“Eu vivo no compatível”

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Por Allan Abreu, compartilhado da Revista Piauí – 

Um caso exemplar de corrupção dentro da Polícia Federal  

Pompílio, em foto postada no Facebook: segundo um delator, o delegado chegou a achacar até o operador do seu próprio esquema de achaque
Pompílio, em foto postada no Facebook: segundo um delator, o delegado chegou a achacar até o operador do seu próprio esquema de achaque REPRODUÇÃO_FACEBOOK

Na tarde do domingo 4 de janeiro de 2015, o empresário Marcello Telles de Souza Junior, dono de uma fornecedora de órteses e próteses para hospitais públicos do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, foi chamado às pressas para um encontro em um shopping na Barra da Tijuca, no Rio. Seu interlocutor disse que o assunto era urgente. No horário combinado, Souza Junior encontrou o médico Rosalino Felizardo de Santana Neto, que apareceu acompanhado do advogado Marcelo Guimarães, seu sócio em um pequeno hospital na Ilha do Governador. Em tom grave, o médico comunicou a Souza Junior que, naquela noite, o programa Fantástico, da TV Globo, exibiria uma reportagem bombástica. Denunciaria a “máfia das próteses”, esquema de fabricantes e distribuidores de órteses e próteses que pagavam propina para que médicos e hospitais comprassem seus produtos em quantidades muito além do necessário e a preços superfaturados.

O alerta era detalhado. O médico e o advogado disseram que a Polícia Federal do Rio estava investigando o esquema, e os passos seguintes incluiriam a Signus, a empresa do próprio Souza Junior. Disseram ainda que o empresário seria convocado para depor. Souza Junior, cuja empresa de fato participava do esquema, ficou apavorado. Na noite de domingo, o Fantástico exibiu uma reportagem de 22 minutos sobre a “máfia das próteses”. Investigada no âmbito da Operação Titanium, uma das fraudes noticiadas no programa envolvia o desvio de 7 milhões de reais em cirurgias e internações pagas pelo plano de saúde dos Correios no Rio de Janeiro.




O ex-assessor da diretoria dos Correios no Rio, João Maurício Gomes da Silva, que meses antes havia fechado acordo de delação com o Ministério Público Federal para revelar tudo o que sabia, apareceu na reportagem da Globo. Ele confirmou o esquema e explicou seu funcionamento. “Aquela empresa que, teoricamente, dizemos que era parceira, ela apresentava… já vinha com dois ou três orçamentos montados. Então, sempre determinando quem estaria levando naquela determinada cirurgia, quem seria a beneficiada.”

O advogado Marcelo Guimarães sabia com antecedência da reportagem porque ele e Lorenzo Martins Pompílio da Hora, o delegado que conduzia as investigações da Operação Titanium, estavam entre as fontes do Fantástico. Guimarães fez essa revelação tempos depois, quando ele também firmou um acordo de delação. Mais do que isso. Guimarães contou, em depoimento, que ele próprio pagou 10 mil reais para que Gomes da Silva, o ex-assessor dos Correios, se dispusesse a aparecer no Fantástico confirmando a  existência do esquema. (Em nota, a Globo afirmou que produziu uma reportagem “isenta e baseada em fatos” e que Gomes da Silva era “parte legítima” a ser ouvida porque havia detalhado o funcionamento do esquema. “Se suas declarações foram compradas, era impossível saber à época”, disse a emissora.)

Guimarães e Pompílio faziam questão que os Correios fossem incluídos na reportagem porque, sendo uma estatal com ramificações no país inteiro, o assunto ganharia repercussão nacional. Com isso, conseguiriam ampliar as possibilidades de abordar empresários do ramo de órteses e próteses do Rio que estivessem sob investigação policial, exatamente como fizeram com Souza Junior, o dono da Signus, para lhes oferecer uma saída: livrar-se da polícia mediante o pagamento de propinas milionárias.

