Evangélicos no réveillon dos macumbeiros

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Festa criada por um pai de santo, que reúne milhões em Copacabana, agora terá palco gospel. Tomara que sirva para ensinar tolerância religiosa a quem precisa aprender

Por Aydano André Motta, compartilhado de Projeto Colabora




na foto: Fiéis de religiões de matriz africana carregam oferendas pela praia de Copacabana no réveillon: festa do candomblé e da umbanda. Foto Pedro Kirilos/Riotur

Tata Ti Inkice, mestre,

espero que essas linhas lhe encontrem bem. Elas seguem para lhe dar notícias sobre a festa que o senhor inventou, num legado inestimável ao Rio e ao Brasil. Sim, meu pai, o encontro de macumbeiros para saudar mãe Iemanjá na chegada do novo ano virou concentração de milhões – além de ótimo negócio para muita gente. Sua criação transformou-se numa das melhores (e mais lucrativas) caras do Rio e do Brasil.

Talvez só o senhor, na infinita sabedoria dos mais preparados sacerdotes, imaginasse que aquelas pequeninas reuniões pontilhadas de axé, na década de 1950, dessem no megaevento de milhões que ocupa a orla carioca no século 21. E o bafafá transbordou de Copacabana para outras praias e cidades país afora! Em poucos momentos, a alegria se espalha com tanto desembaraço.

Mas as cenas da multidão de branco, concentrada no cenário espetacular, são imbatíveis. A praia com sua curva suave e sensual, a moldura das montanhas, o encanto sob as estrelas (ou a chuva, e tudo bem) formam paisagem única. Certamente dá para ver aí do orun – e todos devem cumprimenta-lo, Tata. Sua obra foi longe.

E olha que, quando começou, era apenas a tentativa de libertar a fé de matriz africana do gueto a que confinada pela sociedade sempre racista do Brasil. Poucos, dos milhões que vestem branco, pulam ondas e comem uvas na virada do ano, sabem do valor e das intenções de sua obra. Permita-me o abuso: ao fundar a Federação Espírita de Umbanda, em 1952, você defendeu a exposição e divulgação dos rituais como ferramentas de combate ao preconceito sempre à espreita das religiões não cristãs.

Assim, criou as festas de Ialoxá, na Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte; a de Cruzambê, em Betim (MG); a de Preto Velho, em Inhoaíba (RJ); e a de Xangô, em Pernambuco. A mais importante foi a de Iemanjá, na Praia de Copacabana. Nos primeiros anos, aconteceu em 2 de fevereiro, dia consagrado à rainha do mar, mas o senhor logo entendeu que a celebração deveria se conectar à virada do ano. E mobilizou filhos de terreiros das várias regiões do estado para as oferendas à beira-mar.

Nos primeiros anos, o ritual do 31 de dezembro manteve-se praticamente exclusivo dos fiéis da umbanda, que procuravam trechos sossegados da areia para entoar os pontos no ritmo preciso do atabaque, e preparar as oferendas à dona de todas as cabeças. Vestidos com o branco que no futuro seria uniforme da noite, carregavam presentes e comidas até o mar e, sem ser incomodados – sequer notados pela maioria da população –, voltavam para casa, em paz com seu credo.

Com o passar dos anos, os rituais se integraram à paisagem, até cativar a atenção dos locais. A ponto de todos entenderem a magia de atravessar a noite da virada do ano ao ar livre, celebrando a vida e o recomeço marcado no calendário. Diante da festa gigante, planetária, que predominou no futuro, parece óbvio – mas por muito tempo, não foi.

Espero que a recordação lhe tenha sido agradável, Tata. Vai como homenagem merecida a alguém que atravessou seus 75 anos no aiê (o mundo físico, na mitologia iorubá) pregando e praticando a tolerância religiosa. Em Copacabana, deu certo – os moradores começaram a frequentar as giras, para pedir por tempos melhores. Sua escolha foi, de novo, sábia: nenhum lugar sobre a Terra seria mais apropriado para cruzar a noite de verão e receber o novo ano – diante do mar, com os pés na areia, todos envoltos nas melhores energias.

A cidade virou megalópole, multidões de moradores e turistas chegaram e seu crédito pela invenção do furdunço se esvaiu como a maré quando baixa. Deveria haver um busto seu no calçadão, para que todos saibam a história do réveillon mais famoso do mundo: obra de Tancredo da Silva Pinto, o Tata Ti Inkice, nascido em Cantagalo, Região Serrana do Rio, em 1904. Mas isso são parâmetros dos humanos aqui no aiê, releve.

Agora para 2025, sua festa ganhou novo parâmetro: terá um palco gospel – isso mesmo, dedicado à música dos evangélicos. Pai, em busca dos votos, os políticos acendem velas para entidades as mais variadas, e o atual prefeito do Rio, Eduardo Paes, tem muita desenvoltura nesses malabarismos. Para agradar parte numerosa do eleitorado – aqui, alguns anos depois de o senhor ir para o orum, fundou-se a Igreja Universal do Reino de Deus, denominação radical no preconceito contra as religiões do axé. Pois agora, os fiéis dela e de outros ganharam espaço na sua festa.

Tomara que a inovação contribua para mitigar a intolerância que grassa por comunidades populares da cidade, o ano todo, muito além da virada. Pais e mães de santo como o senhor são massacrados por traficantes abduzidos pela leitura torta, criminosa, do Evangelho, e obrigados a fugir para não morrer. Os marginais destroem tudo que fica para trás – terreiros, imagens, oferendas –, em atos que ficam impunes, minimizados pelos encarregados da segurança. A liberdade de credo tão buscada pelo senhor, mestre, está na Constituição brasileira – mas não vigora em muitas comunidades do Rio.

Oxalá os evangélicos que forem a Copacabana entendam as origens da festa. Se vestirem branco, servirá como um passo na direção certa. E assim, estarão integrados à sua obra inestimável, Tata Ti Inkice, e, ao menos por uma noite, encenarão a tolerância que precisa ser todo dia, o ano todo, a vida toda.

Sua bênção, pai.

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