Carvão volta a crescer, mesmo com militância verde. Geopolítica e segurança energética
Por Jose Sergio Gabrielli de Azevedo, compartilhado de Holofote Notícias
Os dados recentes sobre as fontes primárias de energia da Europa são surpreendentes, depois de intensas tentativas de descarbonização. Os países da União Europeia (UE), ao mesmo tempo em que decidem banir os novos veículos com motores a combustão até 2035, abrindo espaço para veículos elétricos e híbridos, aumentam, sim aumentam, o consumo de carvão na geração elétrica.
Muitos acreditavam que para atingir as metas acordadas em Paris em 2015, e confirmadas na COP26 de Glasgow, o mundo reduziria a utilização do carvão e lignita, tornando inviáveis muitos reservatórios dessas fontes fósseis de energia. Um terço das minas na Europa, América do Norte e Austrália se tornariam ativos inviáveis de produção até 2040, obrigando as empresas a saírem dessas atividades.
Há estimativas de que 82%-88% das atuais 1004 Gt de reservas de carvão teriam que permanecer no subsolo, para limitar o aumento da temperatura média do planeta a 2ºC. Mas não, os dados depois da pandemia e principalmente depois da guerra da Ucrânia, mostram uma trajetória oposta, pelo menos no curto prazo.
Os governantes da UE estão receosos que as sanções contra a Rússia e seus efeitos sobre as importações europeias de gás natural, assim como os efeitos da retomada do crescimento chinês sobre os mercados de GNL na Ásia-Pacifico e dificuldades dos Estados Unidos suprirem as demandas continentais, considerando os baixos níveis de estocagem existente, passaram a permitir um maior uso de carvão na geração elétrica desses países, reativando plantas que estavam hibernando sob as restrições ambientais anteriormente vigentes. Também há um crescente movimento de conversão de usinas termoelétricas movidas a gás natural para utilizarem carvão como fonte de energia.
Mesmo considerando as medidas como emergenciais, há expectativas de que elas possam durar alguns anos, comprometendo as metas de redução de emissões de gases de efeito estufa. As emissões do carvão são o dobro do gás natural na geração elétrica e a Alemanha, Itália, Holanda, Reino Unido, Dinamarca e Áustria pretendem utilizar mais carvão para complementar seus estoques até novembro, sinalizando um aumento do seu uso nos próximos meses.
Em termos de equivalência de CO2 por KW/hora, a lignita produz 1,024 gramas de CO2, o carvão 0,864, o gás natural 0,442, a energia nuclear 0,117, a solar 0,033 e a eólica 0,009 mostrando que as energias renováveis são de fato extremamente benéficas para a transição energética no planeta
Além das maiores emissões na queima do carvão, sua extração dos reservatórios também libera metano, preso nas rochas carboníferas, agravando muito os impactos sobre o aquecimento global. Dados do Global Energy Monitor destacam que as minas de carvão operando no mundo, em 2021, emitiram 52,3 milhões de toneladas de metano, mais do que o gás natural (45 milhões) e petróleo (39 milhões).
A Alemanha, campeã de medidas em favor de uma economia de baixo carbono e principal importadora de gás natural da Rússia, mudou de rumo e está aprovando mudanças de sua legislação para possibilitar a expansão de até 10GW de geração termoelétrica utilizando o carvão até 2024, substituindo 16% do seu mercado de gás imediatamente. Há estimativas de que o PIB alemão poderá se contrair em até 13% em 2022, se o fornecimento de gás natural da Rússia for completamente cortado.
A Alemanha tinha 20GW de geração de lignita e 20GW de carvão, mais do que os 31,7GW de térmicas a gás natural operando no final de maio. Na 25ª semana de 2022, o gás natural gerava quase 16% da eletricidade da Alemanha, enquanto as fontes fósseis mais emissoras geravam 40,5% da eletricidade usada pelos alemães. Por outro lado, o NordStream 1, principal gasoduto ligando Rússia-Alemanha, operava com 35% de sua capacidade.
A Itália que hoje tem apenas 5% de sua geração proveniente do uso do carvão e 40% proveniente do gás pretende aumentar fortemente o uso do combustível mais emissor, da mesma forma que a Holanda está liberando o uso de suas antigas térmicas a carvão, que estavam paralisadas.
Por outro lado, alguns países da Europa procuram mudar sua legislação para aumentar a possibilidade de expansão da oferta de gás em substituição ao gás russo. A Romênia, por exemplo, está permitindo, depois de muitos anos se opondo, a exploração de gás offshore no Mar Negro. A legislação aprovada quatro anos atrás criava dificuldades para a exploração e desenvolvimento de atividades no Mar Negro, que a Exxon e a austríaca OMV pretendiam desenvolver nas águas da Romênia. Agora o projeto está sendo retomado e novos investimentos são previstos, podendo ampliar a oferta de gás romeno para a Europa.