Deu certo. Souza Junior, cujo nome não apareceu na reportagem, assistiu ao programa estupefato. No dia seguinte, segunda-feira, ele voltou a encontrar o advogado Guimarães, desta vez em um posto de combustível na Barra da Tijuca. Na conversa, o advogado foi direto ao ponto: disse que o delegado Pompílio da Hora estava disposto a livrar a Signus das apurações caso o empresário pagasse 1,5 milhão de reais. O dinheiro, segundo Guimarães, seria dividido entre cinco pessoas: ele próprio, o médico Santana Neto, o escrivão Everton da Costa Ribeiro e os delegados Pompílio da Hora e Júlio Rodrigues Bilharinho. Todos os citados estavam lotados na delegacia da Polícia Federal instalada dentro dos Correios, responsável por investigar delitos ligados à estatal.

O empresário pagou. Ainda naquela semana, o advogado Guimarães e o médico Santana Neto, os achacadores, buscaram Souza Junior na sede da Signus a bordo de um carro blindado. Quarenta minutos depois, o trio estava na delegacia da PF, na Avenida Presidente Vargas, Centro do Rio. Souza Junior carregava uma sacola dentro da qual havia um grande envelope com 360 mil reais em dinheiro vivo. Era a primeira parcela do suborno de 1,5 milhão. Entraram pela garagem do prédio, onde o escrivão Everton Ribeiro os aguardava. O empresário entregou a sacola ao escrivão, que abriu o porta-malas de um carro e jogou o dinheiro dentro.

Em seguida, todos subiram para o andar da delegacia, onde o dono da Signus prestaria depoimento. O escrivão e o advogado lhe disseram para ficar tranquilo. Feito o pagamento, o depoimento seria mera formalidade. “Fizeram umas perguntas sem pé nem cabeça, aparentemente só para encher linguiça”, lembrou o empresário Souza Junior ao Ministério Público Federal, tempos depois, quando se tornou delator.

No meio do depoimento, o delegado Pompílio entrou na sala. Depois de cumprimentar o depoente com um aperto de mãos, jogou na mesa um jornal com reportagem justamente sobre a “máfia das próteses” e virou-se para o escrivão. Deu-se o seguinte diálogo:

– Tudo certo aí? – perguntou o delegado, com sua voz rouca e pausada.

– Aqui tá certo – respondeu Ribeiro.

– Então tá bom, gente, tô indo – despediu-se o delegado.

Souza Junior interpretou a aparição do delegado e do jornal sobre a mesa como uma forma de demonstrar sua anuência com o esquema. Depois de assinar o depoimento, ao voltar para a garagem do prédio, o advogado Guimarães e o médico Santana Neto reforçaram ao empresário a necessidade de pagar o restante da propina para que Pompílio de fato não levasse adiante as suspeitas contra a Signus. O empresário cumpriu o acordo. Até o dia 16 de janeiro daquele ano, fez dezesseis saques nas contas de sua empresa. A propina de 1,5 milhão de reais foi dividida entre os cinco achacadores em partes iguais – 20% para cada um.

Com o acerto, Souza Junior ficou blindado na Polícia Federal do Rio, mas a Signus continuava com flanco aberto em Minas Gerais. Seis meses depois do pagamento de 1,5 milhão, a Polícia Federal em Montes Claros deflagrou a Operação Desiderato para investigar a mesma fraude na venda de equipamentos médicos para hospitais públicos em quatro estados. Em Minas, o caso envolvia duas empresas. Uma delas era a Signus. No curso da investigação, o empresário acabou denunciado à Justiça por corrupção ativa, participação em organização criminosa e falsidade ideológica. Para escapar de uma provável condenação, recorreu aos procuradores federais de Minas e do Rio e decidiu contar tudo – sobre o esquema das próteses e também sobre a extorsão na PF fluminense.

