‘Eu não vou te matar’: um retrato da violência doméstica

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Por Mariana Borga, em Carta Capital – 

No primeiro dia do ano, mais uma amostra de um sistema falido que parece ter como objetivo desencorajar a vítima a fazer uma denúncia.

No meio do mato, no dia 1° de janeiro de 2016, eram cerca de 21h. Estamos Jean e eu numa pousada agradável, num refúgio ecológico no sul de São Paulo, lendo na cama. Ouço vozes no quarto ao lado. Vozes agressivas. Será que estão discutindo?




De repente, uma pancada seca na parede. Um som que lembra o de um martelo. Depois outro. Consigo distinguir uma voz feminina: “Eu tô com medo”. Uma voz masculina responde: “Eu não vou te matar”.

Pergunto se o Jean ouviu. Então ele ouve: “Sua vagabunda”.

O Jean toma a iniciativa de sair do quarto. Damos de cara com a janela do banheiro do quarto vizinho. Sim. Eles estão lá. A voz masculina acaba de ganhar um corpo. E as mãos desse corpo prensam a dona da voz feminina contra o box de vidro. Na sequência, essas mãos lhe dão um tapa na cara.

Pôster russo contra a violência doméstica
Pôster russo contra a violência doméstica – A polícia pergunta secamente o que aconteceu, num tom quase de desconfiança. Não há compaixão

Sinto um mal estar súbito. O chão parece que sumiu. O que fazer? O que fazer? Tudo isso parece tão distante de mim que me sinto perdida e desorientada.

Chamar os donos da pousada. É isso. Corro para procurá-los. O dono aparece logo. Com a boca seca, nervosa, conto o que acabamos de ver. Ele desacredita. Peço para que comprove indo até a janela do banheiro.

Ele comprova: o homem arma o soco e dá na carne dela.

O dono da pousada corre. Desaparece. O que ele foi fazer? Sinto um nó na garganta. Estamos sozinhos novamente? Quero arrombar a porta, quero gritar que estou ouvindo e vendo tudo. O Jean também. Mas é preciso calma. E se o homem estiver armado?

O dono da pousada volta. Felizmente foi buscar reforço. Agora, ao todo, são seis homens do lado de fora. E eu.

Toc toc toc. “Tá tudo bem aí?”, o dono da pousada pergunta, se esforçando para parecer firme. A porta, ao contrário do que eu esperava, abre rapidamente. Os dois estão pelados. “Que bom que vocês vieram”, a voz feminina diz aliviada e tremendo – e corre para se trocar.

Quando entro no quarto ela já está trocada. Vejo melhor o seu rosto. Reconheço: ela estava na mesa ao lado no jantar de Réveillon da noite anterior. Mas agora tinha lágrimas nos olhos. Muitas lágrimas. “Ele estava batendo em você?”, pergunto. Ela responde apenas com a cabeça: sim.

Do outro lado do quarto, o homem está cercado pelos outros homens. Está intimidado. Manso. Ele se desculpa. “Desculpa, desculpa”, repete o tempo todo para todos – menos para a sua namorada agredida.

Do lado de cá do quarto, pergunto se ela quer que chamemos a polícia. Mais uma vez ela diz que sim com a cabeça.

A polícia então chega e o que se segue é uma sequência de acontecimentos que parece ter como único objetivo desencorajar a vítima a fazer uma denúncia contra o seu agressor.

Na chegada da polícia, apenas homens. Perguntam secamente para a mulher o que aconteceu, num tom quase de desconfiança. Não há compaixão. Não há delicadeza com a pessoa agredida. Apenas mais grosseria.

A delegacia:

Agressor e a vítima ficam em salas próximas. O agressor fica o tempo inteiro provocando a vítima, em voz alta: “Você tem certeza de que quer fazer isso, V*?”, “Olha lá o que você vai fazer!”. Os policiais, novamente todos homens, demoram a interferir e a colocar o agressor numa cela.

A cela:

Não há porta divisória entre a sala onde está a vítima e a cela do agressor. Ele continua o seu jogo psicológico por algumas horas, gritando: “Tá vendo o que você fez comigo, V*?”, “Eu não fiz nada pra você e você tá me tratando como um bicho! Eu não sou bicho! Eu trabalho, pago os meus impostos!”

