Sofrimento de mulheres na fila para visitar filhos inspirou Sandra, vítima de trabalho análogo à escravidão na adolescência
Por Caroline Rocha, compartilhado de Projeto Colabora
Na foto: Sandra na entrada da Casa Mãe Mulher: acolhida para mães de jovens internados por conflitos com a lei (Foto: Caroline Rocha)
“Doada” a uma tia aos cinco anos de idade para “ter um futuro”, Sandra Santos foi submetida a trabalhos análogos à escravidão por 13 anos. Trancada do lado de fora da casa da “família de criação” com quem foi morar aos 12 anos, era comum que a menina dormisse na rua após passar a madrugada arrastando móveis e fazendo faxina. Agora, aos 58 anos, Sandra lidera o projeto Casa Mãe Mulher, que considera um quilombo de mães, reunindo centenas de mulheres pretas invisibilizadas, assim como ela, durante toda a vida.
Sandra Santos fundou o projeto em 2011, após presenciar mães desmaiarem na fila da revista para visitar seus filhos no Degase, o Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro. As mulheres – que moram, muitas vezes, em municípios distantes – levam horas para chegar ao Centro de Atendimento Intensivo de Belford Roxo (CAI Baixada) e passam todo esse tempo sem comer, ir ao banheiro ou beber água.
Essas mulheres precisam ser ouvidas. Elas precisam desse momento de paz e de tranquilidade, de alguém que traga algo novo para elas. A Casa Mãe é um quilombo. Um dia eu estava aqui e ouvi aquela voz gritando para mim: ‘Sandra, a Casa Mãe é o grito dos ancestrais!’ Eu cheguei a me arrepiar
Sandra SantosAssistente social e fundadora da Casa Mãe Mulher
A poucos metros da sede da Casa Mãe Mulher, o CAI Baixada recebe visitas de familiares dos jovens encarcerados duas vezes por semana, às quartas-feiras e sábados. Nas enormes filas, os rostos masculinos são raridade. São as mães – pobres e pretas – que seguram o fardo. “É muito raro os pais virem visitar os filhos. Alguns, os pais abandonam; outros não visitam por questão do serviço. Quando descobrem que eles têm um filho preso, são mandados embora”, conta Sandra.
A Casa também tem cuidados especiais com a imagem das mulheres para evitar que elas sofram consequências na vida profissional. Segundo a fundadora, para os empregadores “mãe de bandido, bandida é”. Nas fotos publicadas nas redes sociais do projeto, algumas têm o rosto embaçado para não serem reconhecidas. Muitas são empregadas domésticas e não contam aos patrões a situação dos filhos por medo de serem demitidas – como já ocorreu com algumas das mulheres atendidas.
A Casa Mãe Mulher disponibiliza espaço para que as visitantes possam ir ao banheiro e descansar. As 14 voluntárias ainda preparam café da manhã e almoço para as mães dos adolescentes, além de organizarem oficinas profissionalizantes, palestras educativas, orientação jurídica e apoio psicológico e emocional. O projeto também empresta roupas para as mães entrarem na unidade, pois algumas não possuem ou não foram informadas sobre o estilo de roupas requisitado pelo Degase.
O propósito da Casa é promover os direitos humanos e fortalecer mulheres que vivenciaram a maternidade sem a estrutura adequada. “O Estado foca nos adolescentes, aqui nós olhamos para as mães. Reconhecer a dignidade da vida dessas mulheres é o nosso objetivo principal”, afirma a organização.
A Constituição Federal prevê, no artigo 228, que menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, estando sujeitos às normas de legislação especial. Por isso, estes não são presos e, sim, apreendidos para cumprir medidas socioeducativas em vez de receberem punições – ao menos na teoria. O Degase coordena, atualmente, oito unidades de internação e 16 centros de recursos integrados de atendimento ao adolescente. As unidades de internação recebem jovens de 12 a 18 anos, que podem ficar internados até os 21. No CAI Baixada, no município de Belfort Roxo, o espaço é reservado para os meninos.