Embora ambicionasse o posto de superintendente da Polícia Federal no estado do Rio de Janeiro, Pompílio da Hora, filho de professores do Colégio Pedro II, teve uma carreira apagada. Na verdade, destacou-se mais pelas suspeitas que suscitou do que pela produtividade como policial. Desde que se tornou delegado da PF, em 1997, aproximou-se do colega Antônio Rayol, suspeito de integrar a banda podre da PF fluminense. Em outubro de 2004, a dupla flagrou o publicitário Duda Mendonça em uma rinha de galo no Rio. Dias depois, cheques já assinados de um talão apreendido na rinha começaram a ser descontados na boca do caixa, deixando a suspeita de que os valores estavam sendo embolsados pelos policiais. A Corregedoria da PF investigou o caso, mas não encontrou provas do envolvimento de Pompílio e Rayol.

Pompílio passou por várias delegacias do Rio até assumir, no início da década, o comando do Núcleo de Repressão a Crimes Postais, ou “Núcleo dos Correios”, que investiga delitos na empresa pública. Em junho de 2013, ele instaurou inquérito para apurar irregularidades no pagamento de serviços médicos não prestados pelo plano de saúde dos Correios. Era o início da Operação Titanium, que acabaria por revelar um caso exemplar de corrupção dentro da própria Polícia Federal.

Para auxiliar a investigação de Pompílio, os Correios entregaram dois documentos relevantes aos agentes. Um deles era uma planilha com notas fiscais frias emitidas por oito hospitais privados do Rio. As notas referiam-se a pagamentos por procedimentos que nunca foram realizados. O outro documento listava os maiores fornecedores de próteses para o plano de saúde dos Correios. A investigação do Ministério Público Federal concluiu que, combinadas, as duas tabelas serviram de bússola para que o trio – Pompílio, o delegado Júlio Bilharinho e o escrivão Everton Ribeiro – extorquissem os donos de, pelo menos, quatro hospitais privados.

Um dos primeiros alvos foi João Alberto Magalhães Cordeiro Júnior, dono do Hospital Rio Laranjeiras. Naquele estabelecimento, houve fraude na cirurgia da mulher de Gomes da Silva, o ex-assessor da diretoria dos Correios entrevistado pelo Fantástico. A cirurgia, na verdade, nunca fora feita e, no entanto, custara 53 mil reais ao plano de saúde dos Correios. No dia 2 de novembro de 2013, o jornal Extra publicou uma reportagem sobre a fraude. A matéria era correta e relatava os fatos com precisão, e os achacadores não demoraram a faturar com o noticiário. O advogado Guimarães reuniu-se com Cordeiro Júnior e pediu propina de 1,25 milhão de reais para livrá-lo da investigação. No dia 12 de fevereiro de 2014, o empresário sacou 1 milhão da conta do Rio Laranjeiras e entregou ao advogado. O restante, 250 mil, foi transferido para a conta de uma empresa de Guimarães.

A partir de então, Cordeiro Júnior saiu do inquérito, mas entrou no esquema. Naquele mesmo mês de fevereiro, já alinhado com os policiais corruptos, ele próprio procurou outro possível alvo para achacar: os primos Eduardo e Luciano Balbino, donos do Hospital Balbino, que também apareciam na planilha das possíveis fraudes. Em jantar no restaurante Salitre, na Barra da Tijuca, Cordeiro Júnior fez questão de admitir ter pagado propina para excluir seu hospital das investigações da PF, demonstrou intimidade com os policiais exibindo fotos do escrivão Ribeiro no seu celular e deu o bote: aconselhou os primos a também pagarem suborno, já que estavam na mira dos delegados Pompílio e Bilharinho e corriam o risco de serem expostos na imprensa.

Mas, para surpresa de Cordeiro Júnior, os primos recusaram a proposta. Dias depois, o Extra publicou uma reportagem com o título Correios Pagou R$ 1,1 Milhão ao Hospital Balbino por Cirurgias que Não Teriam Acontecido. A matéria, usando um recurso legítimo do jornalismo, não citava nominalmente a fonte das informações, mas investigações posteriores, que incluíram quebra de sigilo telefônico, indicaram que o delegado Pompílio pode ter sido a figura central no vazamento da notícia. Desta vez, no entanto, o golpe não funcionou. Eduardo e Luciano Balbino são acusados de envolvimento nas fraudes e respondem a ação penal por peculato na 3ª Vara Federal Criminal do Rio, mas não pagaram propina aos corruptos da Polícia Federal.