“É isso o que você faz com a pessoa que diz que ama?” E, então, num jogo baixíssimo, ele bate a cabeça na grade com força até sangrar. Ela, com acesso liberado à cela, ouve e vê tudo. Vê o sangue escorrendo pela cara dele, vê a raiva nos seus olhos, sente medo. Os policiais não interferem.

O exame de corpo-delito:

Um médico. Mais um homem. Entro junto para não deixá-la só e vejo uma das pessoas mais grosseiras que já cruzei na vida em ação. Ele pede para ela mostrar os machucados. Pede para ela tirar a roupa, numa sala cujo ar condicionado está em 16 graus Celsius.

Peço para aumentar a temperatura. Ele resmunga e aponta o controle com os olhos que me dizem “Aumenta aí”. Pergunto, então – porque é uma dúvida legítima e tenho o direito de perguntar -, se ele notifica também os golpes que não deixaram marcas, como a pancada na cabeça contra a parede e os socos na cara dela. Ele responde em tom de deboche: “Não posso fantasiar coisas e nem inventar o que eu não sei se aconteceu”.

Quatro horas depois:

Já são quase 2 horas da manhã e o delegado ainda não apareceu. Nos repetem, desde que chegamos, que “em 10 minutos o delegado deve chegar”. Estamos exaustos. Quem foi espancada está ainda mais.

Ela tem os olhos inchados de chorar, as costas doendo dos golpes e o coração partido de tanto ouvir as agressões que continuam a vir da cela. Ainda por cima, sente vergonha de mim e do Jean. Ela insiste para que a gente vá embora descansar. Resistimos. Mas ela – e o escrivão, que já tomou os nossos depoimentos e as nossas assinaturas – nos dizem para ir.

Na manhã seguinte:

Ficamos sabendo pela dona da pousada, pois a vítima teve que voltar para pegar as suas coisas e contou que, quando o delegado chegou, deu a desencorajada final. Cataplau! Disse que tinha conversado com o namorado dela, que “ele estava bastante arrependido” e perguntou se ela queria levar aquilo mesmo adiante e processá-lo. Ela, por fim, desistiu. Pediu para no mínimo segurá-lo preso por mais duas horas, até que ela pudesse “Fugir pra São Paulo”.

Desde então faz dias que não consigo dormir direito. Acordo à noite e tenho insônia com medo de um agressor maluco que, numa das minhas idas à cela para tirar a vítima de perto dele, também me ameaçou. Acordo e fico pensando nesse sistema falido que mascara números e faz a violência doméstica parecer menor do que é.

Quando conto essa história, tenho ouvido de algumas pessoas: “Dá até raiva de ter ajudado, né? No fim ela retirou o B.O. e se bobear até vai voltar pra ele”.

Não, não dá raiva. Pra mim é óbvio que essa mulher e esse homem vivem numa relação doentia há oito meses (é o tempo que estão juntos) e que, apesar de ter sido a primeira vez que ele realmente bateu nela (segundo ela) não vai ser em uma noite que ela vai conseguir se livrar dessa relação.

Eu não tinha a menor esperança de que ela nos visse como heróis e que nos agradecesse por ter salvado a vida dela naquele momento. Seria muita arrogância pensar isso. Romper com uma relação viciada dessas leva tempo e muita terapia.

Mas o que eu esperava e desejava e que deveria ser óbvio ululante é uma Polícia Estadual eficiente. Com um sistema que protege a vítima do contato com o agressor, uma vez que eles estão na delegacia, que agiliza o boletim de ocorrência para que a vítima não seja pressionada a mudar de ideia e que ofereça, aos dois envolvidos, o mínimo de ajuda psicológica.

Enquanto isso não acontece, torço para que esse relato se espalhe e que mais pessoas possam ajudar a outras V* a dar um passo para escapar da violência. Um passo ainda sem a ajuda do sistema, mas um passo que, pelo menos momentaneamente, pode salvar vidas.

*Mariana Borga é diretora de criação, atriz e restauradora de móveis nas horas vagas, e feminista.

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