Apesar da emergência, os contratos romenos não são dos mais atraentes economicamente para as empresas. O government take será de 60% das receitas, depois de deduzidos os investimentos e a depreciação, há um imposto de renda adicional progressivo de 15-70% dos ganhos, se o preço do gás for superior a US$18,15 por MW hora, e o custo deduzido é limitado até 40% das receitas. O governo também está autorizado a tabelar os preços máximos para o gás a ser produzido, assim como adotar políticas que obriguem o fornecimento em caso de emergências de abastecimento.
Também há a possibilidade de ampliação direta da empresa estatal da Romênia ROMGAZ, que pode entrar, substituindo a Exxon, em outro projeto offshore – o Neptun Deep, – em águas profundas do Mar Negro.
As relações entre a Romênia e a Europa no fornecimento de gás natural exige também grandes investimentos em infraestrutura logística. Para acessar o Mar Cáspio, o Trans Adriatic Pipeline (TAP) é fundamental e uma ampliação do trecho Grécia-Bulgária que deve entrar em operação agora no 2S22, possibilitando também a aquisição de GNL do sudeste da Europa.
A grande questão estratégica para a Europa é a garantia de seus estoques de gás natural, que estão em níveis baixos historicamente. A UE está obrigando as empresas que atuam no setor a garantir 80% da capacidade de estocagem antes do inverno e 90% para os invernos futuros, o que aumentará a pressão, tanto pela sua substituição por outras fontes, como o carvão e a lignita, como restrições aos seus usos na geração elétrica e indústria, para viabilizar a acumulação dos estoques. Os efeitos sobre os preços serão inevitáveis. Estas regulações estão previstas para ficar em vigor até o final de 2025.
Essas dificuldades da política energética europeia, condicionadas pelos objetivos de redução de emissões e com alvos de emissões liquidas neutras demonstram a grande importância dos aspectos geopolíticos, que envolvem as relações entre Estados. A grande privatização dos vários segmentos do setor energético amplia essas dificuldades e reduz os instrumentos de intervenção. Há um intenso processo de municipalização, uma espécie de reestatização local, das empresas de energia na União Europeia e os agentes reguladores procuram enfatizar as medidas de curto prazo, motivadas principalmente pelas sanções contra a Rússia, na guerra da Ucrânia, mas a possibilidade de prolongamento da crise pode vir a ameaçar as metas de transição energética até 2030.
Também nos Estados Unidos há movimentos de retorno do carvão. Recentemente, a Suprema Corte americana restringiu a capacidade do órgão ambiental dos Estados Unidos, o EPA, de regular as emissões de gases de efeito estufa das usinas de eletricidade. A medida da Suprema Corte foi motivada pelo lobby das carvoeiras da Virginia Ocidental que argumentavam que as regulações da EPA estavam extrapolando os direitos dos Estados e, portanto, inviabilizando a utilização do carvão, mais barato, na produção de eletricidade. A perda de capacidade regulatória pode vir a ameaçar, no futuro, as metas de descarbonização do presidente Biden para 2035.
Muito mais grave, do ponto de vista de impactos sobre o aquecimento do globo é a situação do carvão na China, o país com maior emissão de metano e maior produtor de carvão do mundo. Recentemente, considerando as condições geopolíticas mundiais, aumento do preço do GNL e guerra da Ucrânia, a China autorizou a expansão de mais 300 milhões de toneladas métricas nas suas minas de carvão em 2022, volume equivalente a produção anual de toda a União Europeia.
Somente uma empresa, a Jinneng Holding Shanxi Coal Industry, a segunda maior produtora de carvão da China planeja implantar cinco novas usinas termoelétricas a carvão até 2025, com capacidade de geração de 10GW, correspondente a toda a produção de energia a carvão do Reino Unido.
As autoridades chinesas e o 14º Plano Quinquenal de Desenvolvimento são muito firmes na defesa da descarbonização da economia da China, pretendendo se transformar em emissora neutra em torno de 2060, porém a crise de energia depois da retomada pós Covid, o aumento dos custos da energia e a crise de fornecimento de gás natural fizeram, pragmaticamente o retorno da competitividade do poluente, mas mais barato carvão, no país. Até maio de 2022, a China anunciou planos de investimentos de 1,5 bilhão de dólares para termoelétricas a carvão, capazes de aumentar a geração em 7,3GW, o dobro do que tinha sido autorizado no mesmo período em 2021.
Até que ponto a pressão pelo baixo carbono prevalecerá sobre as necessidades econômicas de curto prazo e os interesses geopolíticos determinará a trajetória dos próximos anos das emissões de gases de efeito estufa e seus impactos sobre as mudanças climáticas. O mundo não é tão “verde” como alguns imaginam!
Jose Sergio Gabrielli de Azevedo é economista, professor titular aposentado da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis Zé Eduardo Dutra (INEEP)