Em 2015, Pompílio deu um passo além. Antes, se limitava a fazer um vazamento seletivo de informações verdadeiras. Nessa época, porém, de acordo com a delação do advogado Guimarães, o delegado forjou uma denúncia segundo a qual o Postalis, o fundo de pensão dos Correios, teria comprado fraudulentamente debêntures emitidas pelo Galileo, um grupo educacional que mais tarde iria à falência. A operação irregular, de fato, acontecera, mas ninguém fizera qualquer denúncia à PF. Pompílio inventou um documento de seis páginas relatando o ocorrido para justificar a abertura de um inquérito. O autor da denúncia era um tal de Reinaldo Souza da Silva, personagem fictício criado pelo delegado. Dias depois, uma reportagem da revista IstoÉ mencionou a existência da denúncia e citou o tal Souza da Silva como se fosse uma pessoa real. Com o inquérito aberto, Pompílio achacou o grupo Galileo e, segundo a delação de Guimarães, embolsou 300 mil reais.

Até então, com seu jeito tranquilo e bonachão, Pompílio tinha boas relações com jornalistas que cobrem assuntos policiais. A suspeita de que promovia o vazamento de informações manipuladas só ganhou corpo em abril de 2018. Na época, junto com os delegados Hélio Khristian de Almeida e Felício Laterça, Pompílio plantou no jornal O Globo uma reportagem destinada a tumultuar a investigação sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. O trio de delegados arranjou um miliciano que dizia saber quem eram os mandantes do crime. O miliciano deu entrevista ao jornal e repetiu sua versão em depoimento. Meses depois, no entanto, a Polícia Civil e o Ministério Público provaram que a acusação do paramilitar era falsa. Serviu apenas para desviar o foco dos investigadores que, até hoje, quase três anos depois da morte da vereadora e de seu motorista, não descobriram o mandante. (Pompílio nega envolvimento na plantação do miliciano.)

No curso da Operação Titanium, Pompílio recorreu a outro artifício irregular para ampliar seu mercado. Passou a investigar também fornecedores de órteses e próteses para hospitais federais do Rio. Segundo o Ministério Público Federal, era uma expansão indevida, já que a delegacia de Pompílio deveria se restringir a crimes relacionados aos Correios. Nesta segunda etapa, um dos alvos foi Ricardo Rangel Sohn, dono da Heartline, uma distribuidora de próteses. Intimado a prestar depoimento em 12 de março de 2015, Sohn compareceu à delegacia da PF tão tranquilo que nem levou um advogado. Supunha que não teria problemas, já que não tinha envolvimento algum com os Correios. Mas era uma armadilha.

No meio do depoimento, o escrivão Everton Ribeiro começou a fazer perguntas sobre contratos da Heartline para o fornecimento de próteses a hospitais federais do Rio. Sohn começou a ficar nervoso, pois, nesse caso, segundo o MPF, ele havia praticado fraudes. No momento mais tenso da oitiva, o delegado Pompílio entrou na sala. O escrivão comentou com o chefe sobre o nervosismo do empresário. O delegado mirou rapidamente Sohn e respondeu, lacônico: “Quem deve, teme.” E saiu da sala. O empresário chegou a passar mal na delegacia e acabou dispensado.

Dias mais tarde, Sohn foi procurado pelos dois operadores do esquema, a dupla de sempre: o advogado Marcelo Guimarães e o médico Santana Neto. Inicialmente, pediram 2 milhões de reais em propina, mas, por fim, reduziram o valor para 1,35 milhão. A propina foi paga com dez cheques: um no valor de 400 mil reais e outros nove de 50 mil reais cada um. Os 500 mil restantes foram entregues por Sohn em espécie para Santana Neto. Depois da quitação, o dono da Heartline depôs novamente à PF, agora com perguntas mais amenas. Sua empresa desapareceu do inquérito.

