Por Yuri Fernandes, compartilhado de Projeto Colabora –
Contratadas após programa de inclusão, Alina e Jade, mulheres trans, revelam o que vivenciaram durante quatro meses de trabalho na empresa: ‘Era um ambiente nocivo’.
Foi por meio de uma thread no Twitter – sequência de posts para contar uma história – que Alina Durso, de 20 anos, e Jade Aza, de 19, decidiram revelar o que viveram durante quatro meses como funcionárias da Zara, famosa rede de roupas e acessórios com mais de 2 mil lojas pelo mundo. As duas foram contratadas por meio de um programa para inserção de pessoas em risco de exclusão social, entre essas, pessoas trans. Porém, na série de tuítes, publicados no último domingo, 26, as amigas fazem diversas denúncias envolvendo transfobia e racismo por parte das equipes com quem trabalhavam, em duas lojas de São Paulo. Relatos que vão desde tratamento com os pronomes inadequados até a violação da identidade de gênero. Tais situações fizeram com que ambas pedissem demissão no início de janeiro. No Dia Nacional da Visibilidade Trans, o #Colabora revela mais detalhes sobre as acusações.
NOS AJUDEM A DAR VISIBILIDADE AO CASO
mês da visibilidade trans, e viemos expor o que passamos
que nenhuma outra travesti seja desrespeitada dentro daquela e qualquer outra empresa. #TransfobiaNaZara #RacismoNaZara pic.twitter.com/AM0acwCmwf
— diário de umA travesti (@alinadurso) January 24, 2020
Alina e Jade, duas mulheres trans, passaram no processo seletivo para a Zara juntamente com mais dois homens trans e uma pessoa não-binária. As contratações foram possíveis graças a uma parceria entre a gigante empresa espanhola e a Casa 1, que entre outras atividades, funciona como um centro de acolhida de jovens LGBT+. Presente em 14 cidades do mundo, o Salta – nome do projeto – tem como objetivo promover “a integração laboral nas nossas próprias lojas, fábricas e centros logísticos de pessoas em risco de exclusão social e com difícil acesso ao mercado laboral”. As informações estão no site oficial da companhia. Pela primeira vez, no segundo semestre do ano passado, segundo o que foi apresentado para as ex-funcionárias, a empresa investiria na empregabilidade de pessoas trans.
As amigas souberam do processo na Casa 1, onde foram acolhidas, em momentos diferentes. Por ser transexual, Jade fora expulsa pelos pais da casa onde a família vivia em Taquaritinga, a 350 km da cidade de São Paulo. Na capital paulista, chegou a morar com o irmão, mas por motivos pessoais preferiu procurar a Casa 1, onde morou por cinco meses. Já Alina, deixou a cidade natal Bauru, no interior do estado, no fim de 2018 atrás de novas oportunidades e um lugar onde fosse respeitada. Estava no início de sua transição de gênero. Ficou por cerca de um mês no abrigo. Mesmo após o período de acolhida, as duas continuaram em contato com a ONG como voluntárias e, assim, foram apresentadas ao programa Salta, da Zara.
“No início, fiquei bem empolgada. Pensei: é um projeto bacana, que respeita a identidade de gênero e eu iria ter minha estabilidade financeira. Acreditei na ideia, pensando em crescer lá dentro”, relembra Jade. Porém, segundo Alina, a realidade foi outra: “Nos 4 meses que fiquei lá, nunca fui tratada como uma mulher de fato”. Desde o início do Salta, em 2008, mais de 1100 pessoas foram contratadas, sendo que 50% continuam a trabalhar na empresa. Alina e Jade representam a outra metade.
“Eles chegaram a fazer um vídeo comigo no qual contei minha história enquanto mulher trans para mostrar em outros países, acredito. Durante o processo seletivo, deixaram claro que nossas identidades não seriam violadas e que os funcionários estariam preparados, mas na prática foi completamente diferente. Enquanto usavam minha imagem, eu sofria transfobia dentro da loja”, adianta Alina.
‘Era um ambiente nocivo’
Durante a conversa com o #Colabora, Alina, que se viu pela primeira vez num emprego formal, com carteira de assinada, relatou em detalhes os constrangimentos que teria passado dentro da loja. Segundo ela, começou pela cobrança por estar sempre “bonita”. Para pessoas trans, a atitude se enquadra no que é chamado de passabilidade, que, em poucas palavras, é o quanto uma pessoa trans precisa se passar por uma pessoa cis para ser mais respeitada. “Um dia, a gerente virou para mim e disse que iria me ensinar a me tornar uma mulher como ela. Uma mulher de verdade. Chegou a dizer: “Já fui uma surfista desleixada, e olha como sou agora”, relata.
Além das reclamações de algumas funcionárias sobre o uso do banheiro feminino, a jovem conta que equívocos em relação aos pronomes eram constantes: “As pessoas não estavam dispostas a entender quem eu era. Inclusive, tinha um grupo que sequer olhava na minha cara. Ficava incomodada, mas relevava pois precisava do emprego”. Segundo Alina, até mesmo uma das gerentes constantemente a chamava no masculino – o que foi garantido que não aconteceria durante o processo seletivo. “Não era por falta de conhecimento. Tratavam funcionários gays no feminino o tempo todo, qual a dificuldade de me tratar também? Era um ambiente nocivo”.
