Por Vinicius Lima, compartilhado de Projeto Colabora –
Isaura, Marcela, Jennifer e Priscila vivem nas ruas de São Paulo e contam nesta reportagem especial do #Colabora como o machismo afeta ainda mais suas vidas
“Existe um código de conduta na rua que é extremamente machista. Por exemplo, se eu sou uma mulher comprometida, é inadmissível eu sentar com as pernas para frente. Tenho que ficar sempre com as pernas de lado”. O relato é de quem já viveu dormindo pelas calçadas de São Paulo por dois anos e conhece bem a realidade de uma mulher nessa condição. Hoje, Eliana Toscano, 47, é coordenadora de políticas para pessoas em situação de rua na Secretaria de Direitos Humanos e Cidade da capital paulista. Apesar da mudança em sua conjuntura social, afirma que segue trabalhando com a mesma coisa que já fazia antes do seu novo ofício: atuar na ponte entre a rua e o poder público. E quando se fala em mulheres, foco desta reportagem especial do #Colabora, você leitor irá entender, a partir de relatos, o motivo pelo qual deve-se ter um olhar diferenciado para a questão do gênero nesse contexto.
De fato, pensar em soluções para melhorar a dignidade das pessoas que residem em vias públicas é um desafio de toda grande e média cidade nos quatro cantos do mundo. Entre as cidades brasileiras, São Paulo é a que tem a maior parcela da sua população sem o direito à moradia, nas ruas. No ranking mundial, ocupa a 10ª posição, de acordo com o Relatório da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas de 2015. Os números, no entanto, são desatualizados, uma vez que o último censo foi realizado há quatro anos pela FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas). Na ocasião, foram registradas 15.095 pessoas em situação de rua na capital paulista: 13.046 são homens e 2.049 (14,6%) são mulheres. Estima-se que o número tenha aumentado bastante nos últimos anos. De lá para cá, os número de atendimentos realizados pela secretaria de Assistência Social do município, por exemplo, subiu 88%.
Mesmo em menor quantidade, são as mulheres que mais sofrem. Além da exclusão característica de suas vivências, há o agravante do machismo. “Eu mesma já tive que usar alguns gatilhos de proteção do machismo, como me cobrir toda e engrossar a voz. O corpo da mulher na rua é muito vulnerável”, completa Eliana. Na tentativa de entender melhor esse cenário e responder perguntas sobre o que acontece no dia a dia delas, o #Colabora, junto com o movimento SP Invisível, conversou com Isaura, Marcela, Jennifer e Priscila: quatro vidas em situação de rua que mostram de que forma o machismo se manifesta em São Paulo.
ISAURA*: “Hoje não dá mais vontade de chorar”
“Eu comecei a usar droga desde criança. Fiz até a sexta série e depois já comecei a usar todas as drogas: crack, maconha, pó, lança, cola. Tudo. Meu nome é Isaura*, tenho 36 anos. Na rua mesmo, eu tô há 5 anos. Quem me apresentou a droga foi uma amiga minha que hoje está morta. Não sei porque ela morreu, mas acho que mataram ela. É meio complicado ser mulher e morar aqui na rua porque muitos homens querem se aproveitar de você. Até fora da rua é difícil.
Hoje eu me sinto bem melhor para falar disso. Tenho uma situação que é difícil compartilhar, mas posso falar? Já me estupraram. Dois homens que estavam na rua fizeram quando eu morava lá em Osasco. Eu já morava na rua. Eu chorei muito, fiquei muito nervosa, aí quando encontrei meu ex-marido, contei para ele. Ele foi atrás dos dois para matar um de cada vez. Ele conseguiu. Hoje falo disso tranquilamente. Já foi a época que chorei muito. Hoje não dá mais vontade de chorar. Eu fico sempre atenta e não tem ninguém mais que mexe comigo. Eu ando o dia inteiro, pra cima e pra baixo, e só durmo em grupo.”
MARCELA*: “Os caras adoram mexer com as travestis”
“Hoje eu moro no albergue. Não fico muito na rua. Morar no albergue é melhor que morar na rua e é melhor do que morar em casa de cafetina também. Meu nome é Marcela*. Eu fazia programa, hoje não mais. Era uma baita exploração. Tô aqui faz um tempo já.