Sempre que recebia seu quinhão das propinas, o escrivão Everton Ribeiro, um sujeito extrovertido e arrogante, saía gastando, de acordo com o MPF. Comprava caminhonetes enormes, bons automóveis, jet ski, relógios importados. Quando comprou um utilitário Dodge Journey, em junho de 2015, que na época custava cerca de 130 mil reais, Ribeiro enviou uma foto do veículo para Pompílio com um comentário: “Para de babar meu chefe kkkkkkkkkkk.”

Era uma provocação com o estilo discreto do delegado. Em conversa gravada por um delator, o médico Santana Neto afirma que, embora Pompílio tivesse um patrimônio de pelo menos 5 milhões de reais, nunca fazia gastos exagerados: “Sabe qual o carro que ele anda? Um Gol duas portas 2009, [motor] mil. Sabe qual o carro que ele tem em casa… Nenhum… É o Gol. […] Na pessoa física dele não tem nada [registrado em seu nome]… pelo contrário. Ele tem quatro filhos, paga pensão alimentícia, então o salário dele na saída já é 20% pra cada um, então, o que ele fica pra viver é quase nada. […] Ele diz ao Marcelo [Guimarães] todo dia: ‘Eu vivo no compatível. Tu pode andar no carro mais bonito que tu puder, tu é advogado, qual o problema? Eu é que não posso. Eu tenho que ficar aqui ó, quietinho, que é pra nego, nego tem gana em mim, se eu botar a cabecinha pra fora…’”

Na gravação, o médico ainda descreve a trajetória de Pompílio e seus operadores: “Ele teve três operadores na vida dele. Dois já morreram. […] E sabe por que que ele fez [seus esquemas ilícitos]? […] Dois filhos dele estavam com perspectiva de estudar e ele não tinha condições de bancar se fosse com o salário seco. Ele tava duro. […] Aí ele caiu pra dentro e quando entrou se sentiu seguro com o Marcelo [Guimarães], aí abriu e deixou o Marcelo velejar…” Cuidadoso, Pompílio nunca conversava sobre seus esquemas por telefone ou aplicativos de mensagens. “Lembre sempre”, escreveu a Guimarães no WhatsApp. “Telefone é para marcar encontro. Ou discutir o presente. Não para lembrar o passado.”

Apesar de todos os cuidados, na manhã de 11 de junho de 2019, quando começou a fase ostensiva da Operação Tergiversação, destinada a investigar as fraudes e as propinas pagas aos agentes federais, nove pessoas foram presas, seis delas preventivamente, incluindo o delegado Pompílio, o escrivão Ribeiro, o médico Santana Neto, o advogado Guimarães e o empresário Cordeiro Júnior – todos deixariam a cadeia dias depois graças a pedidos de habeas corpus. Na casa de Pompílio, os agentes da pf encontraram vários envelopes para depósitos de dinheiro em espécie em caixa eletrônico, alguns já preenchidos com o valor de 2 mil reais. O valor é uma maneira de omitir a identificação do depositante, caso o depósito seja feito de uma só vez na boca do caixa. (O recurso de limitar depósitos ao máximo de 2 mil reais ficou nacionalmente conhecido por ter sido usado pelo ex-policial Fabrício Queiroz, o operador da rachadinha do senador Flavio Bolsonaro.)

Todos foram denunciados à Justiça pelo MPF por corrupção ativa e passiva, associação criminosa e, no caso do médico Santana Neto, do advogado Guimarães e do empresário Ricardo Sohn, também por lavagem de dinheiro. Se condenados, Pompílio e seus comparsas podem pegar até trinta anos de prisão cada um. Em janeiro deste ano, o delegado pediu aposentadoria da PF, mas continua como professor na Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Sua permanência na universidade é, inclusive, defendida pelo diretor da faculdade de direito, Carlos Bolonha. Diz ele: “Não existe qualquer problema de ordem administrativa que desabone a conduta do referido professor.” É um fim de carreira desastroso para quem, na campanha eleitoral de 2018, chegou a se articular para ocupar o cargo de secretário de Segurança Pública caso Eduardo Paes, então candidato ao governo, se elegesse. A derrota de Paes afundou o projeto.

