Ex-editor da Globo contesta condenação

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Jornalista Marco Aurélio Mello, que foi editor da Globo, publica artigo sobre a condenação sofrida em primeira instância, em processo movido por Ali Kamel, diretor de jornalismo da emissora; “Em meu blog pessoal, mantido voluntariamente até março deste ano, aperfeiçoei uma técnica de ficção ácida e bem humorada, e também fiz severas críticas à maneira desastrosa e desonesta como se pratica telejornalismo no Brasil”, diz ele; “Mas como a arte imita a vida (ou seria o contrário?) hoje tenho que lidar com uma situação no mínimo curiosa: fui condenado duas vezes por um texto de ficção”; leia a íntegra

247 – Condenado em primeira instância num processo movido por Ali Kamel, diretor de jornalismo da Globo (leia aqui), o jornalista Marco Aurélio Mello, ex-editor da emissora escreveu artigo em que relata a situação kafkiana que enfrenta. “Hoje tenho que lidar com uma situação no mínimo curiosa: fui condenado duas vezes por um texto de ficção”, diz ele. Leia, abaixo, a íntegra:
Sobre o meu direito de manifestação
O “modus operandi” é o mesmo. “A vítima” ingressa com uma ação, ganha em primeira instância, um site (jurídico) publica a sentença e pronto, o serviço está feito. Que serviço? O assassinato de reputações. Dar publicidade à uma ação que ainda não transitou em julgado tem um impacto negativo sobre a imagem do “condenado”, impacto muitas vezes irreparável.
É a segunda vez sou condenado em primeira instância numa ação movida pelo número um do jornalismo da TV Globo. Primeiro foi em 15 mil, agora o dobro, 30 mil. Isso sem contar os honorários que são acrescidos ao valor das causas, as custas dos processos e os salários dos advogados.
No primeiro Encontro Nacional de Blogueiros, em 2010, Paulo Henrique Amorim cunhou a seguinte frase: “diga quem te processas, que eu te direi quem és.” Ele se referia a muitos, não só a ele próprio, PHA, mas ao Azenha, ao Rodrigo Vianna, ao Nassif, ao sr. Cloaca. Mais tarde veio juntar-se ao grupo o Miguel do Rosário, aquele mesmo que revelou o escândalo do DARF que a TV Globo nunca mostrou.
Não é preciso ler Kafka para saber que um processo é sempre uma angústia, uma aflição permanente, não só para si, mas para todas as pessoas próximas, que compartilham solidariamente a mesma inquietação.
Quem me conhece sabe que sou um pacifista, adepto do diálogo e absolutamente contrário a qualquer forma de violência e arbítrio. Transformei a luta pelos mais fracos em razão de viver e sou intransigente na defesa de todos os que não tem voz e que são massacrados por interesses mesquinhos e excludentes tão comuns num país desigual e provinciano, como o nosso.
Fui demitido sumariamente depois de 12 anos de bons serviços prestados e não entrei sequer com uma reclamação trabalhista. Razões não faltavam para isso: assédio, intimidação, humilhação… No dia em que fui comunicado do meu desligamento, minha mulher, grávida de sete meses, ficou sem a maternidade e o obstetra. Tive que pleitear um plano de saúde tampão, porque um novo exigiria carência. Mesmo assim, para ter as mesmas condições anteriores, tivemos que fazer up grade, no popular,  “pagar por fora”.
Nada disso nos tirou do eixo. Contornada a situação, segui minha carreira normalmente e obtive – ao lado de tantos parceiros – importantes prêmios jornalísticos, entre eles, o Prêmio Petrobras de Comunicação, em 2013.
Em meu blog pessoal, mantido voluntariamente até março deste ano, aperfeiçoei uma técnica de ficção ácida e bem humorada, e também fiz severas críticas à maneira desastrosa e desonesta como se pratica telejornalismo no Brasil. A internet permitiu que eu ganhasse relevância e passasse a influenciar leitores, entre eles ex-colegas de trabalho. Tanto como editor do Jornal da Globo, por três anos, quanto do Jornal Nacional, por quatro, fui testemunha ocular de fatos históricos relevantes, por isso, minhas análises passaram a ter importância no meio.
Escrevi sobre como se dá a criminalização dos movimentos sociais, sobre como o racismo é disfarçado no noticiário e sobre como é feita a obstrução ao debate de temas sensíveis, entre eles: a influência da indústria farmacêutica e da indústria do álcool, esta última um dos maiores patrocinadores dos meios de comunicação, para ficar apenas em dois exemplos. Também apontei para um sem-número de desvios na cobertura econômica e política.
Nos textos de ficção tinha uma predileção por histórias que misturavam poder, o mundo da TV e muita, muita sacanagem. Assim, em séries, desnudei figuras que, apesar de terem glamour, são seres humanos como nós, sujeitos às desilusões seja na vida profissional, pessoal, amorosa… A brincadeira dos internautas passou a ser identificar quem teria inspirado cada texto.
Mas como a arte imita a vida (ou seria o contrário?) hoje tenho que lidar com uma situação no mínimo curiosa: fui condenado duas vezes por um texto de ficção, repito, ficção, envolvendo uma prosaica disputa judicial de vizinhos, causada pelo odor exalado pela fumaça de maconha, usada por jovens num apartamento chique da zona Sul do Rio de Janeiro.
Para a maioria das pessoas – muitas delas por desinformação – a culpa é atribuída antes mesmo do pronunciamento final das instâncias superiores. Assim, o justiçamento virou expediente preferencial de quem quer causar dano antecipado, antes do feito legal consumado. Vale sempre lembrar que só se firma a culpa depois de trânsito em julgado. Mas o que importa, não é mesmo?
E por que é assim? É assim porque no Brasil não há controle externo dos abusos cometidos pelos meios de comunicação. É assim porque não há quem investigue e puna, quando for o caso, abusos cometidos em coberturas jornalísticas. É assim porque não há um órgão com legitimidade para regular questões que envolvam relações entre jornalistas e produção de conteúdo jornalístico. E é assim porque questões de interesse privado ganham ampla publicidade depois de congestionarem as comarcas, também chamadas de primeiras instâncias.
E o debate, que poderia ser franco, republicano, dá lugar ao pugilato, ao uso e abuso da força coercitiva do poder econômico. É por tudo isso que digo: sinto-me perseguido. E sei bem o porquê. Participo de uma disputa que é muito maior do que um mero embate entre dois contenedores sobre técnica jornalística. Estamos falando aqui de uma pequena batalha dentro de uma guerra muito maior, a Democratização dos Meios de Comunicação.
E, se estamos realmente construindo uma democracia com ampla participação popular, com mais igualdade e justiça social tenho que acreditar que as instâncias superiores serão capazes de – amanhá – reparar decisões tomadas ao arrepio da lei.
Quando recebi a notificação de que estava sendo processado mais uma vez pelas mesmas razões tomei a iniciativa de suspender o blog. Sou profissional liberal, assalariado, com patrimônio modesto, mas com convicções inabaláveis. A principal delas: a de que estou do lado certo. Infelizmente neste momento estou legalmente sob censura.

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