Por Leandro Victor, compartilhado de Projeto Colabora –
Cortes sucessivos no orçamento do setor e excesso de burocracia sufocam os pequenos produtores durante a pandemia
Política pública importante no Brasil para o fomento da agricultura familiar, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) vem vivenciando um processo intenso de desmantelamento no país. Criado em 2003, o programa sempre funcionou de forma simples e objetiva: ele adquire gêneros alimentícios diretamente dos pequenos produtores rurais e os envia a pessoas em situação de vulnerabilidade social e alimentar, que estão em creches, abrigos e hospitais. Executado nos âmbitos municipal, estadual e federal e, em seis modalidades – sendo a mais comum a Compra com Doação Simultânea (CDS), que repassa os alimentos a organizações sociais – o PAA já chegou a reunir quase 176 mil agricultores familiares em 2012 (cerca de 2% do total do setor), ano em que foi contemplado com o maior orçamento, cerca de R$ 1,1 bilhão.
Entretanto, como mostra o gráfico acima, o que se vê desde 2015 são sucessivos cortes no orçamento, que é administrado pelo Ministério da Cidadania. Em 2018, por exemplo, apenas um quinto do valor que tinha sido destinado em 2012 foi repassado para o programa, cerca de R$ 232 mil.
Professor de Agroecologia e Desenvolvimento Rural da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Ricardo Borsatto afirma que o cenário estruturalmente desfavorável ao PAA no país está intrinsecamente relacionado à ascensão de políticos alinhados ao agronegócio empresarial, o que vem ocorrendo desde o governo de Michel Temer: “Nesse sentido, a agricultura familiar é vista somente como uma cópia reduzida da grande fazenda produtora de commodities para exportação. Um efeito imediato disso é a deslegitimação do setor como um público demandante de políticas específicas”.
Além disso, desde o início da pandemia, diversas instituições e órgãos do governo suspenderam as compras do programa, o que afetou drasticamente a vida de muitos agricultores. Essa paralisação vem sendo observada principalmente na modalidade Compra Institucional, no qual órgãos federais da administração pública direta e indireta – hoje em regime de home office – efetuavam compras através de Chamadas Públicas, dispensando processos licitatórios. A consequência disso é o cenário de sufoco que muitos agricultores estão passando na pandemia. Uma pesquisa realizada pela ONG Instituto Conexsus, no ano passado, envolvendo 131 negócios comunitários, mostrou que 80% deles não teriam condições de manter suas operações depois de junho de 2020, três meses após o início do isolamento social.
A produtora rural de Paracambi (município da região metropolitana do Rio de Janeiro) Tatiana Dias, de 33 anos, é uma das que vem sentindo na pele as dificuldades com a suspensão do programa na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Campus Nova Iguaçu. Ela, que em 2019 forneceu alimentos, através do PAA, para o Restaurante Universitário da instituição, conta que após a interrupção não tem conseguido escoar mais tudo o que produz. “Temos a maioria dos produtos, mas não há demanda para vendas. Afinal, era graças ao bandejão da Rural (restaurante universitário) que conseguíamos realizar um quantitativo significativo de entregas. Nossa saída agora são apenas as feiras”.
Apesar de expressiva, a redução no orçamento do PAA e sua suspensão atual não são os únicos desafios para os agricultores. Isso porque o aumento de exigências administrativas e burocráticas para aprovação e condução dos projetos vem se mostrando também um fator determinante para o esvaziamento do setor, sobretudo em municípios em que políticas de incentivo são um sonho distante. Desde um processo de criminalização sofrido pelo PAA, a partir de 2011, quando a Polícia Federal começou a investigar supostos desvios de verbas públicas na operação, o endurecimento das normas tem sido o principal entrave do programa. Mesmo com a comprovação, anos depois, de que as irregularidades cometidas não configuravam delitos, a suspeição permaneceu sob os agricultores acusados, e assim também a elevada burocracia.