Pompílio não quis dar entrevista. Sua defesa mandou uma nota rebatendo as acusações: “O delegado Lorenzo nunca exigiu, solicitou ou recebeu nenhuma vantagem indevida ao longo da sua vida profissional, o que restará provado ao longo do indevido processo criminal instaurado contra ele.” A defesa informa ainda que o delegado possui patrimônio compatível com seu salário de servidor público. Segundo seus advogados, Pompílio mora em um modesto apartamento alugado na Zona Norte do Rio. “Ele já sofreu duas buscas e apreensões, quebra de sigilo fiscal e bancário e não foi encontrado nenhum bem ou valor ilícito. […] Ele e sua família passam por uma situação vexatória e por verdadeiro assédio processual por parte do órgão de acusação. Alegações infundadas de possíveis delatores, verdadeiros autores de crimes, que desejam mercantilizar informações falsas com o órgão de acusação para obterem vantagens processuais ou penais, sem nenhuma outra prova, não têm valor e nem merecem credibilidade.”

Os advogados dos demais acusados não quiseram se manifestar.

Michel Misse, sociólogo especialista em segurança pública da UFRJ, criou o conceito de corrupção como “mercadoria política”, negociada entre o cidadão infrator e o representante do Estado. É sempre uma troca assimétrica, dado o poder de punir por parte do servidor público (daí o caráter político da relação). “O agente do Estado privatiza o poder que o Estado lhe dá para fins pessoais imediatos”, teoriza Misse.

Na polícia carioca, essa troca ilícita inclui as “caixinhas” pagas pelo jogo do bicho, desde os primórdios do século XX, passa pelos arregos com o narcotráfico e deságua nas “taxas de segurança” cobradas pela milícia. No caso da Polícia Federal, diz Misse, as possibilidades de troca são potencializadas tanto pela qualidade dos crimes que investiga (como sonegação fiscal, fraudes em licitação e peculato contra a União, que podem atingir cifras milionárias), quanto pela menor pressão social exercida sobre a corporação, que, ao contrário das polícias estaduais, não tem atendimento em balcão para registro de ocorrências – e, por isso, fica mais distante do público.

A Polícia Federal passou por um intenso processo de modernização e capacitação profissional a partir do início dos anos 2000, no primeiro mandato de Lula. De um órgão censor no regime militar, tornou-se ponta de lança no combate a grandes organizações criminosas, incluindo as de colarinho branco, de que a Lava Jato é o exemplo mais reluzente. Mas nunca deixou de ter seus próprios pecados. Paradoxalmente, o agente Newton Ishii, o Japonês da Federal, que se notabilizou por escoltar presos ilustres da Lava Jato, foi condenado por facilitar o contrabando na fronteira com o Paraguai, no início do século.

No Rio de Janeiro, a Polícia Federal é pródiga em desmandos por parte de delegados, agentes e escrivães. Entre 2002 e 2011, o MPF denunciou 150 policiais federais fluminenses, o equivalente a 10% do efetivo na época, por crimes ligados à corrupção. A varredura anticrimes dos procuradores na PF do estado começou com a Operação Planador, de 2002, que levou à prisão quinze agentes e escrivães, acusados de falsificar passaportes para traficar pessoas – incluindo crianças – do Brasil para a Europa (eles acabaram absolvidos pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região). Quatro anos mais tarde, dois ex-superintendentes da PF no Rio foram presos na Operação Cerol, sob suspeita de vazar informações sigilosas de inquéritos contra fraudadores da Previdência em troca de suborno.

A maior operação anticorrupção contra a PF fluminense, porém, ocorreu em 2007: a Hurricane prendeu 57 pessoas, 10 delas da PF no Rio, acusadas de receber propinas milionárias de bicheiros. No rol de presos, estava o delegado Júlio Rodrigues Bilharinho, que, segundo o MPF, fazia dobradinha com Pompílio nas fraudes na área da saúde. O próprio Pompílio foi investigado na Hurricane, mas nada foi provado contra ele. Bilharinho foi denunciado pelo MPF por corrupção passiva, mas a ação penal foi anulada pelo Tribunal Regional Federal. Ele se aposentou em 2016.