“Manter um menino aqui é caro”
Além dos gastos de transporte para atravessar o estado, as mães precisam custear boa parte da permanência dos adolescentes na unidade. De acordo com Sandra, elas trazem travesseiro, lençóis, escovas de dentes e outros itens básicos de higiene – despesa que representa parte significativa da pequena renda que possuem.
A gente cresce como pessoa. É muito gratificante a ajuda que a gente dá. E a gente também é ajudada. Eu tenho muito apoio
Arléia GermanoVoluntária da Casa Mãe Mulher
Com medo de perder os filhos para morte ou para o crime, as mulheres chegam extremamente fragilizadas à unidade socioeducativa, onde ainda são maltratadas – na própria unidade e nas audiências. Uma das mães chegou a ser apontada pela juíza como culpada pela situação do filho.
“A gente soltava lá longe e vinha andando. E aqui é muita poeira. Em dia de chuva é barro e em dia de calor é poeira. A gente ficava muito irritado de andar de lá daquela entrada até aqui”, conta Arléia Germano, uma das mulheres atendidas pela Casa e, atualmente, voluntária do projeto.
Além do trajeto cansativo que desequilibra o psicológico, o estresse é potencializado no momento da visita, no qual as restrições são muitas e a rigidez é intensa. Segundo Arléia, as lembranças são poucas dos momentos de encontro, devido ao desconforto. “Eu tenho mania de esquecer as coisas ruins que acontecem comigo. muito muito muito mal. Dá vontade de ajudar todo mundo, mas você não pode dar uma palavra. A gente se sente muito mal vendo esse desprezo”, diz ela.
Arléia afirma que mal sabe quanto tempo duravam as visitas: “Você só quer ir embora, aí a gente não sabe se é pouco ou não”. A mulher ainda diz que, caso os visitantes descumprissem regras, os meninos internados sofriam as consequências.
Questionada se percebe alguma diferença em si após conhecer o projeto, ela responde: “Crescimento! A gente cresce como pessoa. É muito gratificante a ajuda que a gente dá. E a gente também é ajudada. Eu tenho muito apoio”. Um dos atendimentos que Arléia mais gosta são as consultas e reuniões com psicólogos, pois é o momento que consegue desabafar. “Você pode falar o que você está pensando naquele momento, o que está se passando na sua família…”
“Essas mulheres precisam ser ouvidas. Elas precisam desse momento de paz e de tranquilidade, de alguém que traga algo novo para elas. A Casa Mãe é um quilombo. Um dia eu estava aqui e ouvi aquela voz gritando para mim: ‘Sandra, a Casa Mãe é o grito dos ancestrais!’ Eu cheguei a me arrepiar”, conta a fundadora com um sorriso no rosto.
Aprovada em concurso para ser cozinheira do Degase, Sandra sentiu a dor dessas mulheres de perto pela primeira vez quando foi transferida para o almoxarifado, após a alimentação ser terceirizada pelo governo do estado. Em uma das ocasiões, enquanto Sandra fazia a revista, uma das mães desmaiou de fome e ela tentou pegar um prato de comida na cozinha da unidade, mas foi impedida.
“Elas chegam aqui com água no estômago. Elas não têm tempo nem de sentar e tomar um café na mesa. Essas mulheres não sabem o dia do aniversário, não sabem o que é o lazer. O foco delas é tanto em arrumar dinheiro para sustentar o menino aqui , que elas só pensam em luta, luta e luta. Manter um menino aqui é caro”, diz Sandra.
Coincidências do destino
Aos 30 anos, Sandra prestou concurso para o Degase, segundo ela, para testar como estava seu nível de conhecimento, mas sequer conferiu o resultado. Ela nem mesmo sabia para que instituição estava realizando a prova.