Dessa forma, apesar de estar presente em 77% de todos os estabelecimentos agropecuários no Brasil e ser responsável pela renda de 70% dos brasileiros no campo – de acordo com informações do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, MAPA – a agricultura familiar ainda é uma atividade exercida, em sua maioria, na informalidade. Um dado que evidencia isso é o de que os pequenos produtores detêm apenas 14% de todo o financiamento disponível para a agricultura no Brasil, sendo este, portanto, um resultado direto da ausência de políticas que incentivam a legalização do trabalhador do campo e, portanto, sua participação em programas governamentais, como o PAA.
Associações formadas de maneira voluntária pelos pequenos produtores, as cooperativas hoje vivem esse dilema. Presidente de uma delas, a Univerde, Alzerir Silva, de 57 anos, conta que hoje apenas 25% dos seus produtores associados têm a DAP (Declaração de Aptidão do Programa Nacional de Fortalecimento à Agricultura Familiar, PRONAF), documento de identificação necessário para acessar políticas públicas e créditos na área. Alzerir explica que, para a cooperativa obter a versão jurídica do documento, o que já possibilitaria o acesso dos filiados ao PAA, é necessário que 70% deles tenham a DAP física.
Além da burocracia elevada e cara para acessar o programa, outros fatores, como a logística e infraestrutura para a entrega das mercadorias, também levam muitos agricultores, até mesmo após serem aprovados, a desistirem do PAA. No caso dos transportes, há ainda gargalos relacionados à falta de veículos, precarização de estradas e dificuldades de acesso por vias fluviais. Essa situação é visível no Nordeste visto que, apesar de ser a região com a maior quantidade de compras do PAA (R$ 2,3 bilhões) e deter quase a metade dos estabelecimentos de agricultura familiar no Brasil (47%), não é a responsável pelo maior acesso ao programa (89,6%), ficando atrás ainda do Norte (90,4%) e Sul (90,6%) nesse quesito – locais que receberam verbas muito menores, R$ 497,7 e R$ 932,8 milhões, respectivamente.
Uma das políticas públicas responsáveis, na teoria, por auxiliar o produtor nesse processo de formalização, acesso aos programas e logística é a ATER (Assistência Técnica e Extensão Rural). No entanto, ela também vem sendo precarizada pelo poder público nos últimos anos, ressalta a diretora presidente da Associação dos Engenheiros Agrônomos do Estado do Rio de Janeiro (AEARJ), Ana Paula Farias. “Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, observamos que a EMATER (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural), que tem a função de realizar tal assistência, chega a atender até 150 produtores por mês, com um nível de qualidade baixo. Quando, o ideal, seria atender 50 e, efetivamente, resolver os problemas. O que observamos, portanto, é a interrupção e até mesmo falta deste serviço Brasil afora, impossibilitando muitos agricultores de se legalizar para participar do PAA”. explica.
A agrônoma pondera que, sem um atendimento contínuo da ATER, a probabilidade de o produtor realizar bons investimentos está fadada ao insucesso, como uma análise correta do solo. “A falta da ATER tende a colaborar para a má gestão dos recursos naturais e, por conseguinte, a degradação, erosão e poluição do ambiente modificado. Afinal, quem dirá aos agricultores o que fazer?”, questiona. Para ela, a ATER e, as demais políticas públicas no setor, sobretudo o PAA, precisam ser encarados como políticas comprometidas com a qualidade de vida dos agricultores e do meio ambiente. “O descompasso entre governos, associado a redução de recursos na área, geram perdas para a economia local e circular, propiciando o enfraquecimento da produção agrícola e a insegurança socioeconômica no Brasil. Por fim, toda a sociedade é afetada”, afirma.
Após grande pressão do setor rural por medidas para auxiliar os pequenos produtores nesse momento crítico intensificado com a crise do novo coronavírus, o governo federal liberou, no fim de abril de 2020, um crédito emergencial de R$ 500 milhões para elevar a atuação do PAA. Desse montante, R$ 370 milhões foram destinados para a compra de alimentos das cooperativas, por meio da modalidade de doação simultânea, a principal do programa. No entanto, afirma a presidente da AEARJ, Ana Paula Farias, essa quantia não se mostrou suficiente. “O incêndio não foi apagado, só retardou o efeito catastrófico que a pandemia e a deterioração do PAA trarão, em efeito dominó, à economia social”, avalia.