Apesar desse histórico, pouquíssimos policiais federais são expulsos por práticas corruptas. Nos últimos cinco anos, a PF demitiu apenas 19 por esse tipo de conduta, 5 deles no Rio, de acordo com dados da corregedoria da instituição obtidos pela piauí.

Em junho de 2019, quando foi deflagrada a Operação Tergiversação, destinada a investigar as propinas na PF, o advogado Marcelo Guimarães, o atuante operador do esquema, já era um homem rico. Vendera havia pouco tempo sua participação na Casa de Saúde São Bento, na Ilha do Governador, da qual se tornara sócio na forma de propina: os proprietários admitiram-no na casa de saúde para se livrar das investigações do delegado Pompílio. Ainda era dono de uma imobiliária e uma empresa de contabilidade na capital fluminense, além de uma clínica médica em Miami. Entre janeiro de 2014 e outubro de 2015, período em que o esquema de propinas da PF carioca estava a pleno vapor, Guimarães e a mulher mantiveram uma offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, a Braco Holdings.

Quando sua prisão foi decretada, Guimarães estava nos Estados Unidos. Ao retornar ao Rio no dia 22 de agosto, depois de mais de dois meses foragido, procurou o Ministério Público Federal disposto a fechar um acordo de colaboração premiada. Tornou-se um delator meticuloso. Prestou 35 depoimentos sobre o caso. Suas informações foram posteriormente confirmadas por meio de quebras de sigilo telefônico e bancário dos investigados. Todo um sistema de corrupção veio à tona, sempre na forma de subornos para abortar investigações policiais.

Em sua delação, Guimarães narrou como o esquema se multiplicava: o empresário achacado de hoje era o achacador de amanhã, como aconteceu com Cordeiro Júnior, que aderiu ao esquema e passou a indicar outros empresários fraudadores cujos problemas, afinal, poderiam ser resolvidos à base de suborno. O cardiologista Victor Duque Estrada Zeitune, por exemplo, que segundo o MPF pagou propina para se livrar de uma investigação em seu hospital em Engenho de Dentro, no Rio, pediu para Guimarães aliviar a situação de um colega. Tratava-se de Marcelo Freitas Lopes, apelidado de Bin Laden, cuja empresa, a Especifarma, estava sob investigação. O caso foi resolvido com o pagamento de 480 mil reais. Guimarães recebeu uma parte, o próprio cardiologista Zeitune recebeu outra e a terceira fatia coube ao delegado da PF Wallace Noble, titular do caso.

Guimarães contou, em um dos seus depoimentos, que os delegados recebiam “mensalinhos”. Bin Laden, por exemplo, pagava 5 mil reais para o delegado Noble que, em troca, informava-o sobre possíveis operações da PF contra fraudes na venda de remédios para órgãos públicos, o grande nicho de mercado da Especifarma. Também pagava 5 mil para o delegado Pompílio, que prometeu livrá-lo de operações na área da saúde. A mesada era entregue a cada dois meses no escritório de advocacia dos filhos de Pompílio e só foi interrompida em junho de 2019, quando o delegado foi preso. Em conversa com Guimarães, que portava um microfone oculto, o dono da Especifarma afirmou que, caso os repasses fossem descobertos, diria que namorava Pompílio. Aos risos, antecipou sua versão: “Tá bom, ele me come. Eu sou viado, ele me come. […] Eu tinha tesão nele.”