No último dia do prazo disponível para os aprovados apresentarem os documentos, uma mulher telefona para ela dizendo: “Oh xará, estou aqui à tua espera, hoje é o último dia. Você não vem?” – a responsável pelo recolhimento da papelada também se chamava Sandra e, curiosa, resolveu ligar para a candidata com o mesmo nome.
Apenas cinco meses depois, quando foi solicitado que Sandra comparecesse ao Instituto Padre Severino (IPS), destinado na época à internação provisória de jovens que cometeram delitos, ela descobriu do que se tratava o tal Degase.
Quando ela começou a trabalhar, em 1994, a unidade havia acabado de passar por uma rebelião. “Cheguei lá estava tudo queimado. Tudo bagunçado. Eles tinham feito arroz na caldeira e não deu tempo de tirar. O arroz ficou e o tamanho dos bichos…”, lembra enquanto demonstra com as mãos afastadas em cerca de sete centímetros o tamanho dos insetos que encontrou na cozinha. Ela ainda precisou tirar gordura do chão com enxada.
O nome escola é de rir. Uma escola onde o muro é dessa altura. Uma escola que tem grade. Uma escola onde andam algemados. Uma escola onde a maioria são os favelados, os pretinhos, os pobres
Sandra SantosFundadora da Casa Mãe Mulher
Fechado em 2012, o fim do IPS foi uma das recomendações do relatório produzido pelo programa “Justiça ao Jovem”, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que apontou que as condições da unidade estavam em conflito com o que pregavam as leis do Rio. No IPS, reiteradamente haviam reclamações dos adolescentes em relação às violências dos agentes, incluindo uso de gás de pimenta, agressões físicas e abusos sexuais.
Quando criou a Casa, Sandra já estava na unidade de Belford Roxo, onde também ministrava aulas de gastronomia aos internos. Durante os encontros, ensinava receitas e ainda como comer de garfo e faca e técnicas de organização de mesa. Mas a função mais admirada pelos internos era a de ombro amigo: “Eles diziam que só eu os entendia bem”.
Marlon*, um dos alunos de gastronomia, quando ia às audiências, sempre negava a culpa do crime que cometeu. O menino havia tentado assaltar um estabelecimento, mas foi pego. Em uma das aulas, conversando com Marlon, Sandra o aconselhou a contar a verdade, pois “a verdade sempre prevalece.”
“Eu disse: ‘Conta! Você já está aqui pagando. Mesmo dizendo para ele que você não fez, você está aqui. Diz para ele o que você fez e porque você fez’”, recomendou a fundadora da Casa.
Eu estudava aos trancos e barrancos, porque eu queria uma vida melhor para mim. Eu falava que os meus filhos não teriam aquela vida que eu tinha, de morar na casa dos outros e se sujeitar a coisas horríveis
Sandra SantosFundadora da Casa Mãe Mulher
Na audiência seguinte, Marlon* contou aos prantos que decidiu cometer o assalto em uma tentativa de ajudar os pais, que eram idosos e trabalhavam capinando terra todos os dias embaixo do sol forte. O menino achava que o dinheiro adquirido poderia dar ao menos uma folga à mãe e ao pai. Após confessar, o juiz concedeu a liberdade a Marlon*, que não tinha antecedentes. “Não é romantizando. É preciso ouvir o lado humano do outro”, afirma Sandra.
Desde seu início, há mais de 10 anos, o projeto para as mães se manteve com doações e o trabalho de Sandra, logo apoiada por voluntárias. Neste período, ela constatou poucas mudanças. “Se quisessem realmente ressocializar o adolescente, seria tudo conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente. Teria que ser conforme as leis, com o adolescente perto de casa e com educação”, diz.
Todas as unidades de internação possuem uma escola destinada aos adolescentes. No CAI Baixada, funciona o Colégio Estadual Jornalista Barbosa Lima Sobrinho. “O nome escola é de rir. Uma escola onde o muro é dessa altura. Uma escola que tem grade. Uma escola onde andam algemados. Uma escola onde a maioria são os favelados, os pretinhos, os pobres”, conclui Sandra, indignada.