Existe muito preconceito com todo mundo que tá na rua, com homens, com mulheres, mas com as mulheres travestis tem mais ainda. Já sofri agressões verbais e físicas. Os caras adoram mexer com as travestis. É duro. Além disso, não tem emprego para travesti. Por isso que muitas vão para a vida de prostituição. Agora, pra quem é homem tem muito emprego. Tem também a questão do banheiro, muitas vezes a gente não pode usar o banheiro com as outras mulheres ou o tratamento é diferente. Tenho alguns amigos aqui, mas nunca dá pra confiar muito. É mais para os momentos bons, nas horas difíceis é sozinha mesmo.”
JENNIFER*: “Eu durmo com uns cachorros bravos, é o jeito de eu me proteger”
“Como eu não tenho dentes, os homens me humilham muito. É normal me chamarem de banguela aqui na rua. Meu nome é Jennifer*, tô há 7 anos aqui em situação de rua. Todas as mulheres vivem muita humilhação e sempre têm um medo de ser abusada na rua. Minha vida antes era normal, mas foi a depressão que me trouxe pra cá. Eu vivia com os meus filhos. O pai do meu filho é usuário de crack, não conversamos mais.
Hoje, eu vivo aqui com um companheiro, mas ele é muito ciumento, muito agressivo. Não posso falar com ninguém porque pra ele todo mundo quer me pegar. Homem, mulher, todo mundo. Ele faz isso quando tá sob efeito da droga. Sem droga, ele é normal. Eu tento ficar longe, mas tenho medo de outros homens me agredirem, outras pessoas mexerem comigo. Tem muito machismo na rua. Eu durmo com uns cachorros bravos, é o jeito de eu me proteger. É todo mundo que mexe: é povo da rua, povo de fora, polícia. Eu quero arrumar um emprego. Só que pra homem tem tudo: serviço, doação, emprego. Pra mulher, não. Tem nem banheiro, às vezes.”
PRISCILA: “Durmo com pedra embaixo da coberta ou cubro minha cabeça”
“Entre idas e vindas aqui na rua, tem uns 8 anos que falo que eu vou sair e nunca saio. Minha primeira rua foi em Curitiba. Eu morava com o meu pai, aí brigamos e eu fui para a rua. Em Santos, foi minha segunda rua. Depois disso, vim para São Paulo. Não troco a rua de São Paulo por nenhuma outra, só por uma casa. Meu nome é Priscila.
O álcool e a droga desgraçaram minha vida. Eu perdi meu filho por isso. Toda vez que eu tento construir algo, a bebida não deixa. Quando eu tinha uma casa, era numa ocupação e eu morava com as minhas duas crianças. Como eu era sozinha, vinham várias dificuldades que me estressavam muito e eu acabava brigando, depois que eu bebia. Aí, fui para o albergue, mas no albergue não tinha uma equipe humana e social. Um dia eu bebi muito e quebrei três andares lá do prédio; foi aí que pegaram as minhas crianças, que hoje estão com meus pais. Cada uma tem um pai. Ou é drogado, preso, ladrão. Tudo sem futuro. Não consigo me reestruturar. Hoje, eu estou sozinha porque não dou certo com ninguém. Eu tenho um gênio muito forte.
Na rua, sendo mulher, tem muito estupro e agressão, porque não é todo mundo que bate assim igual eu, aí os caras se aproveitam. Na Cracolândia, por incrível que pareça, é onde eu me sinto mais refugiada. Essas coisas são, tanto de quem tá na rua, quanto dos policiais. Teve um dia que um policial falou ‘vamos lá pra minha casa’. Nessa hora, eu tava bêbada, aí eu corri atrás deles. Podia ter levado um tiro ou ter sido presa, mas fiquei muito brava.
Para ser mulher na rua tem que ter coragem. Eu durmo, às vezes, com pedra embaixo da coberta ou cubro minha cabeça, mas essa segunda opção não é muito boa porque tem um pessoal que coloca fogo em morador de rua. Tenho muita vontade de parar, mas não tenho muita força para começar essa mudança. Cada um aqui tem uma história, a gente não pode julgar.”
Os nomes com * são fictícios para proteger as identidades das entrevistadas