Pompílio não poupava nem o seu operador. Em janeiro de 2017, o delegado descobriu que a PF investigava o esquema de achaques do qual ele participava, mas concluiu – erradamente – que apenas o escrivão Everton Ribeiro e o seu operador, o advogado Guimarães, eram investigados. Então resolveu pedir suborno ao operador para livrá-lo do inquérito. Guimarães entregou ao delegado seu automóvel Ford Fusion Titanium, que Pompílio adorava, não só pelo conforto, mas também porque levava o nome da operação – Titanium – que ele usava como gazua. Para não chamar a atenção, o delegado continuou “vivendo no compatível”: transferiu o veículo para o nome de um laranja e seguiu dirigindo seu velho Volkswagen Gol 2009. Em outra ocasião, Guimarães contou que precisava achar um empresário de quem comprara uma clínica médica, no Rio. Pompílio se dispôs a arranjar um motivo para abrir um inquérito contra a clínica e forçar a aparição do empresário. Em troca, exigiu que Guimarães lhe pagasse 250 mil reais. Como o advogado disse que não tinha esse dinheiro de uma só vez, fecharam um “mensalinho” de 5 mil mensais.

Naqueles dias, segundo o delator, Pompílio “estava muito nervoso com dinheiro, acreditando que ele tinha gastado toda a propina recebida no esquema da Titanium”. O advogado afirmou ao MPF que o delegado começou a pressioná-lo para que conseguisse outras potenciais vítimas – empresários envolvidos em algum ilícito – dispostas a desembolsar “mensalinhos”.

Depois de junho de 2019, quando Pompílio foi preso, as oportunidades de suborno para o delegado Wallace Noble também despencaram. Sem saber que o advogado Guimarães virara um delator, Noble recorreu a ele para pedir ajuda financeira – na verdade, achacá-lo mais uma vez, pois Guimarães tinha suas próprias empresas fraudadoras, que precisavam de proteção da polícia corrupta. Guimarães então foi orientado a armar um flagrante em uma lanchonete na Barra da Tijuca. Agentes federais disfarçados, portando câmeras ocultas, registraram o momento em que o delegado pega a carteira de Guimarães, tira um maço de dinheiro e enfia tudo no bolso.

Nessa época, Noble esperava ser preso a qualquer momento. Numa ocasião, chegou a comentar com outro delator disfarçado, que o gravou às escondidas, que no dia anterior tinha certeza de que a PF bateria na sua porta. Só foi preso no dia 15 de outubro passado. Está em uma das celas do presídio Constantino Cokotós, em Niterói. Seu advogado, Cláudio Serpa da Costa, diz que não há nada que o incrimine. “O que existe neste caso são ilações, não fatos concretos. Nada indica que o delegado recebeu propina, muito menos que houve conluio dele com empresários.”

Até o fechamento desta edição, em meados de dezembro, o empresário Marcelo Freitas Lopes, o Bin Laden, dono da Especifarma, continuava foragido. Segundo o advogado Michel Assef Filho, seu cliente está em Portugal. Bin Laden, assim como o delegado Noble, foi denunciado à Justiça por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. O cardiologista Zeitune foi implicado apenas nos dois primeiros crimes. Nem ele nem sua defesa foram localizados pela piauí.

São raros os casos de corrupção em que a atuação dos envolvidos fica tão claramente estabelecida. Mas os valores movimentados são sempre uma charada mais difícil de decifrar. O certo é que os policiais corruptos do Rio encontraram um mercado farto no setor de saúde pública, com ilícitos de todo tipo. Duas investigações apuraram que, durante a gestão do ex-governador Sérgio Cabral (2007-14), os desvios dos cofres públicos com a compra de equipamentos médicos pela Secretaria Estadual de Saúde e pelo Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into) chegaram a 600 milhões de reais.

Durante os seis anos em que durou o esquema de achaques na Polícia Federal, o MPF estima que os policiais embolsaram, no mínimo, 10 milhões de reais em propinas. Nos acordos de delação, o advogado Marcelo Guimarães e o médico Santana Neto se comprometeram a pagar multa de 3 milhões e 1,3 milhão, respectivamente. Como parte do acordo com os procuradores, Guimarães ficará sete meses na prisão. Santana Neto já cumpriu a sua pena de seis meses. A Superintendência da Polícia Federal no Rio não informa se os policiais implicados no caso respondem a processos disciplinares.

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