Majoritariamente pretos e moradores de periferia, os jovens encarcerados têm as marcas (físicas e mentais) da violência antes mesmo de entrarem no Degase. Após a apreensão, eles tendem a sentir ainda mais raiva e medo. Com a política punitivista do Estado, raramente os meninos são tratados como seres humanos.
Da escravidão doméstica ao quilombo
Nascida em Casimiro de Abreu, interior do estado do Rio de Janeiro, Sandra veio, aos cinco anos, morar com a tia na capital. Aos 12, ela foi levada para a casa de uma família de brancos, onde foi explorada até completar 26 anos. “Nessa casa eu era filha de criação, mas só até o lado de fora da porta. Quando a gente está nessa condição, a gente não entende. Hoje, eu entendo que era enganação pura”, conta Sandra.
Mesmo com a rotina exploratória, a menina não faltava um dia de aula e todos os dias estava na escola antes das sete da manhã, em busca do tal futuro que sua mãe temia que ela não tivesse caso continuasse na roça.
“Eu estudava aos trancos e barrancos, porque eu queria uma vida melhor para mim. Eu falava que os meus filhos não teriam aquela vida que eu tinha, de morar na casa dos outros e se sujeitar a coisas horríveis”, lembra a fundadora do projeto, que atualmente é formada em Teologia e Serviço Social e faz curso de psicanálise.
Além do trabalho durante o dia, a dona da casa a forçava a exercer tarefas pesadas durante a noite. “Ela me fazia trabalhar a madrugada toda para eu não conseguir pegar na escola”, lembra emocionada. Segundo Sandra, até hoje são muitas as dificuldades para dormir. Ela sempre deita muito tarde, entre meia noite e duas da manhã, e acorda bem cedo, traumatizada pelas torturas que sofreu na infância.
A “mãe de criação” dizia que ela jamais “seria maior que os filhos biológicos” e que ainda veria o nome da menina nas páginas policiais dos jornais. Sandra casou e teve três filhos. Aposentada, ela mantém a Casa Mãe Mulher, com a ajuda de doações – muitas de mulheres da igreja evangélica que frequenta – e do trabalho das voluntárias.
A Casa Mãe Mulher, aos poucos, foi ganhando fama e já impactou na atuação dos departamentos de medidas socioeducativas do estado do Rio. Após a repercussão positiva do projeto, a Unidade CRIAD de Caxias passou a convidar as mães para almoçar com os filhos uma vez por mês, por exemplo, e o Degase da Ilha do Governador destinou uma sala de espera para as famílias.
As mudanças ainda são tímidas e o objetivo principal é expandir a atuação. Entre as metas, a organização planeja oferecer cursos de crochê, pintura, artesanato e confeitaria para que as mulheres tenham uma fonte de renda. Sandra também pretende alugar um sítio para periodicamente levar as mães para alguns momentos de lazer, para fortalecer a ligação com as mulheres e reforçar o conceito de quilombo.
A fundação de quilombos não é novidade na família Santos. O bisavô de Sandra, Ludgério dos Santos, ex-escravo nascido em 1871, fundou o Quilombo Preto Forro, localizado em Cabo Frio.
Com mais de 300 anos de história, o Quilombo surgiu a partir de negros livres em um espaço situado entre duas fazendas, onde os trabalhadores ainda eram mantidos escravizados. Não se sabe se estes quilombolas se tornaram livres antes ou depois da Lei Áurea.
Em 2004, o Preto Forro recebeu a certificação de autorreconhecimento emitida pela Fundação Cultural Palmares (FCP), o que tornou possível os estudos e processos em defesa da comunidade, garantindo a titulação territorial pelo Incra. Em março de 2012, o quilombo recebeu a titulação definitiva de suas terras.