As solicitações para que fosse tratada da maneira correta não eram atendidas pela gerência, garante. “Falavam que eu tinha de entender que não podia mudar a cabeça das pessoas. Que tinha que dar um tempo para adaptação. Eu fiquei lá quatro meses, quanto tempo mais eles precisavam?”, questiona.
Em outro momento, quando já havia terminado seu expediente, Alina relata que voltou à loja como cliente, para comprar algumas roupas. De acordo com ela, foi seguida pelo segurança, que a conhecia: “Cheguei a pensar: ‘devo estar louca’. Mas quando fui para a fila do pagamento, ele parou de braços cruzados na minha frente. Eu perguntei: ‘Está tudo bem?’. ‘Me responde você’, ele devolveu”. O caso teria sido reportado ao RH, mas a resposta surpreendeu Alina. “Eles afirmaram que nem tinham conhecimento sobre segurança dentro da loja”.
A situação mais grave – para a jovem “a gota d’água para o pedido de demissão” – se deu quando a mesma gerente citada anteriormente na reportagem revelou o nome civil de Alina – ou “nome morto”, como definiu ao #Colabora – para outros funcionários. “Ela me chamou para ver no computador questões relacionadas ao pagamento, numa salinha nos fundos da loja. Foi quando viu meu nome morto. ‘Esse aqui é o seu nome?’, perguntou. Se não bastasse isso, começou a repetir e falar alto. Outras pessoas estavam perto porque estavam batendo o ponto. Foi uma situação constrangedora. Ela tinha que ser a referência ali dentro. Se como gerente fazia isso, que exemplo daria aos outros funcionários? Foi ali que percebi que estava desamparada”, dividiu.
Alina não se calou e garante ter procurado o RH novamente para relatar não só esse, mas também os outros casos. De acordo com a paulistana, a área de Recursos Humanos teria reconhecido o erro da empresa.
‘A transfobia era evidente’
As queixas de Alina são compartilhadas por Jade. As duas trabalhavam em lojas diferentes – uma no Shopping JK Iguatemi e outra no Pátio Paulista – mas as situações vividas se assemelham. Jade, inclusive, teria passado por um momento, classificado por ela como “intimidador”, também envolvendo um segurança. Segundo a ex-funcionária, existe uma espécie de código, alarme que é soado toda vez que alguma pessoa considerada suspeita pela equipe de segurança entra nas lojas. Apenas os funcionários teriam conhecimento sobre o real significado do som. Juntamente com o alarme, é informada internamente a seção da loja onde a pessoa estaria. Foi durante uma ida ao estabelecimento onde Alina trabalhava que o aviso teria tocado, sendo direcionado à Jade.
“A Alina me contou que o som tocou avisando justamente sobre a seção em que só nós duas estávamos. O segurança parou do meu lado e ficou me olhando descaradamente. Ele estava ali por minha causa, isso fico bem claro”. Jade, que tinha intenção de comprar algo, decidiu ir embora por conta do constrangimento. Mulher negra, ela acusa a empresa também de racismo, denúncia que é endossada pela amiga. “Geralmente o alarme toca para pessoas com bolsa e para pessoas negras. Principalmente, pessoas negras”, conta Alina.
Jade relata ainda outros casos de preconceito. Conta que já no primeiro mês de trabalho começou a perceber um “olhar de repulsa” vindo por parte de alguns colegas. “Tinha um funcionário explicitamente transfóbico. Cheguei a conversar com a gerente, mas ela me disse que era coisa da minha cabeça, que tinha criado antipatia dele. Não tomou nenhuma atitude. Se tomou, não fiquei sabendo”.
A jovem, então, se sentiu na necessidade de fazer uma reunião com a equipe para explicar sobre questões de gênero. Sem muito sucesso, seguiu até o início do ano no trabalho, onde, aliás, revela que deixava para ser a última a bater o ponto para ninguém ter acesso ao seu nome civil. “Continuar lá estava sendo insustentável. Era evidente a transfobia, era descarada”, afirma.
Justiça
Alina e Jade vão entrar com duas ações contra a Zara, sendo uma delas por danos morais. Já fizeram, inclusive, a primeira reunião com o defensor público – um homem trans. Para elas, não se trata apenas de justiça pessoal, mas, uma forma de a empresa mudar sua relação com a diversidade. “Espero que o ambiente fique mais saudável e que eles entendam que mulheres trans não devem ser tratadas da forma como eles querem, mas, sim, da forma que elas precisam, com o mínimo de respeito”, finaliza Alina.
Jade ecoa o pensamento da amiga. “É uma luta muito importante. A Zara não está preparada para a diversidade, está muito longe disso. Queremos que pessoas trans sejam respeitadas em todas as empresas e por isso não vamos ficar caladas”.
Até o momento, o #Colabora não conseguiu entrar em contato a Zara. Quando conseguimos a resposta da empresa, a reportagem será atualizada.
uma thread sobre a transfobia que eu e uma amiga passamos trabalhando na empresa zara
empresa no qual agora já nos desligamos, e estamos entrando com uma ação contra a mesma +
(repassem ao máximo) pic.twitter.com/jsZvFMab0z
— diário de umA travesti (@alinadurso) January 25, 2020