para Deus: ‘Essas pessoas não se importam comigo. Você pode, por favor, me ajudar?’
E Deus foi bem rápido. Um médico apareceu, cuidou de mim e me encaminhou para o serviço social. Lá, me deram o endereço de um lugar chamado Genesis House, que era dirigido por uma inglesa chamada Edwina Gateley, que se tornou minha heroína e uma mentora para mim. Ela me ajuda a transformar minha vida.
Ela me disse para eu ficar tranquila e que eu podia morar lá pelo tempo que quisesse. Fiquei dois anos. Meu rosto sarou, minha alma se curou.
Edwina me ensinou o valor da conexão profunda que pode ocorrer entre duas mulheres, o círculo de confiança e amor e apoio que um grupo de mulheres pode dar uma para outra.
Quando eu saí da Genesis House, acabei trabalhando como voluntária em uma pesquisa universitária com prostitutas em campo. E percebi que ninguém estava realmente ajudando essas mulheres. Ninguém estava indo lá e dizendo ‘Eu era assim, e olha quem eu sou agora. Você também pode mudar’.
Então, em 2008 fundei, juntamente com Stephanie Daniels-Wilson, a Fundação Dreamcatcher. Recentemente, fizeram um documentário sobre o nosso trabalho. Vamos ao encontro dessas mulheres e dizemos: ‘Há um caminho, estamos aqui para ajudar. E tentamos tirar da cabeça delas a ideia de que não há alternativas para elas’.
Também tenho um clube para meninas, com atividades para depois que elas saem da escola — para meninas exatamente como eu na década de 70.
Meninas em perigo
Agora, eu consigo ver se uma menina está em perigo, mas não há um padrão. Ela pode ser quieta, introvertida. Ou pode ser extrovertida e estar sempre arrumando confusão. Ambas sofrem abusos em casa e lidam com isso de maneira diferente. O que têm em comum é que elas não têm com quem conversar.
Até agora, temos 13 meninas que estão na faculdade. Chegaram aqui com 11, 12, 13 anos, totalmente vulneráveis.
Eu também colaboro com trabalhos acadêmicos. Sempre me dizem: ‘Brenda, venha aqui encontrar o professor tal e tal da universidade não sei o quê. Ele é especialista em prostituição’. Olho para ele e digo: ‘Sério? Onde você pegou suas credenciais?’
Acho ridículo que muitas organizações que fazem campanha contra o tráfico humano não empregam ninguém que já tenha passado por isso.
Algumas pessoas acham que ajudaria se prostituição não fosse algo ilegal. Eu acho que cada mulher tem sua história. Pode ser OK para essa menina, que está conseguindo pagar a faculdade, mas não para essa outra, que foi molestada quando criança e agora não tem alternativas.
Mas deixa eu te perguntar uma coisa. Quantas pessoas você já encorajou a deixar seus empregos para virar prostituta?
Casamento
Bom, da minha parte posso dizer que depois de três anos de abstinência sexual, conheci um homem extraordinário. Eu fui muito seletiva, fiz muitas perguntas. Mas que homem aceita uma mulher que era prostituta, não?
Mas ele via em mim algo que eu mesma não via. Uma garota com um sorriso bonito. No ano passado, comemoramos dez anos de casamento.
Minhas filhas foram criadas por uma tia e estão ótimas. Uma é médica e a outra trabalha com justiça criminal.
Eu e meu marido adotamos meu sobrinho e hoje, com 58 anos, sou uma mãe dedicada.
Então, estou aqui para te dizer — há vida depois de tanto sofrimento, de tanto trauma. Há vida mesmo após as pessoas te dizerem que você não vale nada. Há vida, e não apenas uma vidinha qualquer. Há uma vida maravilhosa.”